UnB – Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Sociologia
Disciplina: Sociologia Brasileira
Semestre: 1/2010
Professora: Mariza Velozo
Turma: A
Aluno: Rafael de Araújo Aguiar
Matrícula: 08/38811
Dissertação acerca de um tema nacional de livre escolha, baseando-se no escopo teórico oferecido pelo curso
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS
PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL
BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS
NEGROS
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Sobre a delimitação do tema: a idéia inicial era fazer uma comparação de como a vida do negro escravo era enxergada (em sua falta de salubridade das senzalas, no caráter penoso do trabalho, na eventual dieta, no nível de liberdade que podiam desfrutar, religiosa, moral e cívica, no que tangesse ao lazer enquanto não estivessem cumprindo as ordens de seus donos, etc.) por diferentes autores; seria, nas condições mais ideais, até, tentar responder uma dúvida que uma vez se me suscitou em aula de História Econômica Geral, nesta universidade, ainda em 2008, quando o professor da cadeira disse que os proletários ingleses do século XIX tinham uma existência muito mais precária que a dos nossos escravos, o que, me recordo, havia chocado a turma. Certo é que esse problema continuou reverberando em minha cabeça de quando em vez, mas nunca tive tempo de pesquisar sobre o assunto, e achei que esta matéria seria a deixa.
Mas tudo adquiriu contornos mais nítidos, realmente, quando os prazos do trabalho se avizinhavam e houve a sugestão em classe de Sociologia Brasileira, partindo da própria professora, tangendo a pirâmide étnica ou inter-racial nesses dois autores (Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro). Pode-se julgar que não intento aqui um esmiuçar profundo acerca do indígena e do próprio branco europeu, subsistindo aquela vontade de falar sobre o afro-descendente em especial, devido principalmente a limitações temporais. O que importa é que o trabalho ganha muito mais corpo ao tentar abarcar a totalidade da vivência dessa gente, e não apenas a forma como eram tratados em cativeiro. Além disso, devo obviamente me imiscuir na questão social que se refere às raças resultantes do “congraçamento sexual” entre brancos e negros e até eventualmente índios e negros. Muito ajuda, nesse prazo de tempo curtíssimo, ambas as leituras serem assaz gostosas.
E, felizmente, devo dizer que, por ser este um dos três pilares ou matrizes étnicas e de fulcral importância na descrição da evolução da civilização brasileira, será impossível que meu trabalho não cumpra em parte ao menos o delineamento geral de uma tal hierarquia ou pirâmide das três raças nesses dois autores (que foi a sugestão da Prof.ª Mariza e aquilo que me aprazeria desenvolver se houvesse mais condições), porque se o enfoque é no tipo negro, por tabela, a posição desta matriz na relação entre índios e portugueses entre si poderá ser assinalada, para não dizer da relação de ambos com o negro, o que já está tácito: assim sendo, quem sabe, nem que de soslaio, empreendemos esse objetivo que nos foi agregado “em meio do caminho”.
VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS
“Casa-grande & Senzala – Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal” compõe, como se sabe, a terça parte do que viria a ser uma “História da sociedade patriarcal no Brasil”, ou apenas uma introdução a esta, como queria a modéstia de Gilberto Freyre. É a parte reputada como a mais bem-escrita e a mais imortalizada dentre os volumes seqüentes (que são, apenas por curiosidade, “Sobrados e Mucambos” e “Ordem e progresso”), e dizem os especialistas que o melhor jeito de lê-la é da forma menos sisuda e mais descontraída possível! Cuida “Casa-grande & Senzala” da parte colonial dessa hercúlea tarefa que é decifrar o Brasil. Entre suas maiores inovações, podemos elencar o exitoso emprego do culturalismo boasiano – ainda na década de 30 do século XX da antropologia brasileira – e a valorização da raça negra como jamais antes, superando a geração dos intelectuais brasileiros que se preocupavam em encontrar uma solução para a “questão racial”; questão racial que, pelo menos nos moldes do século XIX, está findada. Uma questão sócio-cultural é que se nos desenha, e seria inútil continuar procurando justificações étnicas em mitos europeus. Sabe-se, outrossim, que não seria do feitio de um grande escritor, que quisesse ser levado a sério, recair ingenuamente no outro extremo, o da ultra-idealização romanesca, quase como um Rousseau dos trópicos, do homem americano.
A ordem dos capítulos no livro de Freyre pode dar pistas imediatas de sua “hierarquização das raças” (inconsciente?). Muito embora não se respeite exatamente uma segmentação rígida na prestação de informações: muito se fala sobre o branco no capítulo dos índios, demais se fala sobre o negro em todos os capítulos, e um tanto se fala do branco e do silvícola nos dois capítulos dedicados aos escravos africanos. Mas a julgar pelo índice, percebe-se logo de cara o enfoque maior na matriz étnica dos afros, beirando 50% da obra.
Onde “Casa-grande (…)” se mostra mais instigante até os dias de hoje e inultrapassável, quiçá, é na microssociologia. Não é este exatamente o mapa do tesouro procurado por um profissional como o economista, portanto – como evidencia a página 276: “Não nos interessa, porém, senão indiretamente, neste ensaio [capítulo 3 – o capítulo 1 havia fornecido uma visão mais geral e macroscópica], o aspecto econômico ou político da colonização portuguesa do Brasil. Diretamente, só nos interessa o social, no sentido particular de social que coincide com o sociológico.”
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O mineiro Darcy Ribeiro, que tinha 11 anos quando a primeira edição de “Casagrande & Senzala” fôra publicada, foi talvez o último dos historiadores brasileiros a intentar uma “teoria geral” sobre o Brasil. Empreendeu 30 anos de sua vida, interrompidos por outros projetos e questões médicas, na sua magnum opus (tendo, inclusive, cinematograficamente, fugido da UTI para concluí-la à beira da praia em ‘paz da alma’), “O Povo Brasileiro”, cujo subtítulo sugestivo (como discutimos tantas vezes em classe acerca da freqüência dessa palavra “formação” nos trabalhos de grande esforço sistemático dos nossos autores clássicos!) é “A formação e o sentido do Brasil”. A tônica do livro, e provavelmente sua motivação por excelência, é uma análise do mito de que o Brasil seja o país do futuro, futuro que, hipoteticamente, nunca chega (e a pecha de “subdesenvolvidos”, o eterno “estar mergulhado” em uma zona pastosa de economias exploradas pelos países ricos e a descrença em nossa capacidade real de protagonismo, não seriam mitos, também?). Mas por que isso está tão entranhado em nós brasileiros (essa esperança quase que tola), a ponto de todos já terem ouvido falar no tal mito? A resposta para esse dilema pode ser encontrada em nosso passado e na forma absolutamente inédita como nos originamos, segundo o autor.
Que, no entanto, a descrição dessa demorada labuta que virou livro não engane o leitor a respeito da forma como tal densidade está disponibilizada para o leitor: nada de academicismo pesado, mas uma leitura mui leve, que parte das mãos de outro romancista que por algum engano da História veio a ser cientista, à la Freyre!
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Para finalizar essa pequena pincelada nas duas obras, alguém que comentou sobre os dois num só lugar: “Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre. Mesmo os que o foram, como o próprio Darcy, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido.” (CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene In: FREYRE, 2006, p. 19). A frase, imagino eu, significa que tampouco Darcy Ribeiro, um grande fã e entusiasta do legado freyreano, deixou de dar suas pontadas historiográficas e assinalar suas necessárias correções. Mas repara-se que pela forma como Fernando Henrique Cardoso elaborou sua frase, ela pode adquirir um segundo sentido: o de que Darcy repetiu esses erros. E é irônico que Darcy Ribeiro tenha criticado o gosto de Gilberto Freyre pela palavra mais poética e cheia de efeito, pois esta é uma característica também sua! Sim, Ribeiro não deixou de mostrar suas mesmas contradições – o que, para sua sorte, não lhe retira o valor!
PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL
Pécaut, quando diz que “o livro considera os relacionamentos sexuais como o motor de toda uma elaboração cultural, que fundamenta as relações sociais” (PÉCAUT, 1990), está se referindo a Freyre, mas a carapuça serve a “O Povo Brasileiro” também. Explicar o Brasil contemporâneo passa necessariamente pelo problema das etnias primordiais e mais “puras” (no conceito estritamente didático) da nação, pelo sexo, que é o invencível fator de amálgama entre esses tipos, e pela aceitação da alteridade e auto-formação da identidade, que são processos praticamente concomitantes.
À guisa de iniciar as explanações mais detalhadas dos dois livros, para não parecer que alguma coisa ficou perdida ou que as informações no tocante a esse problema central ficaram soltas demais, reunimo-las neste tópico:
“Abaixo” (na árvore genealógica) das óbvias tipologias “branco europeu”, “índio americano” e “negro africano”, temos as seguintes combinações: 1) o branco misturado com o índio (predominantemente o branco colonizador com a índia encontrada nestas terras, inaugurando a relação de cunhadismo descrita por Ribeiro) resulta no mameluco (termo pejorativo articulado por jesuítas paraguaios em referência aos temíveis bandeirantes, é o mais provável); note-se que Darcy Ribeiro cunhou seu próprio sinônimo para mameluco, brasilíndio; quando o indivíduo é mais nortista e embrenhado nas matas, preservando costumes indígenas, existe para ele o termo caboclo; 2) as uniões de índio com negro (isso era possível nos quilombos, por exemplo) resultavam na gente cafuza; 3) o mulato ou afro-brasileiro é a mistura do branco e do negro; 4) faz-se necessário entrar no mérito da obra “O Povo Brasileiro”, que é transcender esse debate, inaugurando novas tipologias para tratar melhor das mestiçagens: primeiro, temos o neobrasileiro (que melhor seria, para não confundir o leitor, chamar-se protobrasileiro), o germinal de uma consciência nacional brasileira; só posteriormente aparece o brasileiro p.d., e a seguir entenderemos o porquê.
BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS
Em “Casa-grande & Senzala”, a análise é quase toda preenchida com relatos de senhores de engenho em suas safadezas e em seu ecletismo mulheril – sem poupar, no meio do caminho, mesmo os causos de relações homossexuais entre filhos de senhor e negrinhos, ou como no caso dos tutores e alunos, o que na maioria dos episódios era em instâncias eclesiásticas envolvendo fradecos –, ou de bandeirantes e dos primeiros colonos em seu apresamento de índios ou desventuras com índias; em segundo plano pela citação de exemplos de produção de gente cafuza nos quilombos; ou ainda estão presentes as cenas mais pitorescas, radicais e raras, da mulher branca em intercurso sexual com escravos da propriedade. A punição diante de leves suspeitas levantadas pelo marido era já a morte. Estas damas, coitadas, são retratadas como raparigas imensamente sedentárias. Não viviam muito tempo, máquinas de gerar prole que eram, abusivamente usadas, e com menos de 30 anos já se punham umas velhotas…
Freyre tentava desmistificar a tal fogosidade atribuída ao negro em maior grau – segundo alguns autores foi essa libidinosidade da raça mais primitiva que teria corrompido o homem branco. O tempo todo Freyre insistirá na impossibilidade de se efetuar uma caça às bruxas, e que a estrutura viciada do modo de produção implantado no Brasil, esta sozinha, explica muitas das nossas atuais mazelas. Dirá, pois, na defesa das raças dominadas pelo jugo do homem branco, que o português era o mais tarado e sexualmente disposto das três raças; depois viria o índio (ou a índia); em último, os afros. Rebatia os argumentos de que eles eram mais sexuais, tanto que tinham todo um repertório de danças e rituais que se mostravam provocativos com o corpo, alegando que isso era justamente um subterfúgio de raça que não se excita fácil e que precisa desse tipo de afrodisíaco ou estimulante, ao contrário do português, que chegava e fornicava sem-cerimônia (FREYRE, 2006, p. 168).
E, além do mais, a dança já representava um grande gasto de energia que implicaria, ao contrário das aparências, na impossibilidade de se ser devasso, como queriam os historiadores de antanho: “Pelo menos entre os negros (…) eram mais freqüentes e ardorosas as danças eróticas (…) e as danças eróticas parece que quanto mais freqüentes e ardorosas, mais fraca sexualidade indicam.” (FREYRE, 2006, p. 239). Freyre ainda antevê um problema que seria absolutamente abordável em correntes recentes que vimos: do Funk carioca, à Axé music, passando por outros ritmos populares e polêmicos: a mistura cultural e a contaminação da pureza nas danças modernas, fundamentalmente não outra coisa que o duelo “sensualidade x sexualidade”, o mesmo debate, aliás, de “erotismo x pornografia”. Também é o “gasto de energia”, segundo Freyre, que explica a menor destinação da pulsão sexual do homem índio guerreiro ao sexo em si; enquanto que a mulher da tribo, por ser mais sedentária, sofreria de um intenso “priapismo”, no vocábulo freyreano. Ainda no tocante à fama de “quente” do povo brasileiro, embora não a enumere como suficiente, Freyre admite a causação climática (o clima tropical), um dos fatores que gerariam a excitabilidade desenfreada dos jovens mancebos brasilianos…
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O colonizador da empresa Brasil se tornou, desde o princípio, de acordo com Gilberto Freyre, uma mera caricatura dos bons tempos lusitanos… Muito se dizia do racismo do português, mas se esquece de medir o quanto Portugal era tão multiétnico quanto o Brasil. Um caldeirão árabe que explicaria ainda um pouco do exotismo inclassificável do brasileiro. Além disso, era remarcado por uma intensa mobilidade social – outra característica que vai se espelhar na Colônia. A verdade é que o típico luso daquele tempo demonstraria muito mais uma intolerância religiosa e uma tolerância mercantil estrangeira do que qualquer ódio ou repulsa racial ou xenofobia sistemática, bastando que estivesse lidando com um forasteiro cristianizado a fim de negociar especiarias que as coisas teriam muito mais chances de prosseguir pacificamente. Os holandeses e os franceses foram por algum tempo seus maiores inimigos, mas isso porque tentavam implantar ilegalmente colônias na costa e professavam a fé calvinista. Verificar-se-á, ao longo do Brasil-Colônia e do Brasil Império, onde ainda há uma intelligentsia e uma burocracia portuguesas influentes, o quanto outros povos tiveram trânsito por aqui, desde que respeitassem algumas regras. Esse sangue disseminado só ajudou a ampliar nossa diversidade.
Para aqueles que sempre se referem aos próprios lusos que ajudaram a povoar o Brasil e fundar nossa nação como não mais que uns criminosos e prostitutas, ralé de Portugal, o que portanto explicaria nosso status de civilização inferior, Freyre também destina algumas linhas. Na página 296, desconstrói apropriadamente esse mito, relatando, aliás, que trazer uma mulher de além-mar era uma empresa muito incerta, que os ventres das índias atenderiam muito melhor esse anseio de constituição de família por aqui. Ainda segundo o autor, os tais “criminosos” deportados nas naus eram quase sempre hereges, excomungados da Igreja, pelo que hoje não seria considerado delito penal, como a sodomia, mas que para a época era infração mortal. Só que nem esses degredados constituíam uma maioria, cabendo ao espírito de aventura de muitos a própria razão da ida ao Brasil, afora os tantos que vieram como proto-intelligentsia e funcionários da Coroa. Tal preconceito manifesto no início do parágrafo, por conseguinte, não se sustenta. Cabe ainda enfatizar o quanto Portugal vivia dias difíceis, e não são exceções os registros de famílias médias ou mesmo de elite passando fome (porque preferiam sair bem-vestidas e ostentar muita escravaria, só que escondiam a real condição do lar): subnutrição era um problema corrente (FREYRE, 2006, p. 313). Por fim, não tolerava Freyre que se caísse na fantasia oposta à nossa síndrome de vira-lata ou baixa auto-estima, isto é, acreditar que os que vieram cá plasmar nossa raça fossem todos uns arianos aristocratas (cf. Oliveira Viana).
No terreno da desmistificação religiosa (atribuir tudo que é mais reprovável e estranho de acordo com os dogmas cristãos ao desvirtuamento cultural provocado pela introdução do negro e pelas assimilações que se fez indeliberadamente dos indígenas), o autor recifense, remando contra a maré de seu tempo, até no caso da bruxaria, reputa ao europeu a maior “responsabilidade”, diante de credos satanistas importados do continente branco (sem negar que os valores da mitologia afro-americana apimentaram ainda mais os rituais, depois – e hoje temos a Bahia, a terra do candomblé).
Gilberto Freyre não perde nenhuma deixa para menoscabar os Estados Unidos, que tiveram uma colonização tão diferente e vieram a ser o que são (ou o que já foram), diante do nosso jeito brasileiro/neo-português/misturado de fazer as coisas: “Resultados de promessas ou do culto de Maria são ainda os nomes de muitos lugares do Brasil – Graças, Penha, Conceição (…) que tornam a nomenclatura geográfica do nosso país tão mais poética que a dos Estados Unidos com os seus Minneapolis, Indianápolis, e outros nomes em ‘polis’ que Mathew (sic) Arnold achou horrorosamente inexpressivos” (FREYRE, 2006, p. 475, nota 108 do capítulo IV). Na minha opinião sua caricatura é maldosa em excesso, haja vista muitos sítios americanos com nomes precedidos por “St.” ou correlatos, enquanto no Brasil temos designações tais quais Pirenópolis, Anápolis, e até mesmo muitos nomes americanizados ou germanizados, por exemplo, a depender da quantidade de imigrantes que vieram a povoar nossa terra. Eu acrescentaria ainda a cafonice de batizar monumentos urbanos com figuras que, com o passar das décadas e séculos, ficaram imensamente desprestigiadas, entre elas os generais da ditadura. Portanto, nomes feios e nomes bonitos não devem ser privilégio de nenhuma nação ou coordenadas em especial!
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Claro que o indígena acabaria por estar menos contemplado na obra, haja vista o título, “Casa-grande & Senzala”, já dar a entender que o principal ambiente a ser descrito – embora me pareça exagerada a crítica a Freyre de que ele tratou de descrever apenas os “feudos” do Brasil-Colônia em sua configuração interior apartada da mais geral realidade, pois compreendia muito bem toda a malha que interligava essas múltiplas zonas, setores e camadas sociais – seja o dos engenhos, do qual os índios, dentre as três raças, foram os que se mantiveram mais afastados. Muito embora sejam conhecidas as frustradas tentativas de empregar silvícolas como escravos, perdurando esse “mito da debilidade física” do nosso aborígene em relação ao negro africano, ou do seu caráter mais “arredio” e menos adaptável, o que mais parece uma balela para justificar a condição do negro: como se o negro não tivesse sido desenraizado de sua terra (e há até palavra para isso, diferente de “saudade” ou “nostalgia”: banzo)! Aliás, a resposta de Freyre estará estranhamente condicionada a um ideal evolucionista, de que as civilizações de Guiné, Sudão, Angola e demais sítios africanos eram mais complexas e desenvolvidas, sedentárias, e por isso muito mais aptas ao pesado trabalho de moagem e corte de cana que os semi-nômades índios americanos.
Na página 259, Freyre defenderá que nem em aproximações numéricas seria possível mensurar a população indígena ao longo do tempo. Fato é que Ribeiro, muitas décadas depois e com novos métodos à disposição, também estará reticente quanto ao caso, pela falta de evidenciações, embora ensaie um cálculo, que estipula o número razoável de índios nativos como de 5 milhões à época do “descobrimento”. Para se ter idéia da catástrofe, hoje essa população não deve exceder 100 mil. Tanto se fala de etnocídios em outras partes do globo que, sendo um brasileiro, me espantei que essa palavra estivesse ausente de praticamente qualquer historiador nacional que se ocupasse desse período (parece que só recentemente a Funai e outras instâncias, através de uma mudança de consciência, vêm possibilitando um ligeiro crescimento dessas populações). E foi uma agonia tão cáustica quanto lenta, sentida diferentemente que no México, no Peru, na guerra efêmera que se deu entre espanhóis e as civilizações americanas que possuíam um claro centro político, o que não é o caso da nossa população original. Aqui se morria devagar. A cultura jamais foi depredada, aniquilada por completo, houve uma continuidade, não obstante sofrida (o que contrasta, também, com a situação de verdadeira guerra palmo a palmo com as tribos que ocupavam o antigo território Oeste do que veio a se tornar os Estados Unidos, e de igual modo no Canadá). Melhor dizendo, para não parecer que falei por eufemismos: índios brasileiros, dizimados, senão fisicamente, culturalmente, devido aos traumas. Mas tudo tem o reverso da moeda, e ainda falarei, na conclusão, sobre a assimilação branca dos aspectos indígenas, em contrapartida – sua “contaminação”.
Entre as contribuições dos povos autóctones, Freyre lista: ajudaram na expulsão dos estrangeiros da costa brasileira, com seus dotes guerreiros; conhecimento da fauna e flora locais, grande interpenetração do território – capital cumulativo de geração a geração, pois tal base fora indispensável aos bandeirantes, que afinal eram mamelucos em sua maioria. Esses tais brasilíndios na nomenclatura ribeirista (RIBEIRO, 1995), se não eram tão familiarizados com a mata quanto os próprios nativos (e havia nativos que, depois de escravizados nas vilas, decidiam-se por ingressar nesse tipo de aventura com os mestiçados), por outro lado já estavam em uma integração muito maior com o habitat que seus pais portugueses, além de terem necessidades econômicas a suprir.
A influência indígena muito se verifica pela nossa elaborada culinária: tapioca, canjica, pamonha, dentre outros deliciosos “quitutes”, com que qualquer um sente uma intensa identificação. Diluídas, influências africanas também se tornaram irremediáveis. Mas a cozinha africana é tão rica que deixamos outras de suas “exclusividades” (até se tornarem populares por aqui) para o próximo tópico.
A questão do asseio diário e de certo grau de narcisismo e auto-enfeitamento também não escapa. Em paralelo, os europeus viviam séculos negros quanto à higiene pessoal, e não é pequena a comicidade dos relatos das nojeiras rotineiras das pessoas da mais alta estirpe, naquele continente, trazidos por Gilberto Freyre.
Mesmo que os índios não cultivassem a escrita, indiretamente auxiliaram os portugueses até nesse fim, fornecendo o conhecimento de pigmentos de tinta que se poderiam extrair da vegetação local. O brincar de boneca é outro resquício dessa cultura, embora tenha sofrido também incorporações africanas a posteriori. Os dialetos indígenas, que foram aprendidos pelos primeiros jesuítas para facilitar a catequização do povo, foram um grande incremento para os rituais musicais ecumênicos e ajudou a aproximar portugueses e silvícolas.
Freyre peca um pouco no batido item de classificar os índios como “ruins no trabalho braçal”. Negligencia, ainda, sua inteligência e experiência na arte do cultivo (não que negligencie em absoluto, há até passagens que comprovariam o contrário – mas é quase sempre a mulher a plantadora; segundo este autor, a mulher indígena teria sido uma figura muito mais importante que a metade masculina de seu “povo”).
NEGROS
O Engenho Noruega (antigo Engenho dos Bois), localizado em Pernambuco, não é o exemplo de propriedade mais esbanjante, nem tampouco é desprezível, portanto nos serve de exemplo-médio da estrutura dual casa-grande/senzala: a nordeste (pelo menos considerando a página do livro uma réplica dos pontos cardeais, a base da página, mais próxima do leitor, sendo o sul, o lado direito do leitor sendo o leste), numa espécie de grande quintal, uma profusão de negrinhos e branquinhos, crianças em suas brincadeiras, sempre misturadas racialmente, umas violentas, em que o alvíssimo filho do senhor-da-casa exerce seu domínio de chicote em punho, outras não. Mais de 50, 60 pessoas são retratadas dentro do casarão (não à toa tem esse nome de casa-grande), e 200 seria um bom número para o total de escravos da propriedade, segundo Freyre e autores que ele cita. As cozinhas mereceram esmero do pintor/desenhista: lá, como veremos mais adiante, há uma especialização de funções invejável até mesmo para um industrial fordista. Ao norte há um pomar, um córrego, gado ao relento. Ao sul e a sudoeste, charretes chegando ao portal da casa, negros transportando materiais e mercadorias com auxílio animal. Vêem-se prédios que devem corresponder às casas de purgar, de destilar e à da caldeira, integradas e auto-suficientes, no somatório interno (sem falar em outras estruturas não-citadas, mas presentes no engenho), para a feitura e exportação da cana-de-açúcar consumível. Se o engenho era pouco eclético e não era uma autarquia na acepção mais abrangente da palavra, isso se devia a uma mera escolha pragmática do proprietário: era mais rentável se dedicar estritamente à produção desse bem de consumo tão valorizado que plantar e cultivar insumos mil, que podiam ser adquiridos nas vilas. Eis a descrição sucinta de uma unidade do meio de produção monocultor. Na iconografia do livro, a idéia é ainda mais direta e rica.
Que o negro africano fosse, como mão-de-obra não-livre, a classe mais desprivilegiada nas relações de poder, não é essa obviedade que pretendemos esmiuçar, como deixamos claro na introdução com uma extensa nota de rodapé. Mas, dentro disso, quais a relevância social e o grau de influência do negro frente aos demais troncos? Não era necessário ser cidadão para que tivesse um peso considerável na conduta dos gentios e na construção (involuntária) de um projeto de nação.
Vale dizer que a introdução do negro no sistema colonial brasileiro data de 1538 (RIBEIRO, 1995, p. 161). Coisa de que não temos absoluta noção, posto que mais nos interessou, no período escolar, por exemplo, a data do descobrimento português, e tampouco temos dados confiáveis sobre a escala de tempo aborígene pré-colombiana, nos restando a estimativa de que o grande grupo chamado tupi-guarani tenha chegado à costa brasileira cerca de 200 anos antes de Pedro Álvares Cabral.
O trecho que vou colar a seguir nos enche o olho de preocupação, da mesma preocupação freyreana em falar dos negros até mesmo na unidade dedicada aos aborígenes: “sociedade patriarcal no Brasil. Sociedade que teve no negro, importado de várias áreas africanas, um dos seus elementos sociologicamente mais importantes. Importante, do nosso ponto de vista, mais como escravo do que como negro ou africano, embora sua importância como negro ou africano seja enorme e suas áreas de origem mereçam a atenção e os estudos dos especialistas.” (2006, p. 238, nota 23 do capítulo 2). É realmente tanta a ânsia do autor em condensar toda a maravilha cultural africana que isso às vezes o atrapalha. É no início do primeiro capítulo exatamente criado para esse fim que enxergamos uma clara tomada de partido, que até ali vinha sendo evitada pelo escritor. É aqui que as críticas dos comentadores do legado freyreano mais têm sua razão de ser, porque a dado ponto Gilberto parece se entregar a um misto diletante de tratado de biologia com epistemologia, circunscrevendo-se a um debate que parece ser o ponto mais defasado de seu livro, um debate entre lamarckistas e weismannianos, com direito a várias notas de rodapé acusatórias e considerações sobre o evolucionismo e métodos rústicos como medidas de crânio, (b)ranqueamento de raças e climatologia. De todo modo, quando se assenta em oposição à linha que chama de dominante entre os positivistas norte-americanos, nosso autor retoma o bom senso na pesquisa.
No que não pude deixar de enxergar a felicidade do título que escolhi para o artigo, o que se deu antes mesmo das leituras, leio à página 367 de “Casa-grande & Senzala”: “trazemos quase todos a marca da influência negra”; e virando a folha, “Não nos interessa, senão indiretamente, nesse ensaio, a importância do negro (…) no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. (…) muito maior (…) que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.”. Freyre reconhece a multiplicidade de povos africanos e americanos, pois compactua com a teoria do difusionismo e vê graus civilizacionais divergentes, matizes/manchas no mapa, à la Kroeber-Herskovits. Portanto suas afirmações pregressas devem ser encaradas como generalizações introdutórias, isto é, ele considera o africano, em média, mais desenvolvido que o indígena médio, se é que é possível fazer tal abstração.
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Em complementaridade a esse nível todo de importância que é atribuído à raça, e no que toca mais ao trabalho: “[os negros] desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.” (FREYRE, 2006, p. 390). Esse discurso, excetuando-se a sobrevalorização do negro, que sozinho é a mão destra frente às outras duas matrizes, é a exata antecipação de Darcy Ribeiro, tão preocupado em relatar um “processo civilizatório” em uma (hiperbólica, ao meu ver) “Roma tropical”.
Havia critérios estéticos na seleção dos negros para sua fazenda, e o comprador tentava relacionar a beleza, ou senão qualquer outra característica de saúde, também com a inteligência, para direcionar, a partir daí, o escravo a uma função mais elaborada e mais próxima da casa. Freyre narra cativos vindos de alguns navios que se sobressaíam aos demais, legítimos “negros de elite”, que fariam a ralé estadunidense (insiste nisso!) ser vítima de chacota. De modo geral podemos isentar as amas-de-leite, cozinheiras, copeiros e negrinhos que andavam pela casa-grande das violências e abusos perpetrados em localidades mais marginais dentro da propriedade. Lembremos, inclusive, como diz Foucault, que algumas coisas só nascem quando passam a ser ditas, nomeadas: “violência doméstica”, eis algo que ainda não existia, isto é, só se olharmos com olhos do presente para esse passado. Portanto, a própria esposa do senhor-de-engenho, por mais rude que fosse o tratamento recebido, e essa gente toda, não eram exatamente violentados, pelos parâmetros da época.
Ainda no que se refere ao valor do negro para o trabalho, nas minas teriam sido imprescindíveis metalúrgicos, pois nem o homem branco saberia nelas operar. Há que se dizer que, em muitos engenhos, a tecnologia reduzia a necessidade de tanta mão-de-obra (referimo-nos anteriormente à cifra de 200 trabalhadores num mesmo espaço), mas normalmente os senhores mantinham um excedente supérfluo e ostentatório. Não se era, pois, “moderno”, na acepção mais capitalista e liberal da palavra. Não se procurava investir o lucro em aquisição de novos equipamentos num ritmo racional para maximização de lucros, isto é, não se punha a propriedade privada quase nunca em risco, essa que é uma ousadia típica alavancada pela burguesia não-patriarcal.
Só que apesar disso podemos divisar racionalizações em outros pontos: cada negro possuía o conhecimento estritamente necessário para o desempenho de sua função na empresa da cana-de-açúcar, e com base nisso se estabelecia uma hierarquia intra-escravizados, mais ou menos evidente a depender de que setores estamos falando. Podia-se variar de quase-bicho a “praticamente da família”, cuidar do trabalho mais maçante e degradante até coisas como “mestre-de-chaves” (FREYRE, 2006, p. 567, nota 100 do quinto e último capítulo).
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Na língua, o peso da negritude é avassalador. Exemplos de vocábulos introduzidos pelos negros no nosso idioma: dengo, cafuné, caçula, mandinga (que parece ter sido originalmente o nome de um povo afro), moleque, quenga, bunda, zumbi, vatapá, quindim, catinga, birimbau (com “i” em Freyre, hoje dicionarizada com “e”), oxente (muito lançamos mão do tal “oxi” mesmo em Brasília)… Todas muito mais empregadas no Norte que no Sul (não região Norte no senso atual, mas abrangendo também o Nordeste, e conseqüentemente regiões como a nossa, que receberam altíssimo índice de imigrantes de lá provindos, em data posterior à publicação desse livro, aliás). Outros termos consagrados como “bicho” (que usamos até para gente!) provêm, é mais provável, dos indígenas.
Uma grande questão facilmente vislumbrável por nós aprendizes na erudição é a seguinte: “um vício em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.” (FREYRE, 2006, p. 220). Sinceramente, não sei se houve um retrocesso (avanço) no quesito. O Português ainda se me surge como quase esquizofrênico (ou “órfão”), na hora da tradução do seu uso ágrafo para o papel ou vice-versa! Coisa que, como destacou Freyre, o negro que muitas vezes alfabetizou os meninotes da casa tentou remediar: “Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias” (p. 413).
Não só isso, mas “o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo”, graças à disseminação de histórias e estórias indígenas e africanas. Foi também o negro responsável pela introdução do islamismo no Brasil. Muitos das senzalas eram versados no Alcorão. Aqui declara Gilberto, em oposição ao que veremos em breve dos punhos de Darcy, havia uma relativa tolerância de costumes e rituais dentro da senzala; folguedos e dispensas dos trabalhos nas datas cristãs mais importantes. Há muito debate e polêmica quanto ao dia de trabalho ou descanso dos escravos no domingo, data sagrada.
Reconhece-se, maior influência africana que indígena na família moderna brasileira. “O negro é o componente mais criativo da cultura brasileira”: quem vai dizê-lo é Ribeiro, e não Freyre! Mas a verdade é que para o primeiro essa criatividade foi muito mais tolhida do que levada a cabo.
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O autor assevera que a influência anglo-francesa amainou a força da cozinha afro-brasileira ao longo do último século (podemos dizer, então, 200 anos, levando-se em conta a continuidade desse processo após a publicação de “Casa-grande & Senzala”); isto é, “desapimentou” um pouco os pratos… Em 1834 houve, por exemplo, a 1ª importação de gelo, em um navio inglês, para território brasileiro. O casamento desta nova “tecnologia” com as frutas tropicais seria da riqueza que hoje se vê em quase qualquer esquina, com a multitude de sabores exóticos, muitos dos quais imaginaríamos exclusivos de nossa terra se – quem diria! – os europeus e “desenvolvidos” não fossem os primeiros a importar delícias como o sorvete de cupuaçu! Consta ainda, em Freyre, ter sido a alimentação do negro regrada e balanceada. Isto é, se o engenho era bom… Porque não faltam os casos em que até o “opulento” senhor passava fome, em troca de gastos vãos em outros departamentos.
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Darcy certamente utiliza em larga medida da própria obra clássica de Freyre para caracterizar o negro, de forma que durante muitas páginas pensamos estar tão-somente diante de um comentador ou reprodutor, mas não no sentido pejorativo: significa que Freyre havia-o cumprido muito bem e, se quisesse retratar o negro com fidelidade, Ribeiro não poderia fugir muito das verossimilhanças. Não obstante, o que mais traz relevo a essa reescritura são informações pontuais como a de que o negro rendia de 7 a 10 anos em cativeiro, em média, e depois disso se tornava inutilizável (e aí sendo possível a alforria) ou morria (RIBEIRO, 1995, p. 118). Narra-se ainda todo o procedimento de aquisição do negro na costa oeste africana, sua embarcação em navios mal-cheirosos (e não só isso) e sua “vida” (assim mesmo, entre aspas) na nova terra, onde iria “trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano” (RIBEIRO, 1995, p. 119). Consta ainda que no dia de domingo podia se entregar a comer de sua horta auto-cultivada, que não dava para muito, mas repunha modestamente as vitaminas de que o corpo precisava para continuar funcionando para desempenhar as tarefas de burro de carga a ele ininterruptamente destinadas. Recebia castigos semanais que serviam de “prevenção” e “pedagogia”, isto é, alertavam o cativo de que ele deveria se manter produtivo e comportado, e que não se metesse a fugir, pois se fosse apanhado as conseqüências seriam muito piores.
Açoites de chicote, mutilações a esmo, arrancada de dentes… Ribeiro nos brinda com um relato mais sórdido que o freyreano, sem dúvida. Mas vai do estilo ou então de uma necessidade produzida exatamente pela falta de maior “crueldade” em “Casa-grande (…)” (não que não haja uma lista considerável de males perpetrados aos escravos, mas eram ocorrências consideradas isoladas, não foram tratadas estatística ou estruturalmente, o escritor parece que não estava “com a mão pesada” nessas horas), à guisa de preencher esse vácuo: Ribeiro não economiza no léxico ao chamar de etnocídio, genocídio e chacinas indiscriminadas o que houve em solo pátrio desde que as naus portuguesas aportaram (estabeleceram-se “moinhos de gastar gente”). Relata até casos grotescos de mobilidade social, na época da mineração, em que podia suceder a anomalia de vermos negros subitamente enricados que se alforriavam e se sagravam senhores de muitos escravos!
CONCLUSÕES
Contraporemos a opinião de dois autores da nossa segunda unidade do curso de Sociologia Brasileira para tentar julgar os méritos e deficiências gilbertofreyreanas-darcyribeiroanas em um panorama mais contextualizado:
Em ‘Massangana’ Nabuco revela o complexo de sentimentos associado à idéia que ele foi pioneiro em veicular no Brasil e que seria retomada e desenvolvida por Gilberto Freyre: a idéia de que o sistema escravocrata era um mal que afetava irreversivelmente tanto escravos quanto senhores, enredando-os numa miríade de interesses libidinais comuns. (MORICONI, 2001, p. 171)
E agora o antitético Ventura:
O patriarcalismo, adotado por Freyre como molde interpretativo, encobre o caráter mercantil e violento das relações de produção sob o cativeiro e concilia a sociedade brasileira com seu passado escravocrata. Ao privilegiar o patriarcalismo e generalizar características da escravidão doméstica, Freyre construiu o mito da brandura e docilidade nas relações entre senhores e escravos. (1991, p. 66 [negrito meu])
Há quem acuse Gilberto Freyre de complacência quanto ao regime de plantation e que ele teria defendido a escravocracia do ponto de vista de sua necessidade para que o projeto colonial fosse levado adiante: “Terra de insetos devastadores, de secas, inundações. A saúva sozinha, sem outra praga, nem dano, teria vencido o colono lavrador; devorando-lhe a pequena propriedade do dia para a noite; consumindo-lhe em curtas horas o difícil capital de instalação; o esforço penoso de muitos meses. Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala.” (FREYRE, 2006, p. 323, capítulo III). Concepção talvez estrutural da História, mas passando longe de uma justificação moral, porque há muitas outras passagens do livro que entram em contradição com esta que foi citada.
Ora, em sua descrição etnográfica, Freyre retrata essa verve muito mais melíflua da relação entre senhor e escravo, essa maneira sui generis do superior se dirigir ao inferior, por vezes sem bravatas, sem traços tirânicos e autocráticos, com aquele ar matreiro, semblante que muitos aproximariam do próprio africano espontâneo e “alegre” (como quer Freyre), sem pestanejar; descrição humana que mais ou menos se aproxima do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Mas nem por isso invertem-se os papéis, ou nivelam-se os papéis. O senhor – nem por sua língua mais macia, por seu trato mais terno com o subalterno – nem por isso deixa de ser senhor; nem o (alguns dos) escravo, por ser muito mais chegado à família que em um modo de produção outro, por participar muitas vezes da educação do filho branco do senhor de engenho, deixa de ser escravo. Nem deixa de haver um compêndio oceânico de casos de violência brutal do dominador contra o oprimido. Se esse mito de que fala Ventura é realmente muito falado, talvez se tenha de culpar muitos dos intérpretes de Freyre e dos exageradores desse tom de “democracia racial”, em primeiro lugar.
No que reside esse sentimento de “unidade” ou de integração senhor-escravo (ex-senhor/ex-escravo) narrado por Gilberto Freyre? Sabe-se que tanto um como o outro lado são insuprimíveis. Eles trocam fluidos incessantemente. Assim constrói-se uma cultura. Não se aniquila um modo de existência, fazendo-se uma deglutição completa. No máximo há uma antropofagia, diria Oswald de Andrade. Mas aquele que se “alimentou” não será jamais o mesmo. Nunca sequer foi-se uma unidade, cabendo sempre à idéia de relação a definição dos sujeitos e das culturas. Sendo assim, há muito de Marx, Freud e Nietzsche em Gilberto Freyre: cônscio de que na dialética das raças toda experiência importaria, se refletiria, no futuro, e que portanto mesmo o “modelo hegemônico” (ou “modo de produção”, para usar uma terminologia marxiana) carregaria em seu bojo tudo que já lhe foi antitético (uma pessoa que morre continua ecoando em nosso ser, sua personalidade continua para nós, nos julgando, participando do nosso projeto de ser), não faria o mínimo sentido idealizar uma pureza racial ou qualquer tipo de gradual ou súbito “melhoramento”, reeducação, etc. Nem haveria qualquer diagnóstico apocalíptico em cima disso: quando é que houve uma pureza de raça e quando ela teria sido realmente desejável? Mesmo em solo europeu, asiático, hindu? O mundo não fôra sempre um caldeirão multiétnico? A tal harmonia que querem ver em Freyre não é bem justificar um passado que é tabu ou fazer de conta que ele foi “menos mau”, mas a constatação de que nós, hoje, fomos tanto senhores quanto escravos, ambos habitam em nós, que essa dicotomia é falsa, porque ultrapassada, do ponto de vista do sujeito contemporâneo em busca de sua identidade “real”, “complexa”. Que no frigir dos ovos trata-se de um bloco só, um problema civilizacional só, que não poderia mais ser analisado da maneira esquizofrênica como vinha sendo. Pouco adianta o discurso de vitimização de uma parcela ou de demonização da outra parte, porque isso seria uma amputação de um membro vital do próprio organismo nacional (se é para usar uma metáfora biologizante em homenagem a tempos em que ela já foi quase obrigatória). Não significa também que o escravagismo, que não foi implantado aqui motivado por racismo, não tenha sido compreendido de forma distorcida por inúmeros grupos sociais sucedâneos, que realmente se utilizaram das prerrogativas de cor; não significa que a estrutura secular da casa-grande e da senzala não tenha feito com que patrões não selecionassem empregados de cor porque cressem, do fundo de suas experiências pessoais, que brancos fossem mais qualificados inerentemente para o trabalho, isso tanto durante o regime escravocrata, quando já havia gente de cor liberta, e em que havia setor de serviços na Colônia, quanto muito tempo ainda depois e até os tempos atuais. Não significa, em suma, que o autor tenha varrido toda a questão racial para debaixo de um tapete de Poliana, como muitos ainda insistem. Querer que a questão brasileira do preconceito racial fosse equiparada à norte-americana ou à sul-africana, no entanto, seria ultrajante. Ao longo de toda a obra é possível ver Freyre dialogando com autores das mais variadas estirpes e tendências e tentando abarcar todos os matizes, evitando esses “ismos” tão pedantescos e inúteis. Daí toda a ênfase na parte sexual: é no ato do coito que esta “unidade” ou projeto de um povo único, embora multifacetado, estão mais bem-representados.
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Interessante observar que o conceito de “neobrasileiro” é de fato anterior ao de brasileiro, pois este viria a surgir somente no século XVIII (para se ter idéia, até o século XVII o tupi-guarani era o idioma mais falado no território colonial – para a padronização do uso do Português, os afro-brasileiros foram fundamentais). O prefixo “neo-” é para designar o “novo habitante das Américas”, no que se inserem alguns mamelucos (os que preferiam uma existência mais urbana e menos aventureira, ou seja, não-bandeirantes) e a virtual totalidade dos filhos de luso com luso (e nota-se aí que são populações plurais, divididas em algumas classes, uns comerciantes, outros senhores, outros funcionários delegados pela Coroa, muitos até filhos de padres!). Em seguida – conforme os mestiçados ou transplantados a esta nova terra iam “se acostumando” com o status da “Ninguendade” (ou antes, vão-no diluindo), termo ribeirista – cunhou-se o termo brasileiro, ou a idéia de “brasilidade” como são entendíveis ainda hoje, designações pátrias de uma novíssima etnia tropical (embora provinda de matrizes milenares!) que não se julgava nem portuguesa, nem africana, sequer aborígene, e em que havia bastantes pontos em comuns para que as identidades não fossem rachadas em outros rótulos raciais como “mameluco, caboclo, cafuzo, mulato”. Em suma, nós. Ninguendade: de categoria residual, sem tempo nem lugar, a identidade, exatamente a palavra para nos dizer aquilo que somos em contraste com tudo que não somos, por falta de melhores meios. “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.” (RIBEIRO, 1995, p. 120).
Como vimos, a “pirâmide darcyana das etnias”, aquela que eu esbocei tentar encontrar nas considerações introdutórias, prima pela parcimônia, porque não só este autor dedica o mesmo número de páginas, aproximadamente, a cada raça original/pura, como tenta encontrar um método novo para tratar do problema, através dos híbridos. E o super-híbrido somos nós, mestiços de mestiços de mestiços. Alguns que lutam em movimentos mais “simplificadores de posição” (não por ignorância, mas por necessidade) poderiam achar essa solução tão boçal quanto o sustento de uma democracia de raças, mas Ribeiro dedica muitas páginas para falar apenas do negro, sem nada que “suavize a dialética”, se assim podemos dizer, e esperamos que sirva de “consolo” aos que têm uma forte auto-identificação como negros e não concordaram com o ponto de vista expresso até aqui neste ensaio:
Darcy Ribeiro evoca “saídas” (ou “exceções reparadoras”) para os bolsões de miséria continuamente perpetuados pelos mais ricos da nação, saídas não-definitivas ou insatisfatórias, mas que demonstram o quanto, circunstancialmente, a raça negra se mantém pulsante, a despeito de toda a desigualdade que a assolou até aqui: na música popular brasileira, no futebol e em outras atividades onde a hierarquia depende menos do crivo do homem branco industrial (será?), este encontra seu espaço. “O negro vem a ser, por isso, apesar de todas as vicissitudes que enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os índios, mais singulariza o nosso povo.” (RIBEIRO, 1995, p. 223). Ressalta-se como um dos pontos mais graves, que ajuda a transformar uma questão que não é de todo racial em mais racial do que devera ser, é o do racismo do negro quanto ao próprio negro: aquele que galgou postos até uma posição privilegiada tende a considerar os outros negros preguiçosos e a pensar seus suplícios como merecidos, dada a vida que levam, em clara continuidade da “síndrome de capataz”; não só isso, mas seu ideal de beleza, contaminado pela mídia, é o do “homem branco”; não são raros os negros exitosos a casarem-se com alvas loiras, sem nem ao menos refletirem sobre sua escolha. Mas este é um tema polêmico: Freyre insistirá no exemplo oposto, o do branco que, se não fosse com negra, não seria com ninguém (embora casar fosse uma outra história)… De qualquer maneira, resta acrescer que esse fenômeno do negro que age contra seus pares é batizado por Ribeiro como “racismo assimilacionista”.
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Parece que lidamos com Heisenberg aqui: ganha-se em precisão etnográfica, perde-se em força argumentativa (com o mais meticuloso Darcy, em relação a Freyre). O ideal é enxergar as coisas do seguinte modo: ambas as obras (“Casa-grande & Senzala” e “O Povo Brasileiro”), resultados de pesquisas ambiciosas e que deixam um forte cheiro de “construção da consciência nacional” no ar, são antes complementares que antitéticas, pois cada uma a seu modo jamais nega os postulados que tornaram a outra possível, mas como que os ressalta de ângulos díspares – só não devemos negar, numa consideração sem rodeios, que “Casa-grande & Senzala”, por ora (e do futuro não façamos prognósticos), permaneça a mais clássica entre elas.
Poderíamos ser acusados, ao levar em conta dois autores que se aproximam em suas concepções e não adentrar com esmero em outras bibliografias, de “conciliacionistas em demasia”? Certamente disso nos acusarão, mas contra isso não há remédio! Além disso, seria melhor do que, em tempos de pós-modernidade (ainda?), ser tachado de fragmentário ou atomista, afinal a análise de grupos sociais ou do maior grupo social possível na escala terráquea (a de um povo ou nação) demanda que pensemos dalguma forma num coletivo. Como se pode ver, talvez o resultado final do trabalho tenha sido até diferente do título proposto, mas decidi mantê-lo para que se testemunhe com transparência o quanto é “difícil” falar do assunto; mas também o quanto o tema é dinâmico e o quanto foi proveitoso e inesperado chegar a essa conclusão de que os movimentos de inclusão das minorias e a minoração do racismo e das desigualdades sociais de todo e qualquer tipo precisam ser repensados em uma ótica que os integre entre si, ao invés de construírem-se o tempo todo trincheiras entre “desfavorecidos que são mais iguais que outros desfavorecidos” (ao que parece!) e enfraquecer a luta. Uma elite “áspera” e esperta como a brasileira tem muito mais meios de coibir movimentos populares se eles se (des)articulam dessa forma fraturada. E o fazem às vezes inconscientemente. E a base da pirâmide age de modo “elitista” (ideologicamente), o mais das vezes sem se aperceber, pois a inclusão na sociedade de consumo tornou-se a meta hegemônica. As classes médias querem se elitizar; as classes baixas querem se aburguesar; as classes famélicas não anseiam por outra coisa senão ascender ao poder de barganhar pequenos itens de consumo que possibilitem o dia do amanhã. E a elite, óbvio, quer as coisas como estão, em que pese o mundo sempre mudar. O Brasil muito mudou, mas a classe dirigente soube se manter na crista da onda, até agora.
P.S.: Gostaria ainda que no curso houvesse um tiquinho de Raymundo Faoro, pois já há um tempo me recomendam a leitura de “Os Donos do Poder”, que parece ser uma excelente pedida para complementar as coisas que vim listando aqui, principalmente no que concerne à nossa inacreditavelmente persistente “elite dos muito poucos”, tão peculiar se comparada às de outros países, inclusive vizinhos, a ponto de Gilberto Freyre declarar que mais parecemos uma “Rússia brasileira” que uma Argentina; elite essa acometida ora ou outra por manias de perseguição e paranóias caricatas, se não fossem trágicas, capazes de fazerem aflorar velhos dogmas improfícuos como “a limpeza da mendicância ou das favelas via força policialesca”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal; apresentação de Fernando Henrique Cardoso. 51.ed. rev. São Paulo: Global, 2006.
MORICONI, Ítalo. Um estadista sensitivo. A noção de formação e o papel literário em Minha formação, de Joaquim Nabuco. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº 46, Junho, 2001.
PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: PÉCAUT, D. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
PEIRANO, Mariza. Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; RUBEN, Guilhermo Raul (Orgs.). Estilos de antropologia. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VENTURA, Roberto. Civilização nos trópicos? In: VENTURA, R. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.