Emoções & Sentimentos

UnB – Universidade de Brasília

Faculdade de Educação

Curso de Pedagogia

Disciplina: Psicologia da Educação

Semestre: 1º/2010

Professora: Silmara Carina

Turma: M

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Tema da atividade da Unidade I: Emoções e sentimentos

Comentários da professora: Fantástica esta sua capacidade de relacionar o conteúdo com a música. Ótima atividade, valeu mesmo! 1,5 (ah! Estou ouvindo a música)

[Alterações cosméticas no texto, principalmente grifos, em 21/10/2023.]

A) IDEIA PRINCIPAL DO ARTIGO

Optei pelo texto “Emoções e sentimentos no processo de aprendizagem: um estudo de caso”, que trata dos problemas escolares e familiares da supostamente “retardada” Mara [nome fictício], que no entanto foi apontada como uma pessoa normal por vários exames – os exames deram alguma alteração, mas não de retardamento ou déficit mental, além de se expressar de forma clarividente sobre si mesma, embora fosse vítima de preconceito devido a sua voz anasalada e alguma queda de desempenho em determinadas matérias na escola, sem receber apoio de educadores e dos próprios membros da família por muito tempo, até que fosse uma adulta e “encontrasse seu caminho”. O texto mostra os vários percalços, avanços, recuos e balanços, desse processo ininterrupto de construção da própria identidade por parte do sujeito, o que tem sem dúvida bastante ligação com as condições encontradas em seu meio e entre as personagens da “trama”, pois um convívio hostil com seus semelhantes desesperava e encolhia Mara, enquanto que incentivos e demonstrações de reciprocidade lhe incutiam características comportamentais positivas.

B) DISCUSSÕES EM SALA E CONTRIBUIÇÕES

A professora Silmara recordou, aos que leram o texto até a aula, ou apresentou, aos demais, vários exemplos que as cinco psicólogas que monitoraram Mara puderam apurar em sua pesquisa, fosse por intermédio de entrevistas com a mãe da menina-mulher (a depender da fase de sua vida), dentre outras pessoas do círculo íntimo, de análise de documentos médicos ou pedindo para que Mara relatasse passagens de sua infância-adolescência em minúcias. Um dos exemplos mais instrutivos e fortes do texto, inclusive, foi referenciado, e nos faz pensar nessa dicotomia menina-mulher que citei agora há pouco: quando Mara começou a se vestir como uma moça, jovem, crescida, sua mãe interpretou isso como (ou acusou-a de, publicamente, por mais que nisso não acreditasse) ingresso na prostituição, vulgaridade, sem-vergonhice. Mara não conseguia emprego fácil, riam dela na escola, sempre impediam que ela atingisse qualquer objetivo expressivo com o velho argumento de que “nascera incapaz”, travavam seu desenvolvimento. Em algumas facetas, pode-se dizer que sua mãe a superprotegia do mundo. Se não se dão as condições para que alguém atinja o status de mulher, mas se o próprio corpo e a mente não se enquadram mais na pecha de “infantil”, começa-se a trafegar numa zona nebulosa e flutuante entre esses dois estágios. O pior é quando as instituições ao redor do sujeito não garantam uma transição menos traumática.

Quanto ao cenário da sala de aula, que é tão interessante para nós iminentes professores, lembro-me do comentário da aluna Thays sobre sua irmãzinha, tida como “lerda” em seu seio familiar e também na escola que, após ingressar em aulas de artes-marciais, teve uma sensível modificação no modo de se auto-conceber, passando da omissão e da resignação diante das circunstâncias desfavoráveis ao enfrentamento das pessoas, que tinham então de reavaliar suas opiniões sobre o caráter desse ser, caso não quisessem incorrer em erro, pois viam diante de si claramente uma nova individualidade, mais bem-resolvida, criativa, persistente, autônoma, conforme veremos mais abaixo. Ora, nós educadores em formação temos um grande papel ao lidarmos com crianças e jovens em diferentes fases de desenvolvimento (mesmo dentro de uma mesma sala de aula), enfrentando diferentes dificuldades ou apresentando mil e uma gradações de habilidades e potencialidades. Cabe-nos não magoar, subestimar ou impor barreiras ao aluno, tentar dotá-lo das condições, da instrumentação (metaforicamente falando) necessária para seu auto-aperfeiçoamento; o que não é suficiente, uma vez que não pensamos por ele, mas o impulsionamos. Não que fosse o caso de Mara, mas tampouco seria inteligente recair no erro reverso, superestimar uma individualidade em sala de aula, iludindo-a com mundos e conquistas que talvez seja exigente demais pedir que ela desfrute ou viva, ou que qualquer aluno obtenha em seu futuro. Há que se perceber esse tênue equilíbrio entre limitações e brechas para exercer um talento “adormecido”/latente/incipiente. Seria importante conscientizar os outros alunos de que eles podem ajudar seus colegas com dificuldade de aprendizado, que eles não são passivos, meros figurantes nas biografias alheias, que suas brincadeiras, perversões, ou auxílios, dicas, influenciam decisivamente a vida de outrem. Portanto, este lado da educação, que não se refere aos conteúdos, essa sensibilidade que um professor tem de possuir e cultivar, foi o principal elemento que me direcionou ao tema, me levou a utilizar o estudo de caso de Mara em detrimento dos outros textos.

C) JULGAMENTO DA FORMA E CONTEÚDO DO ARTIGO

O texto se torna “previsível” a partir de um certo ponto (tópico 1.5, digamos), pois já entendemos perfeitamente bem, após várias reiterações das difusas instâncias, o quanto Mara era maltratada e o quanto apenas uma mudança significativa no seu universo relacional poderia provocar uma “reviravolta”. Claro que esperamos por essa reviravolta. Não diria que isso é de se esperar em qualquer artigo científico, mas senti a narrativa atraente desde o princípio – e o que há de errado em ser-se elegante e mais prosador nas imediações da ciência, que tanto carecem de uma riqueza lingüística na maioria de seus textos? – e esperava, como quem sabe que a autora tem um ás na manga, pelo acontecimento excepcional que levaria Mara a uma ruptura paradigmática consigo mesma. Um dos pontos altos do texto são as aspas de Mara, que nos fazem pensar, no íntimo, desde o primeiro momento, que ela é uma injustiçada. Acho que, no fim das contas, após o clímax, que defino como a campanha eleitoral que foi o primeiro emprego de Mara e seu retorno aos estudos, num novo turno, na educação de jovens e adultos, a narrativa se encaminha bem, sem tantas voltas mais (as opiniões da mãe, dos irmãos e professores de Mara chega a nos estafar), até as considerações finais, que sintetizam com maestria todo o propósito das observações e toda a “novela” que se transcorre na mente de Mara. Talvez tenha faltado um pouco mais de detalhamento ou acompanhamento dessa “nova Mara”, que vemos apenas ser esboçada. Gostaria de saber o que lhe aconteceu depois. Também não ficou claro se a autora, supervisora das psicólogas que se encontravam pessoalmente com Mara, chegou a conhecer a menina-mulher. Porque sempre penso nas exceções mais esdrúxulas possíveis: e se a própria estagiária maltratasse Mara, como isso poderia ser fiscalizado? Mas isso é de ordem secundária diante de tudo que já foi discutido.

D) UMA MÚSICA PARA ILUSTRAR

Minha “imagem” escolhida para demonstrar minha compreensão do texto foi:

Titãs – Autonomia

refrão

O que eu queria

O que eu sempre queria

Era conquistar a minha autonomia

O que eu queria

O que eu sempre quis

Era ser dono do meu nariz

Os pais são todos iguais

Prendem os seus filhos na jaula

Os professores com seus lápis de cores

Te prendem

Na sala de aula!

refrão bis

Ia pra rua, mamãe vinha atrás

Ela não me deixava em paz

Não agüentava o grupo escolar

Nem a prisão domiciliar

refrão bis

Mas o tempo foi passando

Então eu caí numa outra armadilha

Me tornei prisioneiro da minha própria família

Arranjei um emprego de professor

Vejo os meus filhos,

Não sei mais onde estou!

[trechos grifados por mim]

Como está evidenciado nessa letra da banda de punk (posteriormente pop rock) paulista surgida nos anos 80 Titãs, o processo de socialização e o incômodo – tomadas as devidas proporções – de Mara acontecem, em intensidades diferentes, mas ainda assim, em todas as biografias. O paradoxo é que sempre estamos em transitoriedade, da escravidão (que nunca é inteiramente uma escravidão, pois os pais, ao nos encerrarem na jaula, a mãe, ao “perseguir” o filho, estão protegendo suas crias) rumo à liberdade, esta jamais concretizada, pois o indivíduo se vê rodeado de outras instâncias – seu pai nunca foi livre, nunca tiranizou o filho, no sentido inicialmente concebido. Talvez não caiba a mim o papel de advogado do diabo da família de Mara; o que me importa é o diagnóstico final (provisório, mas o último, no artigo) de Mara sobre sua própria trajetória, uma certa segurança envolta em humildade, ao reconhecer em si mesma a obtenção de uma autonomia relativa frente à sociedade, como a de todas as outras pessoas. Além disso, embora Mara tenha um abrangente leque de opções quanto ao que poderá vir a ser ou realizar, escolhi esta “imagem” do adolescente transviado que se torna professor pelo humor, pela auto-identificação e pela disciplina Psicologia da Educação como um todo, que é direcionada a futuros professores.

textos proibidos I

Contexto: Leitura de Elogio da Velhice, de Sêneca

Da minha família, saibam, ó sucedâneos, que ninguém é importante. Nem eu ainda o sou, aos 28. Será que vocês sabem quem foi JAG? Um inoportuno que controlava bilhões de dólares e se autoproclamava deveras o Rei da Ciência Brasileira em nossos timoratos tempos. Era o que se pode chamar, por associação, de meu chefe. Provavelmente sua biografia, ou traços de uma, só poderia ser agora contada por mim, do que alegremente me dispenso. Talvez que eu seja apenas “o pai de alguém”, mas certamente não o “filho de Fulano”. Se imortal alguém de meu tronco, depois dos 50, devera ser, já devia ter sido reconhecido.

GILBERTO FREYRE, DARCY RIBEIRO E A MARCA DO NEGRO DESDE O SISTEMA COLONIAL BRASILEIRO: Um estudo comparativo

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Sociologia Brasileira

Semestre: 1/2010

Professora: Mariza Velozo

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Dissertação acerca de um tema nacional de livre escolha, baseando-se no escopo teórico oferecido pelo curso

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS

PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL

BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS

NEGROS

CONCLUSÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Sobre a delimitação do tema: a idéia inicial era fazer uma comparação de como a vida do negro escravo era enxergada (em sua falta de salubridade das senzalas, no caráter penoso do trabalho, na eventual dieta, no nível de liberdade que podiam desfrutar, religiosa, moral e cívica, no que tangesse ao lazer enquanto não estivessem cumprindo as ordens de seus donos, etc.) por diferentes autores; seria, nas condições mais ideais, até, tentar responder uma dúvida que uma vez se me suscitou em aula de História Econômica Geral, nesta universidade, ainda em 2008, quando o professor da cadeira disse que os proletários ingleses do século XIX tinham uma existência muito mais precária que a dos nossos escravos, o que, me recordo, havia chocado a turma. Certo é que esse problema continuou reverberando em minha cabeça de quando em vez, mas nunca tive tempo de pesquisar sobre o assunto, e achei que esta matéria seria a deixa.

Mas tudo adquiriu contornos mais nítidos, realmente, quando os prazos do trabalho se avizinhavam e houve a sugestão em classe de Sociologia Brasileira, partindo da própria professora, tangendo a pirâmide étnica ou inter-racial nesses dois autores (Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro). Pode-se julgar que não intento aqui um esmiuçar profundo acerca do indígena e do próprio branco europeu, subsistindo aquela vontade de falar sobre o afro-descendente em especial, devido principalmente a limitações temporais. O que importa é que o trabalho ganha muito mais corpo ao tentar abarcar a totalidade da vivência dessa gente, e não apenas a forma como eram tratados em cativeiro.1 Além disso, devo obviamente me imiscuir na questão social que se refere às raças resultantes do “congraçamento sexual” entre brancos e negros e até eventualmente índios e negros. Muito ajuda, nesse prazo de tempo curtíssimo, ambas as leituras serem assaz gostosas.

E, felizmente, devo dizer que, por ser este um dos três pilares ou matrizes étnicas e de fulcral importância na descrição da evolução da civilização brasileira, será impossível que meu trabalho não cumpra em parte ao menos o delineamento geral de uma tal hierarquia ou pirâmide das três raças nesses dois autores (que foi a sugestão da Prof.ª Mariza e aquilo que me aprazeria desenvolver se houvesse mais condições), porque se o enfoque é no tipo negro, por tabela, a posição desta matriz na relação entre índios e portugueses entre si poderá ser assinalada, para não dizer da relação de ambos com o negro, o que já está tácito: assim sendo, quem sabe, nem que de soslaio, empreendemos esse objetivo que nos foi agregado “em meio do caminho”.

VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS

Casa-grande & Senzala – Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal” compõe, como se sabe, a terça parte do que viria a ser uma “História da sociedade patriarcal no Brasil”, ou apenas uma introdução a esta, como queria a modéstia de Gilberto Freyre. É a parte reputada como a mais bem-escrita e a mais imortalizada dentre os volumes seqüentes (que são, apenas por curiosidade, “Sobrados e Mucambos” e “Ordem e progresso”), e dizem os especialistas que o melhor jeito de lê-la é da forma menos sisuda e mais descontraída possível!2 Cuida “Casa-grande & Senzala” da parte colonial dessa hercúlea tarefa que é decifrar o Brasil. Entre suas maiores inovações, podemos elencar o exitoso emprego do culturalismo boasiano – ainda na década de 30 do século XX da antropologia brasileira – e a valorização da raça negra como jamais antes, superando a geração dos intelectuais brasileiros que se preocupavam em encontrar uma solução para a “questão racial”; questão racial que, pelo menos nos moldes do século XIX, está findada. Uma questão sócio-cultural é que se nos desenha, e seria inútil continuar procurando justificações étnicas em mitos europeus. Sabe-se, outrossim, que não seria do feitio de um grande escritor, que quisesse ser levado a sério, recair ingenuamente no outro extremo, o da ultra-idealização romanesca, quase como um Rousseau dos trópicos, do homem americano.

A ordem dos capítulos no livro de Freyre pode dar pistas imediatas de sua “hierarquização das raças” (inconsciente?). Muito embora não se respeite exatamente uma segmentação rígida na prestação de informações: muito se fala sobre o branco no capítulo dos índios, demais se fala sobre o negro em todos os capítulos, e um tanto se fala do branco e do silvícola nos dois capítulos dedicados aos escravos africanos. Mas a julgar pelo índice, percebe-se logo de cara o enfoque maior na matriz étnica dos afros, beirando 50% da obra.

Onde “Casa-grande (…)” se mostra mais instigante até os dias de hoje e inultrapassável, quiçá, é na microssociologia. Não é este exatamente o mapa do tesouro procurado por um profissional como o economista, portanto – como evidencia a página 276: “Não nos interessa, porém, senão indiretamente, neste ensaio [capítulo 3 – o capítulo 1 havia fornecido uma visão mais geral e macroscópica], o aspecto econômico ou político da colonização portuguesa do Brasil. Diretamente, só nos interessa o social, no sentido particular de social que coincide com o sociológico.”

* * *

O mineiro Darcy Ribeiro, que tinha 11 anos quando a primeira edição de “Casagrande & Senzala” fôra publicada, foi talvez o último dos historiadores brasileiros a intentar uma “teoria geral” sobre o Brasil. Empreendeu 30 anos de sua vida, interrompidos por outros projetos3 e questões médicas, na sua magnum opus (tendo, inclusive, cinematograficamente, fugido da UTI para concluí-la à beira da praia em ‘paz da alma’), “O Povo Brasileiro”, cujo subtítulo sugestivo (como discutimos tantas vezes em classe acerca da freqüência dessa palavra “formação” nos trabalhos de grande esforço sistemático dos nossos autores clássicos!) é “A formação e o sentido do Brasil”. A tônica do livro, e provavelmente sua motivação por excelência, é uma análise do mito de que o Brasil seja o país do futuro, futuro que, hipoteticamente, nunca chega (e a pecha de “subdesenvolvidos”, o eterno “estar mergulhado” em uma zona pastosa de economias exploradas pelos países ricos e a descrença em nossa capacidade real de protagonismo, não seriam mitos, também?). Mas por que isso está tão entranhado em nós brasileiros (essa esperança quase que tola), a ponto de todos já terem ouvido falar no tal mito? A resposta para esse dilema pode ser encontrada em nosso passado e na forma absolutamente inédita como nos originamos, segundo o autor.4

Que, no entanto, a descrição dessa demorada labuta que virou livro não engane o leitor a respeito da forma como tal densidade está disponibilizada para o leitor: nada de academicismo pesado, mas uma leitura mui leve, que parte das mãos de outro romancista que por algum engano da História veio a ser cientista, à la Freyre!

* * *

Para finalizar essa pequena pincelada nas duas obras, alguém que comentou sobre os dois num só lugar: “Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre. Mesmo os que o foram, como o próprio Darcy, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido.” (CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene In: FREYRE, 2006, p. 19). A frase, imagino eu, significa que tampouco Darcy Ribeiro, um grande fã e entusiasta do legado freyreano, deixou de dar suas pontadas historiográficas e assinalar suas necessárias correções. Mas repara-se que pela forma como Fernando Henrique Cardoso elaborou sua frase, ela pode adquirir um segundo sentido: o de que Darcy repetiu esses erros. E é irônico que Darcy Ribeiro tenha criticado o gosto de Gilberto Freyre pela palavra mais poética e cheia de efeito, pois esta é uma característica também sua! Sim, Ribeiro não deixou de mostrar suas mesmas contradições – o que, para sua sorte, não lhe retira o valor!

PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL

Pécaut, quando diz que “o livro considera os relacionamentos sexuais como o motor de toda uma elaboração cultural, que fundamenta as relações sociais” (PÉCAUT, 1990), está se referindo a Freyre, mas a carapuça serve a “O Povo Brasileiro” também. Explicar o Brasil contemporâneo passa necessariamente pelo problema das etnias primordiais e mais “puras” (no conceito estritamente didático) da nação, pelo sexo, que é o invencível fator de amálgama entre esses tipos, e pela aceitação da alteridade e auto-formação da identidade, que são processos praticamente concomitantes.

À guisa de iniciar as explanações mais detalhadas dos dois livros, para não parecer que alguma coisa ficou perdida ou que as informações no tocante a esse problema central ficaram soltas demais, reunimo-las neste tópico:

“Abaixo” (na árvore genealógica) das óbvias tipologias “branco europeu”, “índio americano” e “negro africano”, temos as seguintes combinações: 1) o branco misturado com o índio (predominantemente o branco colonizador com a índia encontrada nestas terras, inaugurando a relação de cunhadismo descrita por Ribeiro) resulta no mameluco (termo pejorativo articulado por jesuítas paraguaios em referência aos temíveis bandeirantes, é o mais provável); note-se que Darcy Ribeiro cunhou seu próprio sinônimo para mameluco, brasilíndio; quando o indivíduo é mais nortista e embrenhado nas matas, preservando costumes indígenas, existe para ele o termo caboclo; 2) as uniões de índio com negro (isso era possível nos quilombos, por exemplo) resultavam na gente cafuza; 3) o mulato ou afro-brasileiro é a mistura do branco e do negro; 4) faz-se necessário entrar no mérito da obra “O Povo Brasileiro”, que é transcender esse debate, inaugurando novas tipologias para tratar melhor das mestiçagens: primeiro, temos o neobrasileiro (que melhor seria, para não confundir o leitor, chamar-se protobrasileiro), o germinal de uma consciência nacional brasileira;5 só posteriormente aparece o brasileiro p.d., e a seguir entenderemos o porquê.

BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS

Em “Casa-grande & Senzala”, a análise é quase toda preenchida com relatos de senhores de engenho em suas safadezas e em seu ecletismo mulheril – sem poupar, no meio do caminho, mesmo os causos de relações homossexuais entre filhos de senhor e negrinhos, ou como no caso dos tutores e alunos, o que na maioria dos episódios era em instâncias eclesiásticas envolvendo fradecos –, ou de bandeirantes e dos primeiros colonos em seu apresamento de índios ou desventuras com índias; em segundo plano pela citação de exemplos de produção de gente cafuza nos quilombos; ou ainda estão presentes as cenas mais pitorescas, radicais e raras, da mulher branca em intercurso sexual com escravos da propriedade. A punição diante de leves suspeitas levantadas pelo marido era já a morte. Estas damas, coitadas, são retratadas como raparigas imensamente sedentárias. Não viviam muito tempo, máquinas de gerar prole que eram, abusivamente usadas, e com menos de 30 anos já se punham umas velhotas…

Freyre tentava desmistificar a tal fogosidade atribuída ao negro em maior grau – segundo alguns autores foi essa libidinosidade da raça mais primitiva que teria corrompido o homem branco. O tempo todo Freyre insistirá na impossibilidade de se efetuar uma caça às bruxas, e que a estrutura viciada do modo de produção implantado no Brasil, esta sozinha, explica muitas das nossas atuais mazelas. Dirá, pois, na defesa das raças dominadas pelo jugo do homem branco, que o português era o mais tarado e sexualmente disposto das três raças; depois viria o índio (ou a índia); em último, os afros. Rebatia os argumentos de que eles eram mais sexuais, tanto que tinham todo um repertório de danças e rituais que se mostravam provocativos com o corpo, alegando que isso era justamente um subterfúgio de raça que não se excita fácil e que precisa desse tipo de afrodisíaco ou estimulante, ao contrário do português, que chegava e fornicava sem-cerimônia (FREYRE, 2006, p. 168).

E, além do mais, a dança já representava um grande gasto de energia que implicaria, ao contrário das aparências, na impossibilidade de se ser devasso, como queriam os historiadores de antanho: “Pelo menos entre os negros (…) eram mais freqüentes e ardorosas as danças eróticas (…) e as danças eróticas parece que quanto mais freqüentes e ardorosas, mais fraca sexualidade indicam.” (FREYRE, 2006, p. 239). Freyre ainda antevê um problema que seria absolutamente abordável em correntes recentes que vimos: do Funk carioca, à Axé music, passando por outros ritmos populares e polêmicos: a mistura cultural e a contaminação da pureza nas danças modernas, fundamentalmente não outra coisa que o duelo “sensualidade x sexualidade”, o mesmo debate, aliás, de “erotismo x pornografia”.6 Também é o “gasto de energia”, segundo Freyre, que explica a menor destinação da pulsão sexual do homem índio guerreiro ao sexo em si; enquanto que a mulher da tribo, por ser mais sedentária, sofreria de um intenso “priapismo”, no vocábulo freyreano. Ainda no tocante à fama de “quente” do povo brasileiro, embora não a enumere como suficiente, Freyre admite a causação climática (o clima tropical), um dos fatores que gerariam a excitabilidade desenfreada dos jovens mancebos brasilianos…

* * *

O colonizador da empresa Brasil se tornou, desde o princípio, de acordo com Gilberto Freyre, uma mera caricatura dos bons tempos lusitanos… Muito se dizia do racismo do português, mas se esquece de medir o quanto Portugal era tão multiétnico quanto o Brasil. Um caldeirão árabe que explicaria ainda um pouco do exotismo inclassificável do brasileiro. Além disso, era remarcado por uma intensa mobilidade social – outra característica que vai se espelhar na Colônia.7 A verdade é que o típico luso daquele tempo demonstraria muito mais uma intolerância religiosa e uma tolerância mercantil estrangeira do que qualquer ódio ou repulsa racial ou xenofobia sistemática, bastando que estivesse lidando com um forasteiro cristianizado a fim de negociar especiarias que as coisas teriam muito mais chances de prosseguir pacificamente. Os holandeses e os franceses foram por algum tempo seus maiores inimigos, mas isso porque tentavam implantar ilegalmente colônias na costa e professavam a fé calvinista. Verificar-se-á, ao longo do Brasil-Colônia e do Brasil Império, onde ainda há uma intelligentsia e uma burocracia portuguesas influentes, o quanto outros povos tiveram trânsito por aqui, desde que respeitassem algumas regras. Esse sangue disseminado só ajudou a ampliar nossa diversidade.

Para aqueles que sempre se referem aos próprios lusos que ajudaram a povoar o Brasil e fundar nossa nação como não mais que uns criminosos e prostitutas, ralé de Portugal, o que portanto explicaria nosso status de civilização inferior, Freyre também destina algumas linhas. Na página 296, desconstrói apropriadamente esse mito, relatando, aliás, que trazer uma mulher de além-mar era uma empresa muito incerta, que os ventres das índias atenderiam muito melhor esse anseio de constituição de família por aqui. Ainda segundo o autor, os tais “criminosos” deportados nas naus eram quase sempre hereges, excomungados da Igreja, pelo que hoje não seria considerado delito penal, como a sodomia, mas que para a época era infração mortal. Só que nem esses degredados constituíam uma maioria, cabendo ao espírito de aventura de muitos a própria razão da ida ao Brasil, afora os tantos que vieram como proto-intelligentsia e funcionários da Coroa. Tal preconceito manifesto no início do parágrafo, por conseguinte, não se sustenta. Cabe ainda enfatizar o quanto Portugal vivia dias difíceis, e não são exceções os registros de famílias médias ou mesmo de elite passando fome (porque preferiam sair bem-vestidas e ostentar muita escravaria, só que escondiam a real condição do lar): subnutrição era um problema corrente (FREYRE, 2006, p. 313). Por fim, não tolerava Freyre que se caísse na fantasia oposta à nossa síndrome de vira-lata ou baixa auto-estima, isto é, acreditar que os que vieram cá plasmar nossa raça fossem todos uns arianos aristocratas (cf. Oliveira Viana8).

No terreno da desmistificação religiosa (atribuir tudo que é mais reprovável e estranho de acordo com os dogmas cristãos ao desvirtuamento cultural provocado pela introdução do negro e pelas assimilações que se fez indeliberadamente dos indígenas), o autor recifense, remando contra a maré de seu tempo, até no caso da bruxaria, reputa ao europeu a maior “responsabilidade”, diante de credos satanistas importados do continente branco (sem negar que os valores da mitologia afro-americana apimentaram ainda mais os rituais, depois – e hoje temos a Bahia, a terra do candomblé).

Gilberto Freyre não perde nenhuma deixa para menoscabar os Estados Unidos, que tiveram uma colonização tão diferente e vieram a ser o que são (ou o que já foram), diante do nosso jeito brasileiro/neo-português/misturado de fazer as coisas: “Resultados de promessas ou do culto de Maria são ainda os nomes de muitos lugares do Brasil – Graças, Penha, Conceição (…) que tornam a nomenclatura geográfica do nosso país tão mais poética que a dos Estados Unidos com os seus Minneapolis, Indianápolis, e outros nomes em ‘polis’ que Mathew (sic) Arnold achou horrorosamente inexpressivos” (FREYRE, 2006, p. 475, nota 108 do capítulo IV). Na minha opinião sua caricatura é maldosa em excesso, haja vista muitos sítios americanos com nomes precedidos por “St.” ou correlatos, enquanto no Brasil temos designações tais quais Pirenópolis, Anápolis, e até mesmo muitos nomes americanizados ou germanizados, por exemplo, a depender da quantidade de imigrantes que vieram a povoar nossa terra. Eu acrescentaria ainda a cafonice de batizar monumentos urbanos com figuras que, com o passar das décadas e séculos, ficaram imensamente desprestigiadas, entre elas os generais da ditadura. Portanto, nomes feios e nomes bonitos não devem ser privilégio de nenhuma nação ou coordenadas em especial!

* * *

Claro que o indígena acabaria por estar menos contemplado na obra, haja vista o título, “Casa-grande & Senzala”, já dar a entender que o principal ambiente a ser descrito – embora me pareça exagerada a crítica a Freyre de que ele tratou de descrever apenas os “feudos” do Brasil-Colônia em sua configuração interior apartada da mais geral realidade, pois compreendia muito bem toda a malha que interligava essas múltiplas zonas, setores e camadas sociais – seja o dos engenhos, do qual os índios, dentre as três raças, foram os que se mantiveram mais afastados.9 Muito embora sejam conhecidas as frustradas tentativas de empregar silvícolas como escravos, perdurando esse “mito da debilidade física” do nosso aborígene em relação ao negro africano,10 ou do seu caráter mais “arredio” e menos adaptável, o que mais parece uma balela para justificar a condição do negro:11 como se o negro não tivesse sido desenraizado de sua terra (e há até palavra para isso, diferente de “saudade” ou “nostalgia”: banzo)! Aliás, a resposta de Freyre estará estranhamente condicionada a um ideal evolucionista, de que as civilizações de Guiné, Sudão, Angola e demais sítios africanos eram mais complexas e desenvolvidas, sedentárias,12 e por isso muito mais aptas ao pesado trabalho de moagem e corte de cana que os semi-nômades índios americanos.

Na página 259, Freyre defenderá que nem em aproximações numéricas seria possível mensurar a população indígena ao longo do tempo. Fato é que Ribeiro, muitas décadas depois e com novos métodos à disposição, também estará reticente quanto ao caso, pela falta de evidenciações, embora ensaie um cálculo, que estipula o número razoável de índios nativos como de 5 milhões à época do “descobrimento”. Para se ter idéia da catástrofe, hoje essa população não deve exceder 100 mil. Tanto se fala de etnocídios em outras partes do globo que, sendo um brasileiro, me espantei que essa palavra estivesse ausente de praticamente qualquer historiador nacional que se ocupasse desse período (parece que só recentemente a Funai e outras instâncias, através de uma mudança de consciência, vêm possibilitando um ligeiro crescimento dessas populações). E foi uma agonia tão cáustica quanto lenta, sentida diferentemente que no México, no Peru, na guerra efêmera que se deu entre espanhóis e as civilizações americanas que possuíam um claro centro político, o que não é o caso da nossa população original. Aqui se morria devagar. A cultura jamais foi depredada, aniquilada por completo, houve uma continuidade, não obstante sofrida (o que contrasta, também, com a situação de verdadeira guerra palmo a palmo com as tribos que ocupavam o antigo território Oeste do que veio a se tornar os Estados Unidos, e de igual modo no Canadá). Melhor dizendo, para não parecer que falei por eufemismos: índios brasileiros, dizimados, senão fisicamente, culturalmente, devido aos traumas. Mas tudo tem o reverso da moeda, e ainda falarei, na conclusão, sobre a assimilação branca dos aspectos indígenas, em contrapartida – sua “contaminação”.

Entre as contribuições dos povos autóctones, Freyre lista: ajudaram na expulsão dos estrangeiros da costa brasileira, com seus dotes guerreiros; conhecimento da fauna e flora locais, grande interpenetração do território – capital cumulativo de geração a geração, pois tal base fora indispensável aos bandeirantes, que afinal eram mamelucos em sua maioria. Esses tais brasilíndios na nomenclatura ribeirista (RIBEIRO, 1995), se não eram tão familiarizados com a mata quanto os próprios nativos (e havia nativos que, depois de escravizados nas vilas, decidiam-se por ingressar nesse tipo de aventura com os mestiçados), por outro lado já estavam em uma integração muito maior com o habitat que seus pais portugueses, além de terem necessidades econômicas a suprir.13

A influência indígena muito se verifica pela nossa elaborada culinária: tapioca, canjica, pamonha, dentre outros deliciosos “quitutes”, com que qualquer um sente uma intensa identificação. Diluídas, influências africanas também se tornaram irremediáveis. Mas a cozinha africana é tão rica que deixamos outras de suas “exclusividades” (até se tornarem populares por aqui) para o próximo tópico.

A questão do asseio diário e de certo grau de narcisismo e auto-enfeitamento também não escapa. Em paralelo, os europeus viviam séculos negros quanto à higiene pessoal, e não é pequena a comicidade dos relatos das nojeiras rotineiras das pessoas da mais alta estirpe, naquele continente, trazidos por Gilberto Freyre.

Mesmo que os índios não cultivassem a escrita, indiretamente auxiliaram os portugueses até nesse fim, fornecendo o conhecimento de pigmentos de tinta que se poderiam extrair da vegetação local. O brincar de boneca é outro resquício dessa cultura, embora tenha sofrido também incorporações africanas a posteriori. Os dialetos indígenas, que foram aprendidos pelos primeiros jesuítas para facilitar a catequização do povo, foram um grande incremento para os rituais musicais ecumênicos e ajudou a aproximar portugueses e silvícolas.

Freyre peca um pouco no batido item de classificar os índios como “ruins no trabalho braçal”. Negligencia, ainda, sua inteligência e experiência na arte do cultivo (não que negligencie em absoluto, há até passagens que comprovariam o contrário – mas é quase sempre a mulher a plantadora; segundo este autor, a mulher indígena teria sido uma figura muito mais importante que a metade masculina de seu “povo”).

NEGROS

O Engenho Noruega (antigo Engenho dos Bois), localizado em Pernambuco, não é o exemplo de propriedade mais esbanjante, nem tampouco é desprezível, portanto nos serve de exemplo-médio da estrutura dual casa-grande/senzala:14 a nordeste (pelo menos considerando a página do livro uma réplica dos pontos cardeais, a base da página, mais próxima do leitor, sendo o sul, o lado direito do leitor sendo o leste), numa espécie de grande quintal, uma profusão de negrinhos e branquinhos, crianças em suas brincadeiras, sempre misturadas racialmente, umas violentas, em que o alvíssimo filho do senhor-da-casa exerce seu domínio de chicote em punho, outras não. Mais de 50, 60 pessoas são retratadas dentro do casarão (não à toa tem esse nome de casa-grande), e 200 seria um bom número para o total de escravos da propriedade, segundo Freyre e autores que ele cita. As cozinhas mereceram esmero do pintor/desenhista: lá, como veremos mais adiante, há uma especialização de funções invejável até mesmo para um industrial fordista. Ao norte há um pomar, um córrego, gado ao relento. Ao sul e a sudoeste, charretes chegando ao portal da casa, negros transportando materiais e mercadorias com auxílio animal. Vêem-se prédios que devem corresponder às casas de purgar, de destilar e à da caldeira, integradas e auto-suficientes, no somatório interno (sem falar em outras estruturas não-citadas, mas presentes no engenho), para a feitura e exportação da cana-de-açúcar consumível. Se o engenho era pouco eclético e não era uma autarquia na acepção mais abrangente da palavra, isso se devia a uma mera escolha pragmática do proprietário: era mais rentável se dedicar estritamente à produção desse bem de consumo tão valorizado que plantar e cultivar insumos mil, que podiam ser adquiridos nas vilas. Eis a descrição sucinta de uma unidade do meio de produção monocultor. Na iconografia do livro, a idéia é ainda mais direta e rica.

Que o negro africano fosse, como mão-de-obra não-livre, a classe mais desprivilegiada nas relações de poder, não é essa obviedade que pretendemos esmiuçar, como deixamos claro na introdução com uma extensa nota de rodapé.15 Mas, dentro disso, quais a relevância social e o grau de influência do negro frente aos demais troncos? Não era necessário ser cidadão para que tivesse um peso considerável na conduta dos gentios e na construção (involuntária) de um projeto de nação.

Vale dizer que a introdução do negro no sistema colonial brasileiro data de 1538 (RIBEIRO, 1995, p. 161). Coisa de que não temos absoluta noção, posto que mais nos interessou, no período escolar, por exemplo, a data do descobrimento português, e tampouco temos dados confiáveis sobre a escala de tempo aborígene pré-colombiana, nos restando a estimativa de que o grande grupo chamado tupi-guarani tenha chegado à costa brasileira cerca de 200 anos antes de Pedro Álvares Cabral.

O trecho que vou colar a seguir nos enche o olho de preocupação, da mesma preocupação freyreana em falar dos negros até mesmo na unidade dedicada aos aborígenes: “sociedade patriarcal no Brasil. Sociedade que teve no negro, importado de várias áreas africanas, um dos seus elementos sociologicamente mais importantes. Importante, do nosso ponto de vista, mais como escravo do que como negro ou africano, embora sua importância como negro ou africano seja enorme e suas áreas de origem mereçam a atenção e os estudos dos especialistas.” (2006, p. 238, nota 23 do capítulo 2). É realmente tanta a ânsia do autor em condensar toda a maravilha cultural africana que isso às vezes o atrapalha. É no início do primeiro capítulo exatamente criado para esse fim que enxergamos uma clara tomada de partido, que até ali vinha sendo evitada pelo escritor. É aqui que as críticas dos comentadores do legado freyreano mais têm sua razão de ser, porque a dado ponto Gilberto parece se entregar a um misto diletante de tratado de biologia com epistemologia, circunscrevendo-se a um debate que parece ser o ponto mais defasado de seu livro, um debate entre lamarckistas e weismannianos, com direito a várias notas de rodapé acusatórias e considerações sobre o evolucionismo e métodos rústicos como medidas de crânio, (b)ranqueamento de raças e climatologia. De todo modo, quando se assenta em oposição à linha que chama de dominante entre os positivistas norte-americanos, nosso autor retoma o bom senso na pesquisa.

No que não pude deixar de enxergar a felicidade do título que escolhi para o artigo, o que se deu antes mesmo das leituras, leio à página 367 de “Casa-grande & Senzala”: “trazemos quase todos a marca da influência negra”; e virando a folha, “Não nos interessa, senão indiretamente, nesse ensaio, a importância do negro (…) no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. (…) muito maior (…) que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.”. Freyre reconhece a multiplicidade de povos africanos e americanos, pois compactua com a teoria do difusionismo e vê graus civilizacionais divergentes, matizes/manchas no mapa, à la Kroeber-Herskovits. Portanto suas afirmações pregressas devem ser encaradas como generalizações introdutórias, isto é, ele considera o africano, em média, mais desenvolvido que o indígena médio, se é que é possível fazer tal abstração.

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Em complementaridade a esse nível todo de importância que é atribuído à raça, e no que toca mais ao trabalho: [os negros] desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.” (FREYRE, 2006, p. 390). Esse discurso, excetuando-se a sobrevalorização do negro, que sozinho é a mão destra frente às outras duas matrizes, é a exata antecipação de Darcy Ribeiro, tão preocupado em relatar um “processo civilizatório” em uma (hiperbólica, ao meu ver) “Roma tropical”.

Havia critérios estéticos na seleção dos negros para sua fazenda, e o comprador tentava relacionar a beleza, ou senão qualquer outra característica de saúde, também com a inteligência, para direcionar, a partir daí, o escravo a uma função mais elaborada e mais próxima da casa. Freyre narra cativos vindos de alguns navios que se sobressaíam aos demais, legítimos “negros de elite”, que fariam a ralé estadunidense (insiste nisso!) ser vítima de chacota. De modo geral podemos isentar as amas-de-leite, cozinheiras, copeiros e negrinhos que andavam pela casa-grande das violências e abusos perpetrados em localidades mais marginais dentro da propriedade. Lembremos, inclusive, como diz Foucault, que algumas coisas só nascem quando passam a ser ditas, nomeadas: “violência doméstica”, eis algo que ainda não existia, isto é, só se olharmos com olhos do presente para esse passado. Portanto, a própria esposa do senhor-de-engenho, por mais rude que fosse o tratamento recebido, e essa gente toda, não eram exatamente violentados, pelos parâmetros da época.

Ainda no que se refere ao valor do negro para o trabalho, nas minas teriam sido imprescindíveis metalúrgicos,16 pois nem o homem branco saberia nelas operar. Há que se dizer que, em muitos engenhos, a tecnologia reduzia a necessidade de tanta mão-de-obra (referimo-nos anteriormente à cifra de 200 trabalhadores num mesmo espaço), mas normalmente os senhores mantinham um excedente supérfluo e ostentatório. Não se era, pois, “moderno”, na acepção mais capitalista e liberal da palavra. Não se procurava investir o lucro em aquisição de novos equipamentos num ritmo racional para maximização de lucros, isto é, não se punha a propriedade privada quase nunca em risco, essa que é uma ousadia típica alavancada pela burguesia não-patriarcal.

Só que apesar disso podemos divisar racionalizações em outros pontos: cada negro possuía o conhecimento estritamente necessário para o desempenho de sua função na empresa da cana-de-açúcar, e com base nisso se estabelecia uma hierarquia intra-escravizados, mais ou menos evidente a depender de que setores estamos falando. Podia-se variar de quase-bicho a “praticamente da família”, cuidar do trabalho mais maçante e degradante até coisas como “mestre-de-chaves” (FREYRE, 2006, p. 567, nota 100 do quinto e último capítulo).

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Na língua, o peso da negritude é avassalador. Exemplos de vocábulos introduzidos pelos negros no nosso idioma: dengo, cafuné, caçula, mandinga (que parece ter sido originalmente o nome de um povo afro), moleque, quenga, bunda, zumbi, vatapá, quindim, catinga, birimbau (com “i” em Freyre, hoje dicionarizada com “e”), oxente (muito lançamos mão do tal “oxi” mesmo em Brasília) Todas muito mais empregadas no Norte que no Sul (não região Norte no senso atual, mas abrangendo também o Nordeste, e conseqüentemente regiões como a nossa, que receberam altíssimo índice de imigrantes de lá provindos, em data posterior à publicação desse livro, aliás). Outros termos consagrados como “bicho” (que usamos até para gente!) provêm, é mais provável, dos indígenas.

Uma grande questão facilmente vislumbrável por nós aprendizes na erudição é a seguinte: “um vício em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.” (FREYRE, 2006, p. 220). Sinceramente, não sei se houve um retrocesso (avanço) no quesito. O Português ainda se me surge como quase esquizofrênico (ou “órfão”), na hora da tradução do seu uso ágrafo para o papel ou vice-versa! Coisa que, como destacou Freyre, o negro que muitas vezes alfabetizou os meninotes da casa tentou remediar: “Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias” (p. 413).

Não só isso, mas “o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo”, graças à disseminação de histórias e estórias indígenas e africanas. Foi também o negro responsável pela introdução do islamismo no Brasil. Muitos das senzalas eram versados no Alcorão. Aqui declara Gilberto, em oposição ao que veremos em breve dos punhos de Darcy, havia uma relativa tolerância de costumes e rituais dentro da senzala; folguedos e dispensas dos trabalhos nas datas cristãs mais importantes. Há muito debate e polêmica quanto ao dia de trabalho ou descanso dos escravos no domingo, data sagrada.

Reconhece-se, maior influência africana que indígena na família moderna brasileira. “O negro é o componente mais criativo da cultura brasileira”: quem vai dizê-lo é Ribeiro, e não Freyre! Mas a verdade é que para o primeiro essa criatividade foi muito mais tolhida do que levada a cabo.

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O autor assevera que a influência anglo-francesa amainou a força da cozinha afro-brasileira ao longo do último século (podemos dizer, então, 200 anos, levando-se em conta a continuidade desse processo após a publicação de “Casa-grande & Senzala”); isto é, “desapimentou” um pouco os pratos… Em 1834 houve, por exemplo, a 1ª importação de gelo, em um navio inglês, para território brasileiro. O casamento desta nova “tecnologia” com as frutas tropicais seria da riqueza que hoje se vê em quase qualquer esquina, com a multitude de sabores exóticos, muitos dos quais imaginaríamos exclusivos de nossa terra se – quem diria! – os europeus e “desenvolvidos” não fossem os primeiros a importar delícias como o sorvete de cupuaçu! Consta ainda, em Freyre, ter sido a alimentação do negro regrada e balanceada. Isto é, se o engenho era bom… Porque não faltam os casos em que até o “opulento” senhor passava fome, em troca de gastos vãos em outros departamentos.

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Darcy certamente utiliza em larga medida da própria obra clássica de Freyre para caracterizar o negro, de forma que durante muitas páginas pensamos estar tão-somente diante de um comentador ou reprodutor, mas não no sentido pejorativo: significa que Freyre havia-o cumprido muito bem e, se quisesse retratar o negro com fidelidade, Ribeiro não poderia fugir muito das verossimilhanças. Não obstante, o que mais traz relevo a essa reescritura são informações pontuais como a de que o negro rendia de 7 a 10 anos em cativeiro, em média, e depois disso se tornava inutilizável (e aí sendo possível a alforria) ou morria (RIBEIRO, 1995, p. 118). Narra-se ainda todo o procedimento de aquisição do negro na costa oeste africana, sua embarcação em navios mal-cheirosos (e não só isso) e sua “vida” (assim mesmo, entre aspas) na nova terra, onde iria “trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano” (RIBEIRO, 1995, p. 119). Consta ainda que no dia de domingo podia se entregar a comer de sua horta auto-cultivada, que não dava para muito, mas repunha modestamente as vitaminas de que o corpo precisava para continuar funcionando para desempenhar as tarefas de burro de carga a ele ininterruptamente destinadas. Recebia castigos semanais que serviam de “prevenção” e “pedagogia”, isto é, alertavam o cativo de que ele deveria se manter produtivo e comportado, e que não se metesse a fugir, pois se fosse apanhado as conseqüências seriam muito piores.

Açoites de chicote, mutilações a esmo, arrancada de dentes… Ribeiro nos brinda com um relato mais sórdido que o freyreano, sem dúvida. Mas vai do estilo ou então de uma necessidade produzida exatamente pela falta de maior “crueldade” em “Casa-grande (…)” (não que não haja uma lista considerável de males perpetrados aos escravos, mas eram ocorrências consideradas isoladas, não foram tratadas estatística ou estruturalmente, o escritor parece que não estava “com a mão pesada” nessas horas), à guisa de preencher esse vácuo: Ribeiro não economiza no léxico ao chamar de etnocídio, genocídio e chacinas indiscriminadas o que houve em solo pátrio desde que as naus portuguesas aportaram (estabeleceram-se “moinhos de gastar gente”). Relata até casos grotescos de mobilidade social, na época da mineração, em que podia suceder a anomalia de vermos negros subitamente enricados que se alforriavam e se sagravam senhores de muitos escravos!

CONCLUSÕES

Contraporemos a opinião de dois autores da nossa segunda unidade do curso de Sociologia Brasileira para tentar julgar os méritos e deficiências gilbertofreyreanas-darcyribeiroanas em um panorama mais contextualizado:

Em ‘Massangana’ Nabuco revela o complexo de sentimentos associado à idéia que ele foi pioneiro em veicular no Brasil e que seria retomada e desenvolvida por Gilberto Freyre: a idéia de que o sistema escravocrata era um mal que afetava irreversivelmente tanto escravos quanto senhores, enredando-os numa miríade de interesses libidinais comuns. (MORICONI, 2001, p. 171)

E agora o antitético Ventura:

O patriarcalismo, adotado por Freyre como molde interpretativo, encobre o caráter mercantil e violento das relações de produção sob o cativeiro e concilia a sociedade brasileira com seu passado escravocrata. Ao privilegiar o patriarcalismo e generalizar características da escravidão doméstica, Freyre construiu o mito da brandura e docilidade nas relações entre senhores e escravos. (1991, p. 66 [negrito meu])

Há quem acuse Gilberto Freyre de complacência quanto ao regime de plantation e que ele teria defendido a escravocracia do ponto de vista de sua necessidade para que o projeto colonial fosse levado adiante: “Terra de insetos devastadores, de secas, inundações. A saúva sozinha, sem outra praga, nem dano, teria vencido o colono lavrador; devorando-lhe a pequena propriedade do dia para a noite; consumindo-lhe em curtas horas o difícil capital de instalação; o esforço penoso de muitos meses. Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala.” (FREYRE, 2006, p. 323, capítulo III). Concepção talvez estrutural da História, mas passando longe de uma justificação moral, porque há muitas outras passagens do livro que entram em contradição com esta que foi citada.

Ora, em sua descrição etnográfica, Freyre retrata essa verve muito mais melíflua da relação entre senhor e escravo, essa maneira sui generis do superior se dirigir ao inferior, por vezes sem bravatas, sem traços tirânicos e autocráticos, com aquele ar matreiro, semblante que muitos aproximariam do próprio africano espontâneo e “alegre” (como quer Freyre), sem pestanejar; descrição humana que mais ou menos se aproxima do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Mas nem por isso invertem-se os papéis, ou nivelam-se os papéis. O senhor – nem por sua língua mais macia, por seu trato mais terno com o subalterno – nem por isso deixa de ser senhor; nem o (alguns dos) escravo, por ser muito mais chegado à família que em um modo de produção outro, por participar muitas vezes da educação do filho branco do senhor de engenho, deixa de ser escravo. Nem deixa de haver um compêndio oceânico de casos de violência brutal do dominador contra o oprimido. Se esse mito de que fala Ventura é realmente muito falado, talvez se tenha de culpar muitos dos intérpretes de Freyre e dos exageradores desse tom de “democracia racial”, em primeiro lugar.

No que reside esse sentimento de “unidade” ou de integração senhor-escravo (ex-senhor/ex-escravo) narrado por Gilberto Freyre? Sabe-se que tanto um como o outro lado são insuprimíveis. Eles trocam fluidos incessantemente. Assim constrói-se uma cultura. Não se aniquila um modo de existência, fazendo-se uma deglutição completa. No máximo há uma antropofagia,17 diria Oswald de Andrade. Mas aquele que se “alimentou” não será jamais o mesmo. Nunca sequer foi-se uma unidade, cabendo sempre à idéia de relação a definição dos sujeitos e das culturas. Sendo assim, há muito de Marx, Freud e Nietzsche em Gilberto Freyre: cônscio de que na dialética das raças toda experiência importaria, se refletiria, no futuro, e que portanto mesmo o “modelo hegemônico” (ou “modo de produção”, para usar uma terminologia marxiana) carregaria em seu bojo tudo que já lhe foi antitético (uma pessoa que morre continua ecoando em nosso ser, sua personalidade continua para nós, nos julgando, participando do nosso projeto de ser), não faria o mínimo sentido idealizar uma pureza racial ou qualquer tipo de gradual ou súbito “melhoramento”, reeducação, etc. Nem haveria qualquer diagnóstico apocalíptico em cima disso: quando é que houve uma pureza de raça e quando ela teria sido realmente desejável? Mesmo em solo europeu, asiático, hindu? O mundo não fôra sempre um caldeirão multiétnico? A tal harmonia que querem ver em Freyre não é bem justificar um passado que é tabu ou fazer de conta que ele foi “menos mau”, mas a constatação de que nós, hoje, fomos tanto senhores quanto escravos, ambos habitam em nós, que essa dicotomia é falsa, porque ultrapassada, do ponto de vista do sujeito contemporâneo em busca de sua identidade “real”, “complexa”. Que no frigir dos ovos trata-se de um bloco só, um problema civilizacional só, que não poderia mais ser analisado da maneira esquizofrênica como vinha sendo. Pouco adianta o discurso de vitimização de uma parcela ou de demonização da outra parte, porque isso seria uma amputação de um membro vital do próprio organismo nacional (se é para usar uma metáfora biologizante em homenagem a tempos em que ela já foi quase obrigatória). Não significa também que o escravagismo, que não foi implantado aqui motivado por racismo, não tenha sido compreendido de forma distorcida por inúmeros grupos sociais sucedâneos, que realmente se utilizaram das prerrogativas de cor; não significa que a estrutura secular da casa-grande e da senzala não tenha feito com que patrões não selecionassem empregados de cor porque cressem, do fundo de suas experiências pessoais, que brancos fossem mais qualificados inerentemente para o trabalho, isso tanto durante o regime escravocrata, quando já havia gente de cor liberta, e em que havia setor de serviços na Colônia, quanto muito tempo ainda depois e até os tempos atuais. Não significa, em suma, que o autor tenha varrido toda a questão racial para debaixo de um tapete de Poliana, como muitos ainda insistem. Querer que a questão brasileira do preconceito racial fosse equiparada à norte-americana ou à sul-africana, no entanto, seria ultrajante. Ao longo de toda a obra é possível ver Freyre dialogando com autores das mais variadas estirpes e tendências e tentando abarcar todos os matizes, evitando esses “ismos” tão pedantescos e inúteis. Daí toda a ênfase na parte sexual: é no ato do coito que esta “unidade” ou projeto de um povo único, embora multifacetado, estão mais bem-representados.18

* * *

Interessante observar que o conceito de “neobrasileiro” é de fato anterior ao de brasileiro, pois este viria a surgir somente no século XVIII (para se ter idéia, até o século XVII o tupi-guarani era o idioma mais falado no território colonial – para a padronização do uso do Português, os afro-brasileiros foram fundamentais). O prefixo “neo-” é para designar o “novo habitante das Américas”, no que se inserem alguns mamelucos (os que preferiam uma existência mais urbana e menos aventureira, ou seja, não-bandeirantes) e a virtual totalidade dos filhos de luso com luso (e nota-se aí que são populações plurais, divididas em algumas classes, uns comerciantes, outros senhores, outros funcionários delegados pela Coroa, muitos até filhos de padres!). Em seguida – conforme os mestiçados ou transplantados a esta nova terra iam “se acostumando” com o status da “Ninguendade” (ou antes, vão-no diluindo), termo ribeirista – cunhou-se o termo brasileiro, ou a idéia de “brasilidade” como são entendíveis ainda hoje, designações pátrias de uma novíssima etnia tropical (embora provinda de matrizes milenares!) que não se julgava nem portuguesa, nem africana, sequer aborígene, e em que havia bastantes pontos em comuns para que as identidades não fossem rachadas em outros rótulos raciais como “mameluco, caboclo, cafuzo, mulato”. Em suma, nós. Ninguendade: de categoria residual, sem tempo nem lugar, a identidade, exatamente a palavra para nos dizer aquilo que somos em contraste com tudo que não somos, por falta de melhores meios. “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.” (RIBEIRO, 1995, p. 120).19

Como vimos, a “pirâmide darcyana das etnias”, aquela que eu esbocei tentar encontrar nas considerações introdutórias, prima pela parcimônia, porque não só este autor dedica o mesmo número de páginas, aproximadamente, a cada raça original/pura, como tenta encontrar um método novo para tratar do problema, através dos híbridos.20 E o super-híbrido somos nós, mestiços de mestiços de mestiços. Alguns que lutam em movimentos mais “simplificadores de posição” (não por ignorância, mas por necessidade) poderiam achar essa solução tão boçal quanto o sustento de uma democracia de raças, mas Ribeiro dedica muitas páginas para falar apenas do negro, sem nada que “suavize a dialética”, se assim podemos dizer, e esperamos que sirva de “consolo” aos que têm uma forte auto-identificação como negros e não concordaram com o ponto de vista expresso até aqui neste ensaio:

Darcy Ribeiro evoca “saídas” (ou “exceções reparadoras”) para os bolsões de miséria continuamente perpetuados pelos mais ricos da nação, saídas não-definitivas ou insatisfatórias, mas que demonstram o quanto, circunstancialmente, a raça negra se mantém pulsante, a despeito de toda a desigualdade que a assolou até aqui: na música popular brasileira, no futebol e em outras atividades onde a hierarquia depende menos do crivo do homem branco industrial (será?), este encontra seu espaço. “O negro vem a ser, por isso, apesar de todas as vicissitudes que enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os índios, mais singulariza o nosso povo.” (RIBEIRO, 1995, p. 223). Ressalta-se como um dos pontos mais graves, que ajuda a transformar uma questão que não é de todo racial em mais racial do que devera ser, é o do racismo do negro quanto ao próprio negro: aquele que galgou postos até uma posição privilegiada tende a considerar os outros negros preguiçosos e a pensar seus suplícios como merecidos, dada a vida que levam, em clara continuidade da “síndrome de capataz”; não só isso, mas seu ideal de beleza, contaminado pela mídia, é o do “homem branco”; não são raros os negros exitosos a casarem-se com alvas loiras, sem nem ao menos refletirem sobre sua escolha. Mas este é um tema polêmico: Freyre insistirá no exemplo oposto, o do branco que, se não fosse com negra, não seria com ninguém (embora casar fosse uma outra história)… De qualquer maneira, resta acrescer que esse fenômeno do negro que age contra seus pares é batizado por Ribeiro como “racismo assimilacionista”.

* * *

Parece que lidamos com Heisenberg aqui: ganha-se em precisão etnográfica, perde-se em força argumentativa (com o mais meticuloso Darcy, em relação a Freyre). O ideal é enxergar as coisas do seguinte modo: ambas as obras (“Casa-grande & Senzala” e “O Povo Brasileiro”), resultados de pesquisas ambiciosas e que deixam um forte cheiro de “construção da consciência nacional” no ar, são antes complementares que antitéticas, pois cada uma a seu modo jamais nega os postulados que tornaram a outra possível, mas como que os ressalta de ângulos díspares – só não devemos negar, numa consideração sem rodeios, que “Casa-grande & Senzala”, por ora (e do futuro não façamos prognósticos), permaneça a mais clássica entre elas.

Poderíamos ser acusados, ao levar em conta dois autores que se aproximam em suas concepções e não adentrar com esmero em outras bibliografias, de “conciliacionistas em demasia”? Certamente disso nos acusarão, mas contra isso não há remédio! Além disso, seria melhor do que, em tempos de pós-modernidade (ainda?), ser tachado de fragmentário ou atomista, afinal a análise de grupos sociais ou do maior grupo social possível na escala terráquea (a de um povo ou nação) demanda que pensemos dalguma forma num coletivo. Como se pode ver, talvez o resultado final do trabalho tenha sido até diferente do título proposto, mas decidi mantê-lo para que se testemunhe com transparência o quanto é “difícil” falar do assunto; mas também o quanto o tema é dinâmico e o quanto foi proveitoso e inesperado chegar a essa conclusão de que os movimentos de inclusão das minorias e a minoração do racismo e das desigualdades sociais de todo e qualquer tipo precisam ser repensados em uma ótica que os integre entre si, ao invés de construírem-se o tempo todo trincheiras entre “desfavorecidos que são mais iguais que outros desfavorecidos” (ao que parece!) e enfraquecer a luta. Uma elite “áspera” e esperta como a brasileira tem muito mais meios de coibir movimentos populares se eles se (des)articulam dessa forma fraturada. E o fazem às vezes inconscientemente. E a base da pirâmide age de modo “elitista” (ideologicamente), o mais das vezes sem se aperceber, pois a inclusão na sociedade de consumo tornou-se a meta hegemônica. As classes médias querem se elitizar; as classes baixas querem se aburguesar; as classes famélicas não anseiam por outra coisa senão ascender ao poder de barganhar pequenos itens de consumo que possibilitem o dia do amanhã. E a elite, óbvio, quer as coisas como estão, em que pese o mundo sempre mudar. O Brasil muito mudou, mas a classe dirigente soube se manter na crista da onda, até agora.

P.S.: Gostaria ainda que no curso houvesse um tiquinho de Raymundo Faoro, pois já há um tempo me recomendam a leitura de “Os Donos do Poder”, que parece ser uma excelente pedida para complementar as coisas que vim listando aqui, principalmente no que concerne à nossa inacreditavelmente persistente “elite dos muito poucos”, tão peculiar se comparada às de outros países, inclusive vizinhos, a ponto de Gilberto Freyre declarar que mais parecemos uma “Rússia brasileira” que uma Argentina; elite essa acometida ora ou outra por manias de perseguição e paranóias caricatas, se não fossem trágicas, capazes de fazerem aflorar velhos dogmas improfícuos como “a limpeza da mendicância ou das favelas via força policialesca”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal; apresentação de Fernando Henrique Cardoso. 51.ed. rev. São Paulo: Global, 2006.

MORICONI, Ítalo. Um estadista sensitivo. A noção de formação e o papel literário em Minha formação, de Joaquim Nabuco. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº 46, Junho, 2001.

PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: PÉCAUT, D. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

PEIRANO, Mariza. Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; RUBEN, Guilhermo Raul (Orgs.). Estilos de antropologia. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

VENTURA, Roberto. Civilização nos trópicos? In: VENTURA, R. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

1 Por isso, optamos pelo vocábulo “marca” no título deste trabalho, ao invés de simplesmente empregar “posição”, que é algo menos ambíguo, não dá margens para que elaboremos raciocínios sobre novas hipóteses, pois haverá uníssono entre os autores quanto à pouca mobilidade do negro (não vamos esquecer que temos uma divisão entre alforriados e não-alforriados) dentro do sistema produtivo da Colônia, embora, como ressalta Oliveira Vianna, não tenhamos vivido em um sistema de castas (1922b, apud Medeiros 1978, apud PÉCAUT, 1990, p. 47). O que nos interessa diz muito mais respeito à reverberação a longo prazo do capital cultural (que seria desarrolhado ou compreendido de maneira palpável somente depois, e de forma gradual, se bem que contando com interrupções e retrocessos, no contexto de uma sociedade de classes mais esclarecida) dessa população negra do que ao status quo usufruído por ela àquele tempo (apesar disso também estar contemplado na dissertação). Não é outro o motivo do uso de “desde o” no título em detrimento de “no sistema colonial”, pois Freyre e Ribeiro introjetam muitos elementos novos na análise, observadores contemporâneos (ou quase-contemporâneos) que são. Óbvio que trataremos tanto do liberto quanto do fugido e do escravo “regular”, o tanto quanto nossas evidentes limitações de tempo e de material bibliográfico permitirem!

2 Infelizmente não disponho de uma rede em casa, que seria o “melhor instrumento” para cumprir esses desígnios, mas a ver como procederemos!

3 Não podemos deixar de lembrar a fundação da nossa Universidade de Brasília, em meio a esse seu “vendaval da vida”, como o próprio Darcy gostava de se expressar.

4 Já a obra-mor de Darcy Ribeiro é tripartida e meticulosamente isonômica; isto é, de cerca de 400 páginas, detectei aproximadamente 110 dedicadas ao negro, mas, como explicado com referência a G. Freyre, esse didatismo de isolar uma dada raça das duas outras é apenas um exercício forçado. Fato é que Darcy Ribeiro tentou contemplar as matrizes sem manifestar preferências, pelo menos em quantidade de texto: quanto a o quê diz efetivamente sobre a relevância de cada raça na composição da identidade do brasileiro, cabe a nós analisar no trabalho que segue se ele chegou a algum tipo de preferência ou não.

5 A propósito do qual, é útil evocar o artigo “Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia” (PEIRANO, 1995). Embora a autora se refira ao sentimento da intelligentsia nacional, de desterro no plano das idéias, a dificuldade de encaixe e de encontrar destinatários para suas mensagens, podemos dilatar temporariamente essa noção para a gente simples, a fim de exemplificar a estranheza, o vazio e a sensação angustiante de não-pertencimento a um dado meio social, situação que perdurou talvez alguns séculos para alguns tipos de neobrasileiros. Mas é importante ressaltar o quanto há subcategorias diferenciadas: o negro foi forçado a viver aqui; o português tinha mais autonomia em sua escolha, se separava de sua terra e era, em tese, quem definiria o modus vivendi da colônia, em toda sua lusitanidade; o índio, apesar de não evadir o Brasil (o que era afinal, o Brasil, antes do Brasil?), era quase infalivelmente arrancado de seu território original e tinha que lidar com o fato de que seu mundo jamais seria o mesmo depois do invasor, e assim por diante.

6 Será que ao invés de depravados, os bailes funk não são uma forma de expressão, de catarse, enfim, de satisfação das pulsões do ser humano, sem que elas precisem ser canalizadas em algo diferente e socialmente mais prejudicial, como a violência?

7 Sorokin não acharia melhor laboratório para verificação e estudo de sua teoria de mobilidade do que entre esse povo cujo passado étnico e social não acusa predomínio exclusivo ou absoluto de nenhum elemento, mas contemporizações e interpenetrações sucessivas.” (FREYRE, 2006, p. 295). E ainda: “No Brasil ainda mais do que em Portugal, não há meio mais incerto e precário de identificação de origem social do que o nome de família.” (ibid., p. 540).

8 Encontrado tanto na grafia “Viana” quanto como “Vianna” nas passagens a que tive acesso.

9 Como assevera o próprio Freyre à página 352, encerrando o capítulo que dedica ao colonizador português, “o índio ficou logo no segundo plano”, referindo-se ao apogeu do ciclo da cana.

10 O que Darcy Ribeiro nega veementemente: “Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão-de-obra indígena” (2005, pp. 98-9). O que aconteceu foi que o tráfico ultramarino se tornou uma atividade ‘n’ vezes mais lucrativa.

11 “Foi preciso substituí-lo [ao índio como mão-de-obra] pela energia moça, tesa, vigorosa do negro, este um verdadeiro contraste com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade.” (FREYRE, 2006, p. 229).

12 Será que mais inclinadas ao sexo, por isso?

13 O êxito dessas empreitadas chamadas bandeiras ou monções (quando seguiam pelo curso dos rios) foi inquestionável, a ponto de ter iniciado a povoação dos países de colonização hispânica na costa oeste do continente americano: “Outros mamelucos foram os que abriram o que é hoje o território argentino, uruguaio e paraguaio. Muitos deles podem ser vistos em Buenos Aires, onde são tratados por cabecitas negras e malvistos pelos milhões de gringos que os sucederam. Todos ignoram, na Argentina, que o país foi realmente conquistado, organizado e conduzido à independência por cerca de 800 mil mamelucos.” (RIBEIRO, 2005, p. 110 [grifo do autor]). Atribui-se, nesta obra, o papel de protagonistas da formação brasileira a tais elementos sociais.

14 Há uma representação, em gravura e estilizada, porém fidedigna, de tal engenho em quase todas as edições de “Casa-grande & senzala”, logo antes do índice. Este foi um terreno visitado pelo autor.

15 Mas eis que esse assunto ainda não morreu e necessitamos de novo desse espaço marginal. Gostaria aqui de destrinchar o mito da “felicidade em si” do negro, perpetuado pelo próprio Gilberto Freyre. A eventual afirmação de que os negros africanos tinham uma vida “melhor”, eram mais bem-tratados, do que os proletários dos séculos XVIII e XIX inglês, que partiu do meu professor de História Econômica Geral e que foi minha motivação mais antiga para fazer um trabalho parecido com o que estou redigindo agora é para mim, finalmente, ponto pacífico. Isso porque não devemos incorrer no grave erro de tentar estabelecer um absoluto da felicidade. Essa eterna controvérsia entre os autores, eu não posso nem quero findar: contrasta-se a “introversão do índio” e a “extroversão do afro”, em Freyre (e Darcy dirá, talvez poética, talvez alegórica, talvez honesta, talvez tragicamente, que o brasileiro é o mais alegre, porque o mais sofrido dos povos, e nisso reside sua identificação com seus pares). Perde-se de vista que tal percepção é relacional. Sendo assim, haveria de se analisar por que o branco (erudito, academicista – ou Freyre não se situando nesta cultura, de uma perspectiva negra ou indígena, o que aliás explicaria essa distorção, senso comum o preconceito de dicotomizar e absolutizar duas raças em duas essências) acaso pensa no americano como introspectivo e no africano como “espontâneo e efusivo” – não estaria num ethos intermediário? O índio poderia até conceber o inverso, já o africano, da tribo ou nação ‘x’, poderia dizer que acha o europeu o rei da eloqüência, seguido pelo índio, e depois por si. Em suma, trata-se de reconhecer a assimetria interna entre os capítulos desta obra. Pecado do qual Ribeiro não escapou de todo, em livro irregular repleto de vaivéns.

16 O que atesta o culto do deus Ogum, nada mais nada menos que “a divindade da metalurgia”.

17 Um tanto mais seletiva no caso da antropofagia literal dos nossos índios, lembrariam Freyre e Ribeiro; ainda mais tendo em vista o contraste com as “fornicações para lá de casuais” entre lusos e outras raças, que iam indianizando e empretecendo o colono europeu, por mais que ele assim não o quisesse.

18 E para atestar, afinal, o quanto é imprescindível considerar que o problema do racismo no Brasil não é o mais importante, coroa este pensamento a citação da Introdução de “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro (p. 23): “O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais”. Ninguém – nenhum dos autores – nega que existe um problema racial no país, que no entanto é mal-enxergado, deturpado, pelas mais variadas razões, desde que nos entendemos por nação. Portanto, muitos dos que se propunham a colaborar na resolução do problema recaíram em incoerências, das quais Freyre e Ribeiro buscam escapar. Daí, particularmente neste segundo, até para evitar críticas semelhantes às direcionadas ao primeiro, notar-se um esforço de contorno de posições muito estereotipadoras através da ênfase nos híbridos, ou seja, na descrição dos gentios resultantes da mistura das raças…

19 Em certo aspecto, dada a noção de “brasilidade” de RIBEIRO, trata-se de um retrocesso a forma como o movimento negro e outras minorias vêm se encastelando na luta por maior isonomia no cumprimento dos direitos civis da nossa Carta, como que perdendo o diálogo com a carne da própria carne, talvez reacendendo ou se auto-conjeturando (ficcionalizando) atavismos que não teriam a menor razão de ser. Não negamos que, devido a uma cadeia de questões históricas, essa “luta de classes hiper-atomizada” tem um papel, é justificável e pode ser entendida como “uma etapa necessária” do desenvolvimento humano como correntemente transcorre, mas não pretendemos entrar nesse mérito aqui.

20 E, inevitavelmente, ocorre uma depreciação do branco, do tipo português, europeu, civilizado. Decerto inevitável. Levando-se em conta o grande handicap dos outros dois troncos, e que a História até hoje foi branca, posto que a única com documentos escritos, de que só jesuítas (que a bem da verdade nos ajudaram muito em escritos críticos, sinceros e devotados) e funcionários administrativos, praticamente, participavam; e levando-se em conta que a perspectiva dos acontecimentos precisava de uma correção ou de contraposições, que “estávamos em débito”, nós, da cultura letrada, com o mundo e as coisas, para não dizer “com o Outro” e com nós mesmos – dizia eu, levando-se tudo isso em conta, isso não é defeito, mas mérito do livro.

Norbert Elias, Michel Foucault, W.F. Hegel, R. Barthes e o que eles disseram que pode explicar a intelectualidade brasileira em formação

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Sociologia Brasileira

Semestre: 1/2010

Professora: Mariza Velozo

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Estudo Dirigido – Módulo Teórico

Data: 23/06/10 (revisado em 13/07/20)

QUESTÕES 1 E 2

Ao desenvolver a 1ª resposta, descobri que já havia pensado no problema da formação da consciência brasileira ao me deparar com a construção da identidade alemã, portanto esta é uma resposta para as duas primeiras perguntas.

Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, narra a evolução da moral e do sentimento de “civilização”, auto-proclamado, de um povo, no caso, nós mesmos, mas obviamente em um recorte de alguns poucos séculos na transição da Idade Média para a Idade Moderna em alguns solos europeus (Inglaterra – secundariamente –, França e Alemanha, esta última ainda em franca formação – e ver-se-á que este ‘franca’ não foi utilizado aqui à toa!). Descreve, através de uma vasta coleção de casos e uma esmerada pesquisa documental: 1) a interiorização de normas de etiqueta pelas elites emergentes que queriam se distinguir da velha aristocracia e da massa plebéia das cidades e dos campos; 2) a ascensão (e talvez gênese, no senso moderno) da vergonha e do vexame como disposição costumeira em um contexto seguro; 3) e a redução da violência e da exposição ao perigo. Não há valoração positiva ou negativa nessas constatações de mudança, pois o autor não cansa de reiterar que as vantagens e desvantagens das metamorfoses culturais ao longo dos séculos se equivalem.

É inevitável que Elias, em que pese sua fortíssima verve literária e sua prosa gostosa e aconchegante, utilize termos específicos para designar idéias mais amplas em um curto espaço, expediente freqüente no livro: sociogênese e psicogênese são duas delas, e estão na boca de muitos sociólogos de hoje. Nada mais são estas que a conceituação do que foi dito acima, quer seja, a observação da origem, do nascimento, do parto ou da genealogia das idéias e práticas, desde o âmbito estatal até a esfera mais privada, sem que se recaia na ilusão da não-recursividade das estruturas dos eventos na História ou na hipérbole dos padrões de recorrência que explanariam todas as singularidades, porque o socialmente palpável e relevante sobre os quais se pode discursar se encontram entre um e outro desses dois extremos.

Elias investe na distinção entre as idéias francesa e alemã de civilização. Apesar de parecer algo trivial, ambas as perspectivas são tão divergentes e a língua alemã é tão peculiar que seu Zivilisation não seria esse termo imediatamente mais próximo, o sinônimo mais adequado, da denotação francesa. O que é fundamental entre o povo tedesco para compreender sua percepção de superioridade e de nobreza em relação a outras etnias é a Kultur. A partir da Kultur se pode falar da intelligentsia alemã, como por exemplo o jovem Marx fez em “A Ideologia Alemã”. Enquanto “civilização”, conforme a entendemos, do verbete latino, parece nos remeter a populações espalhadas por todo o globo, a uma espécie de sentimento genérico de pertencimento a algo abstrato e inefável que no entanto encontra validade em quase todos os cantos onde já tenha pisado o homem branco europeu, o conceito Kultur é sui generis. Evoca um estado menos fluido e mais estacionário, ligado à identidade de um dos países mais novos do mapa europeu (e aí, então, pode-se traçar um paralelo com o Brasil). Essa análise lingüística é um exemplo do método de sociogênese de Elias. Não só o nascimento e o advento em larga escala de algumas expressões interessam ao autor como a interrupção e/ou a retomada (após longo intervalo) de seu uso, pois a amnésia da gênese de alguma coisa pode relatar muito do que está incrustado no imaginário coletivo, e por que essa informação trafega misteriosamente entre as raias do consciente e do inconsciente.

Os estratos médios, na tentativa de assimilação dos costumes cortesãos (e, na verdade, diante de uma inevitável passagem gradual de bastão das mãos dos aristocratas territorialistas para a dos profissionais liberais, os cortesãos também precisavam assimilar os novos ingressantes, ou seja, havia uma troca de influências que tornava a côrte mais plebéia e os cidadãos “mundanos” mais “sangue-azul”), se adestravam ou se recalcavam em vários gestos, falas e posturas. Essa noção psicológica da “mulher de César” (mais importante do que ser é parecer; ou: ainda que se seja, é necessário fazer-se acreditável) sempre foi muito bem entendida pelos franceses, e sua Literatura tão precocemente sofisticada é a prova viva disso. Então, era necessário aprender a jogar o jogo, suavizar-se, desbarbarizar-se, para angariar vantagens sociais. Os franceses foram mestres dos alemães, nesse quesito. Mas estes últimos nunca “aprenderam direito”, se posso me expressar assim, pois o incômodo entre essa vida pública forçosa e a espontaneidade da vida privada do teutônico, mais rude, sempre foi pungente para si. (Sem embargo, apesar da opinião de um povo, necessário que se diga: nem por isso o menos afetado e pomposo é mais sincero – novamente o lembrete de Elias de que perde-se em algo para ganhar em outro algo, ou seja, toda mudança cultural é uma espada de dois gumes. Ora, é útil esquecer que se agia assim e assim e passou-se, convenientemente, a agir desse modo mais atual, de maneira que a amnésia é desejável. Os alemães se esqueceram que sabem mentir; e muitos cortesãos franceses talvez não se dessem conta que todos os seus trejeitos não passavam de uma modalidade de honestidade.) Para se ter idéia de a que ponto chegou essa plasmação, se falava mais o francês do que o alemão nesses estratos mais ambiciosos e progressistas da Alemanha! Por isso o conceito de Kultur exala um certo olor de soberba no ar, a ouvidos “mais delicados”: o pós-hegelianismo que Marx retrata tão caricatamente já pertence a uma fase posterior, em que os jovens, de nacionalismo exacerbado, finalmente se orgulham do seu falar, da sua filosofia praticada com todos os ingredientes da terra natal.

Imagine-se o brasiliano, este filho de colonizadores portugueses que nasceu no Brasil e se habituou a uma vida tropical, mas que, tendo de residir em algum centro importante, como Petrópolis, tenha de macaquear os modos da família real e sua gente mais chegada, a fim de ser bem-visto ou de um dia fazer parte do “time”. Pode ter sido um exemplo grosseiro, mas é óbvia a razão de estudarmos Elias no curso de Sociologia Brasileira!

Importante ressaltar que, se há implicações políticas muito fortes da Kultur, ela só foi consolidada graças a esse treinamento doloroso e insistente da classe burguesa alemã que gostaria de copiar moralmente aqueles que realmente mandavam no continente, ingleses e franceses, sendo seu projeto político e facetas tão conhecidos por nós como a Lebensraum, essa sede de expansionismo físico do império germânico, uma decorrência de metamorfoses culturais profundas que se faziam necessárias. É, inclusive, a mesma proposição de Schwarz para o Brasil e a Rússia de determinadas épocas: longe de poderem modificar seus modos produtivos porém ideologicamente informados dos modos de produção dos países de primeiro ,undo, essas duas Literaturas atingiram um posto privilegiado, como parece notável nas figuras de Machado de Assis e Dostoievsky; de Goethe, Heine, Kant e Hegel, no caso da Europa central e desta obra de Norbert Elias. Em que pese Rouanet refutar Schwarz, ele ecoa esse discurso quando diz que hoje a Europa representa o papel mundial um dia exercido pela Alemanha no contexto europeu, quer seja, nós, os periféricos, é que recebemos suas idéias, um substrato para concretizar uma História nova (a diferença é que para Schwarz a Literatura, a Ideologia, já eram a História sendo feita), em detrimento do Velho Continente, que está fatigado demais para isso. (Vide a escola pós-estruturalista francesa, que exportou inúmeros sistemas de crítica, às vezes autofágicos, nos “contaminando” com fenômenos antes exclusivamente europeus, como o niilismo, mas nada muito além disso. Ou seja, navega-se sem grandes meta-narrativas que proponham uma solução ético-estética.)

QUESTÃO 3

Gosto muito do fim do livro de Foucault “A Ordem do Discurso”, e como o início já foi bastante falado em sala, talvez seja esse, o retroativo, um bom caminho para desenrolar minha resposta (o engraçado é que iremos de novo a Hegel): “toda a nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer há pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano § Mas escapar realmente [itálico meu] de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar” (pp. 72-3). Nessa passagem e pouco mais adiante, Michel Foucault não exagera a respeito de um consenso que vejo na análise da Filosofia ocidental (ou pelo menos na chamada Filosofia continental), esta que está, a meu ver, como pano-de-fundo de toda a Sociologia construída: o sistema de Hegel é uma espécie de ápice da coerência, pois a “Fenomenologia do Espírito” é uma obra que se sucede a várias tentativas racionalizantes de filósofos pregressos e que parece – tem pelo menos uma aura de – definitiva, um marco, sem dúvida, da teoria do conhecimento, da História como disciplina e das estruturas. E exatamente por isso, às vezes nós, seus sucedâneos, temos dificuldade de lidar com as coisas como ficaram postas “do lado de cá”, e tentar a antítese ou a superação destes postulados mostra-se uma tarefa hercúlea, ainda mais tendo em vista que estamos diante do “mestre da dialética”, de quem Marx bebeu para chegar aonde chegou como um cânone de nosso curso; e mesmo sua operacionalização do Espírito de modo a que viesse a ser mundo/concretude/materialismo, mais fluido e hiper-empírico, é, como acaba de relatar Foucault, passível de ser vista ainda como uma continuação natural, ou “embutida já”, no trabalho de Hegel.

Por que tive necessidade de um preâmbulo inusitado que começa pelo desfecho de um livro sobre o discurso? Estamos falando ainda, aqui, como nas questões 1 e 2, da gênese de alguma coisa, do mistério dessa organização das idéias, como sujeitos que aparecem no mundo quando ele “já está completo”; e isso não é contra-senso algum, pois somos o mundo, estamos em perpétuo vir-a-ser, mas do ângulo da “necessidade ou não de um novo ser”, no presente, podemos nos dizer completos, somos esta obra, o mundo é nosso espelho; a consideração de um ser é inclusive meramente didática. Com todo o arcabouço que nos é fornecido quando nascemos, e com o que deixamos após nossa passagem, Foucault se pergunta: afinal, estamos começando um discurso? Reiterando uma fala ancestral? Nem um nem outro?! Sempre Cila ou Caribde e a obrigatoriedade de evitar os extremos… Epistemologicamente, ao mesmo tempo que toda situação é nova e todo discurso inédito, ele é um reflexo, uma recorrência, quem fala não somos nós, mas as coisas nos utilizam como porta-vozes. O que nasce, brota, emerge de algo já dado, não possui uma essência, mas pode-se dizer, para fins pedagógicos, que a essência do objeto que acaba de emergir já estava contida, seu germe situado, nas coisas pregressas, e assim ad infinitum. É por conter em nós agora todo o substrato do “ser-que-ainda-não-está”, desse faltante desconhecido, que podemos dizer: sim, somos completos!

Mas me dedicando mais ao discurso, o que está em questão nesse seminário de boas-vindas à universidade para a qual o autor foi chamado é que o monopólio desse discurso, todos os rituais que precisam ser cumpridos e as coerções que são irreparavelmente levadas a cabo, não se encontra em alguma instância central, não é ou não precisa ser sempre voluntário, mas subjaz em cada apresentação/re-apresentação de um sujeito falante. Em que pese, por exemplo, essa sua palestra ser algo transgressor, uma criação, espontânea até, assim que é emitida ela se torna já parte do poder regulador, uma arena que – é sua natureza fazê-lo – exclui, pela simples omissão, elimina mesmo, o que foi dito antes, e age sobre o que será dito depois, está situada na História, contra a História, rompendo com a História, mas deve isso a ela; a História é um compilado virtualmente inesgotável de discursos como esse que se justapõem.

Então como, pois, um livro que é um discurso como qualquer outro, “A Fenomenologia do Espírito”, supracitado, pode adquirir ares, como deixa transpassar Foucault em seu também discurso, de imbatível, ter a petulância de se imiscuir de repente entre as coisas do mundo e reivindicar um direito à perenidade, acima das outras? Não é essa uma divinização do indivíduo-no-mundo Hegel, ele também tiranizado-monopolizado, tirano-monopolizador de inúmeros outros discursos dentro de uma Alemanha insípida ou exuberantemente acadêmica (a depender do ponto de vista) dos séculos XVIII e XIX, esta por sua vez dentro de um sistema-mundo de complexidade indizível? A ponto de se dizer que a crítica ao seu Idealismo é apenas uma extensão proto-pensada ou latente do Seu Idealismo, assim, com letras grandes? É esse episódio, esse evento, que muito assusta teóricos do século XX, ainda. E posso utilizá-lo como ícone para o poder do discurso, e acreditar, com Foucault, que ele não é imbatível, ou recairíamos na asserção “depois de Homero (ou da Bíblia, da sabedoria de Salomão, etc.) nenhum livro precisava ser escrito”, “toda música é repetição e exploração da genialidade contida nos Beatles (ou Bach, ou Beethoven)”; ou viveríamos como o eu-lírico de Jorge Luis Borges (cf. Santiago), sempre à sombra do Dom Quixote, reprodutor mas nulo… Frases e neuroses do nosso cotidiano que, por mais que sejam tomadas como verdadeiras, não descaracterizam o que está-aí: foram escritos livros depois de Homero e há uma imensidão de outras músicas; portanto, ainda que procedesse o argumento da auto-suficiência, da completude do ser a dado ponto, o devir não “perdoa” e segue infatigável… Outra coisa não se denota da proposta de Foucault no meio de seu “A Ordem do Discurso”, ao exigir um “materialismo do incorpóreo” dentro de uma “filosofia do acontecimento”, um claro revide ao título imponente Fenomenologia do Espírito.

Ora, e cabe aqui, ainda, acrescentar: “a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?” (itálico do autor). Tal aforismo advém de Roland Barthes, quem nunca li diretamente, portanto não posso dizer o livro, mas o retirei de “Filosofando”, em apêndice de um dos capítulos, página 323, livro didático de Maria Aranha e Maria Martins que eu e muitos da minha geração usaram por vários anos na escola. Lembrei-me instantaneamente dessa passagem que já havia destacado anos antes ao falar de Hegel neste momento. Porque não feriria o autor se chamasse sua filosofia de a expressão da redundância, bem como a filosofia de Nietzsche. E esta frase é perfeita para continuar a idéia da auto-suficiência… Elas, as redundâncias, bastam a elas próprias, mas o mundo, que pode ser também uma grande redundância, é sentido historicamente, diacronicamente, então a redundância está sempre em deslocamento. Mas a própria idéia de uma redundância em deslocamento não será entendida igual hoje e amanhã, num século ou no outro, por isso a riqueza de interpretações é – com o perdão do trocadilho – fenomenal! Pouco importa, neste caso, se se assumir Nietzsche como posfácio banal de Hegel ou o inverso, e Marx ali como um elo perdido, ou nenhum dos dois, porque cada posicionamento, inclusive, traz muito de um ranço de época. Importante é saber que as operações lógicas, depois de “mais um fim”, sempre se reiniciam… E ainda que se lance mão do recurso “a lógica que paira sobre todas as lógicas”, vê-se-a de dentro, portanto o Um jamais será Um, embora sempre se possa usar o expediente da palavra e do conceito, que uniformizam, homogeneízam.

Talvez tenha faltado apenas um pouco de consideração – embora pense que já foi cumprida, me desculpe se tácita ou encoberta pela questão alemã – sobre o desinteresse e sua importância, em Foucault e outros: uma cátedra universitária jamais estará ali pelo discurso em si; o discurso-pelo-discurso é uma coisa que não existe; a Alemanha hegeliana, tida como a apoteose da Teoria, era bastante prática – o que seria toda a volição de explicar o Todo, superar o atraso teutônico e afirmar-se como cultura soberana sem o poder por trás de, em, sendo cada palavra? Portanto a intelligentsia pura não existe, embora se chame a maioria de “péssimos políticos”, quando intentam consciente e formalmente essa missão.

QUESTÃO 4

Devido à absoluta impossibilidade de separar as coisas, por achar que uma estava inexoravelmente ligada à outra, optei por juntar os itens “a” a “d” no que segue:

Sobre a questão colonial, em direta relação com essa indefinição do “lugar das idéias” e da posição a se tomar, de onde aparecem os discursos assumidos pelos intelectuais e para quem eles têm ressonância, adianta-se a questão das três principais matrizes étnicas do povo brasileiro (bem caracterizadas no último livro de Darcy Ribeiro): brancos, índios e negros – uns espoliados, dizimados, catequizados; outros escravizados; aqueles inevitavelmente transformados, rearranjados, reinventados em uma nova terra. Claro que as tensões raciais devido ao histórico de opressão e miséria da raça negra vão complicar ainda mais esse quadro de indefinição, com uma cornucópia de autores de uma mesma geração sem chegar a uníssono algum, chegando-se ao cúmulo de alguns liberais defenderem a propriedade de humanos (isto é, humanos de acordo com a teoria liberal estrangeira; sub-homens para nós, nesta abrasileiração esdrúxula) e de um império diretamente descendente do português ter de efetuar a transição do Brasil-Colônia ao Brasil-soberano, afora muitas outras polêmicas.

Na aula de hoje, quarta-feira, 23 de junho, a professora Mariza nos relatou, por exemplo, que os dois primeiros responsáveis por compilar uma história do Brasil no século XIX eram autores estrangeiros. Um dos autores desta unidade introdutória, cujo nome irei logo resgatar um pouco mais abaixo, chama o período imperial de “auge da liberdade de imprensa”, fase que jamais se repetirá: já que livros eram artigos raríssimos, quem tivesse meios que os escrevesse, pois ninguém o censuraria! O paraíso? Talvez, mas o motivo era desalentador para aqueles com alguma ambição intelectual e desejo de colher os louros da fama: não seriam combatidos, não seriam citados nem defendidos, simplesmente pelo fato de que não eram lidos, a não ser por seus exíguos pares!

Não serão poucos os que defenderão uma sociologia principiada do zero no Brasil. Quando muito, autores clássicos deveriam ser lidos apenas para serem filtrados no que interessasse aos trópicos e à estrutura da sociedade tupiniquim. Florestan Fernandes desejava com afinco uma sociologia nacional, e nos anos 60 vemos Roberto Cardoso de Oliveira formular o conceito de “fricção interétnica” para tentar tipificar como sui generis as relações raciais no país, impossíveis de ser explicadas por modelos importados de fora. Porém, e demonstra Rouanet muito bem, como citei na segunda questão, recai-se assim, ao se fechar ao exterior, num paradoxo, que é pensar-se à maneira européia para não-ser-europeu, até porque inventariar as componentes de uma nova nação, idealizar um Estado, é uma atitude completamente ligada às Luzes e à consciência nacional dos séculos XVIII e XIX da Europa! Um problema correlato se verifica na Índia, outro país de terceiro mundo que aparece para nós na mídia como tentando se modernizar e capitalizar e “formular sua identidade”, mas que possui uma organização interna que bate de frente com nosso modelo. Sequer pode-se chamar a Índia de país, olhando-se de dentro; as castas não coadunam com o humanismo deste início de milênio. Ainda assim, a única forma de nativos terem voz no palco do Ocidente é ocidentalizando-se um pouco, chegando à formalidade do grau de mestres e doutores nas sociologia e antropologia ocidentais. Sendo assim, o que esses têm para contar acerca de brâmanes e chandalas, e o que a intelligentsia brasileira primitiva tem para dissecar, é carregado de mal-entendidos e unilateralismos (PEIRANO).

Através de uma análise histórica da noção de Estado-nação, Anderson mostra a pedra no sapato dos movimentos marxistas e das Internacionais, que sempre buscavam uma superação do problema das fronteiras e etnias em prol de um só e mesmo ideal, encerrar a exploração do trabalhador. Quando guerras entre aliados políticos – em tese – são travadas por motivos territoriais ou raciais, algo não anda na ordem das coisas, principalmente para os comunistas que desejavam o desaparecimento ulterior do Estado e das diferenças de classe. A União Soviética possuía tal pressuposto no título e na gênese de sua promulgação; por isso, logo entrou em choque com a anciã China, país de tradições milenares que queria ter o seu socialismo. Sei que ainda não chegamos ao Brasil, mas esse prólogo serve para mostrar a ubiqüidade, hoje, no mapa-múndi, dos Estados-nações, de origens muitas vezes totêmicas, religiosas, ou provenientes de uma política comunitária extremamente arcaica (no sentido temporal, exclusivamente). E nós teríamos de ser forçosamente um deles a partir da emancipação de Portugal. Talvez seja este o tema mais explorado em todas as séries da escola básica até estarmos habilitados a chegarmos aqui. A inculcação dos processos que levaram o Brasil a ser o Brasil; é o marco zero, antes do qual não é muito preocupante, a uma criança, não saber muitos detalhes. Sua referência inicial para os estudos é Pedro Álvares Cabral. Aí começa a história de sua família, de fato. Felizmente não precisamos retroceder tanto na análise.

O que era antes um entreposto comercial para o branco e um cativeiro além-mar para o negro africano vai se incorporando, fundindo, com o devir das gerações. A terra passa a ser mais as pessoas. Espocam valores e costumes inevitavelmente diferentes, por questões de clima ou qualquer outra. Os índios, que não são “os índios”, são uma multitude de povos, de nações, se vêem em novas demarcações, rodeados de novas leis de propriedade, uma metamorfose tão abaladora quanto descer em um outro planeta com outras relações humanas, provavelmente. Há ainda o revés provocado no homem branco pelo contato com negros e esses estranhos que aqui já reinavam, isto é, prosavam, porque eles não tinham reis! A música, ritmos africanos, a crença antropofágica indígena, a alimentação nutritiva com base na macaxeira, os casamentos interraciais, a própria Igreja católica edificada nesta terra, talvez mais mansa para uns, mais inquisidora para outros, mas sempre em diálogo com as determinações da metrópole. E todos os órgãos burocráticos que se intensificaram num curto espaço de tempo quando da vinda da família real. Todas as ondas migratórias européias, as novas relações de trabalho, a sucessão dos ciclos econômicos e commodities para exportação, expansão do setor terciário, belicismo para com os vizinhos, concursos para criar bandeira e hino nacionais, sementes do orgulho a ser ejetado para contemplação dos países ricos… Poderia elencar outros parágrafos sem que o material se tornasse mais escasso!

Uma só característica seria o suficiente para especulações intermináveis: o calendário cristão. Contar o tempo a partir de 1500 e comemorar com mega-festas os primeiros 500 anos; sai-se do mito para entrar em um protocolo, em uma parafernália de normatizações compiladas num livro chamado código de leis, semelhante a outros, inspirado, isso é inegável, nas declarações humanistas francesas. As questões mais polêmicas se referem à zona híbrida em que o brasileiro se sente constrangido pelo que vem de fora e, de outra parte, pela expectativa de nossas autoridades quanto à nossa imagem lá fora, se nos acatam, se recebem nosso conteúdo, se o Brasil adquire relevo e reforça sua identidade. Seja Luís Costa Lima chiando porque o brasileiro usa terno e não deveria usar ou, já, Gilberto Freyre relatando a parca dieta dos mais ricos mesmo no período colonial, que se contentavam com frutos em putrefação porque tinham poucas noções culinárias neste mundo transplantado… Os autores desta unidade estão cheios dessas percepções.

Chama atenção a condição de marginalizado do intelectual brasileiro (do intelectual, para Mannheim). “Trapezistas sem redes de proteção” (p. 17), é assim que Peirano define esses primeiros corajosos da inteligência de um país por (se) fazer. Com “a raiva impotente” (p. 4) quase começa Lima. Desde sempre tivemos nossos gauches (no sentido drummondiano, portanto sem itálico), nossos excluídos dos debates de época (o que não significa que não tenham sido valorizados mais tarde), como Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ainda antes da imprensa chegar. Por muito tempo, nossos homens responsáveis por nos compreender foram mais deglutidores de pastiches e simulacros do que propriamente sensatos; talvez não por falta de juízo mas de condições materiais. Os jargões de Direito eram habituais para gerar boa impressão e dificultar a retórica (do oponente não-versado, é claro); a teatralidade e o gestual também mereciam atenção, quase maior que a do conteúdo; o corporativismo sempre foi impiedoso, nauseante, até – que o digam os advogados, jornalistas, sambistas, poetas, sempre defendendo seus próprios colegas sem olhar as razões e defendendo os truísmos da prática pura ou do talento inato para enxotar quem surgisse ameaçadoramente portando características exógenas –; e quantos mais numerosos fossem aqueles estrangeiros de que se apropriasse no discurso (omitindo seus nomes!), mais complicado seria retirá-lo de voga, se é que existia realmente alguma voga de discursos, ou estes eram apenas ecos do que se sucedia longe. A nostalgia e a conclamação hiperbólica da pátria são apontadas, com boa margem de segurança, como características presentes nessas primeiras gerações.

Conforme ensaiado acima, trago aqui o nome de Luís Costa Lima, quem disse que aqui era muito difícil haver público no princípio mas que isso implicava uma impressionante liberdade autoral. No entanto, não é sua voz a das aspas: “nem os governantes nem o povo as liam, e os poetas catequisavam-se (sic) entre si” (José Veríssimo apud Lima, p. 7). A verdade é que ainda hoje há resquícios dessa intelectualidade que não gosta de vestir a camisa da intelectualidade, se acha outras coisas, investe em áreas paralelas; não são poucos os casos de jornalistas nativos que se crêem sociólogos, cientistas políticos que se aventuram a showman e professores que acabam indo parar no parlamento – aliás, a lista de ministros que nenhuma intimidade tinham com a política até serem nomeados é embasbacante. Muito disso tem a ver com a “cordialidade oficializada” (Lima) ou “teoria do favor”, proposta por Schwarz para justificar anomalias que nem diagnósticos de ordem econômica pareciam poder contemplar. Em detrimento da luta dos estratos liberais, como se viu em outros países, por mudanças nas formas de encarar os fatos, aqui esses, desde a escravatura, sustentavam sua liberdade e autonomia nas costas dos senhores de engenho e da casa-grande, mas de um modo tal que também desengessavam estes senhores em muitas atribuições para as quais não estavam qualificados nem dispunham de tempo hábil. Sem que se pudesse dizer, no final das contas, quem era o parasita e quem era o hospedeiro, pois a harmonia do sistema era mantida, com as centenas de milhares de cabeças africanas em permanente reposição pelos navios do tráfico internacional. O legítimo país do “Acordão”. Num país como esse as instituições sempre, na prática, destoam de suas intenções originais, como é o caso da USP e também da UnB, para infelicidade de Darcy Ribeiro, com todo o plano de sua autonomia sendo sacrificado ao tecnicismo e às políticas governamentais mal-feitas que destratam a educação. Há surtos de efervescência cultural – como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros que encabeçam o Modernismo da década de 20 ou a Tropicália nos anos 60 –, seguidos por hiatos de um consentimento tácito dos intelectuais no que tange à performance negligente das autoridades. Ora, todos sabem que em terra onde a intelectualidade for marasmo, reedições do mesmo, sem debates francos, as idéias não podem mesmo vingar, por falta de quem as aperfeiçoe, contraste-as, enfim, dinamize o cenário.

FRASES UNIVERSITÁRIAS (2010)

SOBRE O CURIOSO FENÔMENO FOLK

E um pouco influenciado por esses manifestos modernistas mil…

Quão rasa é uma cultura que se representa em uma só raça, em uma origem única e despida de controvérsias!

E quão precária essa necessidade de auto-afirmar-se sozinho no mundo, como se independesse de relações, não fosse elaborado justamente nelas e por elas! E como se o mundo pudesse ter grande valor ou sentido se não houvesse esse agon, essa eterna discórdia, essa crise identitária!

O folk brasileiro é o próprio brasileiro. Não precisamos idealizar no passado o que já está presente.

Não temos saudade de uma perfeição mítica – olhamos para o horizonte, somos nossa própria dianteira. Sim, acreditamos em nós mesmos, não somos fatalistas!

SEXO

Palavra tão abundante e daquelas que falam do que não existe tanto quanto justiça, igualdade, democracia, revolução, e esse tipo de coisa…

CASA-GRANDE, ALHOS E BUGALHOS – anotações enquanto lia Gilberto Freyre

Majora’s possui bastantes elementos folclóricos!

todo animal [para o brasileiro] é apenas um bicho” – chega aê, bicho!

Onde já se viu não querer ter animais de estimação por medo de se entristecer quando eles morrerem?

A volúpia indígena com o vigor afro (ou seria o inverso?) são uma potente bomba calórica. (?)

Clube do Bolinha: viril até a página 2.

um vício em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.” Eu particularmente sinto um desconforto tremendo na hora da expressão oral em academês.

Torcicolo monstruoso, mas tá valendo a pena…

O internetês lembra o arcaico Português!

É o plantation, tion, é o plantation!…”

furor de Don-juan das senzalas desadorado atrás de negras e molecas.”

Quem não vê Lisboa, não vê coisa boa”

Vá queixar-se ao bispo!”

O Brasil foi como uma carta de paus puxada em um jogo de trunfo em ouros.”

Portugal é por excelência o país europeu do louro transitório ou do meio-louro. Nas regiões mais penetradas de sangue nórdico, muita criança nasce loura e cor-de-rosa como um Menino Jesus flamengo para tornar-se, depois de grande, morena e de cabelo escuro.” Por que o inverso não sucede?

Os orientais e eslavos são todos extremamente parecidos, ou isso se deve a uma ilusão perspectivística de nossa parte?

Gente como a gente – isso para ti é um elogio?

As mulheres até do século XIX se punham mais belas quanto mais gordas ficavam, pelo menos na opinião dos homens de então – e conseqüentemente delas próprias.

Achar todo pé feio – bem coisa de árabe!

Cascão, o Luso

A festa de igreja no Brasil, como em Portugal, é o que pode haver de menos nazareno no sentido detestado por Nietzsche.”

Usar óculos – outra modinha da alma judia!

cristãos-novos = judeus

Índio também devastava e dizimava a terra. Naturebas pragmáticos.

Não há alma que esbanje inteligência sem muita nutrição por carne e leite.

Pois que cortar o cabelo é uma tolice e uma falta de economia!

Por fora muita farofa, por dentro mulambo só” – há o contrário também.

Cuspindo-me abelhas africanas…

São Gonçalo do Amarante,

Casamenteiro das velhas,

Por que não casais as moças?

Que mal vos fizeram elas?”

Dançou-se e namorou-se muito nas igrejas coloniais do Brasil (…) Namorando e tomando sorvete nas igrejas exatamente como 90 anos depois nas confeitarias e nas praias.”

Freud e os resquícios de práticas como “ejaculação na face ou na boca de uma pessoa”. O prazer oral e o prazer das zonas erógenas.

A origem das doceiras: “Não podendo-se entregar em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos. (…) E é curioso o fato de chamar-se ‘dinheiro para comprar bolo’ o que dão certos pais brasileiros aos filhos rapazes, em idade, segundo eles, de ‘conhecer mulher’.”

Byron aprendeu palavrões em Português, a língua mais fecunda para esse “fenômeno”: “sonoros palavrões que nas cartas ao seu amigo, o Rev. Francis Hogson, felizmente não soube escrever direito: carracho, ambra di merdo. Carracho, para D.G. Dalgado – nos seus comentários às cartas de Byron – deve ser ‘caramba’; identificação que não nos parece correta [negrito meu]. Quer nos parecer que o poeta inglês procurasse grafar palavra menos inocente e mais portuguesa do que caramba. (…) A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza. Histórias de frades com freiras. De portugueses com negras. De ingleses impotentes.”

P. 358: médias de idade em que as mulheres sofrem primeira menstruação em diversas localidades geográficas.

O mito da aberração incestuosa. Manga e seu leite…

Eu aumento mas não invento”

Eu aumento, mas não em vento.

Pp. 359-60: autêntico exercício de ervilhas humanóides de Mendel (relatos de homens que casavam com as bisnetas de seus irmãos).

A arte do eufemismo: seu mitomaníaco!

Nas palavras do povo: ‘Não há Wanderley que não beba; Albuquerque que não minta; Cavalcanti que não deva’.”

bonita e mulher, só pretas”

Dos Mendonça Furtado se diz no Norte: ‘não há Mendonça que não tenha Furtado’.”

Ceroulas eram um verdadeiro luxo àquele tempo… E masculinas!

DESCULPAS DO HOMEM MODERNO

Não, isso não é da minha alçada…”

Não é a minha área!”

Coloque no microondas e estará pronta em 10 segundos…

És um homem ou um amálgama? Ou deveria eu dizer, “rato ou amálgama”?

* * *

Ópera, trabalho. Como o trabalho se vulgarizou, desmusicalizou. Da lavadeira ao rato de gabinete.

479 (n. 73): sobre a maconha – “Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música ainda nos ouvidos. Parece, entretanto, que seus efeitos variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo.”

A sifilização brasileira nos trópicos! Sífilis, a avó da AIDS.

a fome de mulher que aos 13 ou 14 anos faz de todo brasileiro um don-juan”

Sócrates era pederasta. Tanto é que “amor socrático” torna-se sinônimo da situação em que o professor se apaixona pela aluna.

Até no caso da bruxaria, reputa-se ao europeu maior “responsabilidade”, diante de credos satanistas importados do continente branco, em detrimento de misticismos dos negros e índios (que, claro, apimentaram ainda mais os rituais, mas isso depois – e hoje temos a Bahia).

P. 406: do “Viagra colonial”

A questão que se nos impõe não é refutar simpatias a priori, por questões de lógica. É verificar sociologicamente qual a porcentagem dessas simpatias de amor que realmente tiveram um bom êxito! Que tal?! Se duas moças fazem simpatias perfeitas, quem decide o desempate? Ou não tem desempate? O coração do mancebo se racha ao meio…

Monteiro Lobato, o grande concentrador das criaturas brasileiras.

É de comer?”

Demorará até certos setores da população entenderem que o racismo não é, no Brasil, um problema de primeira plana. E com “não é”, quer-se dizer: não devera ser, porque realmente nunca foi o dilema-mor. Ele, como protagonista, age mais como “desviador focal”…

Fletcher e Kidder, que estiveram no Brasil no meado do século XIX, atribuem a fala estridente e desagradável das brasileiras ao hábito de falarem sempre aos gritos, dando ordens às escravas.”

488 (155): “No Brasil, entretanto, embora contra a lei, a nobreza quase que imitou o Código de Manu onde se permitia à mulher casar-se até com 8 anos.”

A boca como a das irmãs de Maria Borralheira: boca por onde só saía bosta. Meninos que só conversavam porcaria.”

Com pretas e pretos boçaes, e com os filhinhos destes, vivemos desde que abrimos os olhos; e como poderá ser bôa nossa educação?”

P. 437: A surpreendente e comovente infância de Sílvio Romero (racista!), apegado à sua ama-de-leite (negra!).

O medo consistia principalmente em dizer-se, em voz grossa, ao menino mijão que o Mão de pêlo, o Quibungo ou o Negro Velho havia de comer-lhe ou cortar-lhe a piroca. Medo que se fazia também à criança masturbadora.” – variante: deixar a mão cabeluda se abusar…

452: o “jogo do beliscão”

Aquele mórbido deleite de ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso”

Bons tempos em que fazer gente era ganhar dinheiro…

Eu fui mimado ou fui simplesmente criado feito bicho?

Eu era tão cândido que queria escrever um livro para meus filhos que ainda estavam longe de nascer, mas que eu sabia que viriam, contando como era a vida de seus pais quando jovens…

O brasileiro não é o tipo de pessoa que aceitaria de repente um Jesus negro.

quando é que as leis de proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?”

Tempos e locais em que se chama ao pai de “Sr”.

Vossa Excelência, com todo respeito, é um filho da puta!”

Chifre, mais conhecido como pular a cerca ou “com sacrilego desprezo do sacramento e de tão authorisadas pessoas injuriava o thalamo conjugal”…

É verdade que em assuntos de amor e de mulheres os franceses passam por mais entendidos que os ingleses; como viajantes, porém, os ingleses levam a palma aos franceses em lisura, exatidão e honestidade de narrativa.”

os negros – tantos deles gigantes enormes, mas pirocas de menino pequeno.”

Se por um lado todos nós somos escravos (do sistema produtivo), todos nós somos como os senhores daqueles engenhos: sedentários à vera. Parece que só colhemos o lado ruim de ser um e outro!

louco moção, locomoção, comoção, low commotion

amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa”

Incrivelmente, ainda não li UM sobrenome Araújo OU Aguiar, nessas imensas listagens e citações!

Uma preta quarentona é ainda uma mulher apenas querendo ficar madura; ainda capaz de tentações envolventes.”

O que seu pai faz?” “Meu pai é padre.”

Famílias de padres, netinhos seguindo o ofício! E a castidade…

P. 534: primeiro Aguiar do livro. Sobrinho de padre.

P. 536: “‘Feliz que nem filho de padre’, é comum ouvir-se no Brasil.”

de” (no sobrenome) é inclusive preposição que designa nobreza.

Forrest Gump correndo para cicatrizar a ferida amorosa: o cúmulo da sabedoria.

Bolo” não-raro associado à genitália. Aniversário…

introdução do gelo em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um navio norte-americano, o Madagáscar.”

Eu adoro ler as contracapas dos livros. Até a contracapa do meu livro conterá citações ilustres ressaltando que este é o maior livro já escrito pela humanidade. Aguardai! (DÉJÀ VU)

* * *

UMA COPA DO MUNDO DE INTERVALO – novas impressões, 4 anos depois

O POVO BRASILEIRO – Darcy Ribeiro

monções menções traições

Somos um povo novo feito de povos milenares”

Cifras ribeirinhas…

Projetos que tomam o lugar de outros projetos… No final damos um jeito.

Não deve haver coisa pior – e mais comum! – do que escrever ou pensar que escreveu um livro que, no fundo, não diz nada.

O processo civilizatório/civilizador – confusão Ribeiro-Elias.

Crítica ferrenha aos antropólogos, que cultuam os assuntos mais esdrúxulos e se esquecem apenas daquilo que mais importa!

O Português brasileiro inventou uma nova acepção para o verbete revolução, e na verdade é decreto-Lei que só esse sentido pode ser aplicado em território tupiniquim: contra-revolução.

P. 34: “Não se comia um covarde.” – Hans Staden entre os tupis. Monteiro Lobato não se lembra disso… (adendo 2020)

acato ataco recato

Macambúzio unbóide

Jura, Jurema?

DAQUELA SÉRIE CHAMADA “E SE…”: Não houvesse o continente americano, mas tão-só “o oceano”, como se teriam desenvolvido os outros continentes?

Fetiche quanto ao igualitarismo dos movimentos sociais.

stalinismo jesuítico”

Para que permitir estrangeiros concorrendo às eleições, se nossos políticos são os de alma mais estrangeira que há, menos brasileiros que qualquer cosmopolita nova-iorquino, londrino ou parisiense?

devemos configurar no futuro uma população morena em que cada família, por imperativo genético, terá por vezes, ocasionalmente, uma negrinha retinta ou um branquinho desbotado.” “os brasileiros se tornam capazes de gerar filhos tão variados como variadas são as faces do homem.”

7 A 1: “Os brasileiros todos torcem nas copas do mundo com um sentimento tão profundo como se se tratasse de guerra de nosso povo contra todos os outros povos do mundo. As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas sofridas como vergonhas pessoais.”

LEITURAS RECOMENDADAS

Eisenstein – Printing press as an agent of change (1979, 2 vols.)

[Não é o cineasta: “Eisenstein’s work brought historical method, rigor, and clarity to earlier ideas of Marshall McLuhan and others, about the general social effects of such media transitions.”]

Havelock – Preface to Plato

José Américo de Almeida – A Bagaceira

José Lins do Rego – Menino de Engenho

Lipovetsky – O Império do Efêmero

Octavio Ianni – v á r i a s o b r a s

Roger Bastide – A Psicologia do Cafuné (1941)

Bomberman: Act Zero (Xbox 360) (O pior jogo de 2006!)

FICHA TÉCNICA

Developer: Konami

Publisher: Hudson

Estilo: Ação/Puzzle

Data de Lançamento: 29/08/06

NOTA

3.1

Este jogo é pra…

(X) passar longe ( ) dar uma jogadinha de leve ( ) dar uma boa jogada ( ) jogar freneticamente ( ) chamar a rua toda pra jogar ( ) um tipo específico de jogador. Qual? ______ ( ) incógnita

Bomberman está aí há mais de 20 anos, e é sem dúvida um clássico dos videogames. Porém, podemos dizer que da virada do milênio para cá a série vem rolando por uma ladeira que parece não ter fim… Desde que os desenvolvedores se sentiram impelidos a trazer jogos em três dimensões, o velho charme foi bastante denegrido: do Nintendo 64 ao N-Gage, tudo o que andaram fazendo com a marca virou motivo de chacota. Sempre que há uma mudança geracional nos videogames, as esperanças se renovam e cresce a expectativa por um novo Bomberman que traga de volta boa parte da diversão dos anos dourados… Por que com o X-Box 360 seria diferente? Porém, assim que Act Zero deixou de ser promessa para se tornar um produto finalizado e nas prateleiras, os fãs acusaram o duro golpe: tudo que saiu nos últimos 15 anos é fantástico, perto desse aqui. Se é para encarar pelo lado bom, é realmente impraticável que a ladeira continue: trata-se, sem engano algum, do fundo do poço! Melhores dias virão…

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Quem é esse astronauta?

Pela caixa já é possível se aborrecer e se desapontar. Ato Zero, como o nome deixa entrever, tenta uma reforma conceitual na série. Ao invés do carismático cabeça-de-bolha de outros tempos, tem-se personagens antropomorfos em armaduras high-tec coloridas. Eu particularmente odiei! Retiraram-se as arenas brilhantes, cheias de detalhes e propositalmente claustrofóbicas das versões anteriores. Em troca, inseriram salas sombrias e insípidas, nas quais se organizam os combates. No enredo, a explicação de um visual tão soturno: uma prisão foi construída no subterrâneo para abrigar humanos que servem de cobaia para diversos experimentos mortais. A chance de escapar é aprendendo a usar o poder das bombas para atravessar as 99 salas que precedem a saída (isso me lembra um filme B à la Saw chamado Cubo Zero). 99 fases, por sinal, repetitivas, modorrentas de se jogar…

Há somente dois modos em B:A0. Offline, a quantidade cai para 1! O single battle mode é o mesmo da história supracitada, em que um humano terá de arriscar a vida por 99 cômodos-labirintos em um esquema razoavelmente conhecido por bombermen veteranos. O curioso é que mesmo tratando-se de um console de última geração há a precária ausência de um save system, isto é, seu progresso não pode ser salvo, e o jogador dispõe de uma vida e nenhum continue. Parece brincadeira de mau gosto, mas é verdade! A principal dificuldade, no entanto, sequer reside nos obstáculos encontrados dentro da tela: a paciência, e não o talento do homem-bomba, será posta à prova!

Basicamente, o protagonista se situa em um quadrado cheio de blocos de dois tipos, os quebráveis e os indestrutíveis. Percorre-se o espaço livre “dropando” bombas no chão, destruindo o que for possível, o que inclui mais do que elementos inanimados, pois haverá sempre formas de vida hostis que buscam eliminar o prisioneiro. Além disso, contar-se-á com a ajuda de power-ups localizados dentro dos blocos quebráveis. Infelizmente, a versão do 360 oferece menos de 12 deles, o que torna a seleção pobre até mesmo em comparação à da era 16 bits! Quando se trata de encurralar a CPU nas arenas, os hardcore players da série sabem (e devem inclusive estar rindo agora) que a exigência não é tamanha. A mecânica é intuitiva e qualquer um pode absorvê-la em minutos. O fogo se propaga em linha reta, em 2 ou 4 sentidos (a depender dos blocos que estão nas imediações da bomba), em um determinado raio, pouco tempo após a bomba ser dropada. O detalhe é que o gamer terá de tomar o maior cuidado com os explosivos que planta, pois Bomberman é só um nome estilizado (ou será que não? Bem, dizem que Batman tinha medo de morcegos)… e o fogo para ele é tão letal quanto o é para os inimigos. Conforme as fases vão passando, o número de explosivos aumenta, as situações se tornam apimentadas, e a morte bafeja mais de perto.

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O parágrafo acima é praticamente tudo o que a tradição legou a Act Zero e sua destruição da reputação de um clássico (não podemos dizer “herói”, posto que o autêntico Bomberman foi dizimado desta versão, os personagens controláveis são irreconhecíveis – vamos torcer para que seja apenas uma temporada na geladeira da Hudson Soft, e que ele volte com o cabeçote, a meiguice e todo o impacto explosivo que lhe são naturais numa ocasião futura!). As próximas características não serão bem-recebidas pela velha guarda. Houve a implementação de uma mecânica de jogo batizada de FPB, “first-person bomber”. Acontece que o que se acostumou chamar de primeira pessoa nos jogos não corresponde à visão oferecida ao jogador em Act: a câmera está atrás do boneco, isto é, ele pode ser visto em ação, o que configura uma terceira pessoa. De muito perto, de todo modo. Entendemos o recado! Contudo, não há vantagens na “inovação”. Os blocos são da altura do aventureiro no labirinto, então eles ocultam a visão do que há ao redor com extrema facilidade. A cada mudança brusca de direção, será necessário rotacionar o direcional direito para tentar ajeitar as coisas, o que em meio a uma ação frenética está fora de cogitação! Escândalo mesmo os bombermen old school irão armar agora, ao descobrirem que no FPB não é o contato do fogo com o personagem que o mata. O Bomberman encarcerado da vez terá, nesta visão em (pseudo)1ª pessoa, uma life bar, e as explosões poderão ser mais ou menos graves, a depender das circunstâncias. Para quem ainda se prestava a testar o produto, dada uma natural curiosidade que temos até por artigos mal-avaliados, antes de se deparar com esta verdadeira blasfêmia ao espírito do Bomberman antigo, resta uma consolação final: o desligamento do inútil modo FPB e disputar o single mode na visão clássica panorâmica (2a imagem). Outro aspecto também é “normalizado” ou convertido para o padrão antigo, mais aceitável: 1 hit = 1 kill, ou seja, cada contato com o fogo volta a ser letal.

A segunda opção para quem não gostou do single mode e de suas nuances é o multiplayer mode, exclusivamente via Xbox Live. Significa que será possível batalhar simultaneamente com outros 7 Bombermen (ou infelizes que caíram no conto do vigário e também possuem o jogo) de qualquer localização geográfica, menos com quem realmente importa: os amigos, do seu lado! Em Bomberman, essa é talvez uma das maiores frustrações, porque o ambiente das disputas é o ideal para fazer ferver uma sala de estar e alegrar uma tarde modorrenta. Se os desenvolvedores (aliás, por que a Konami?) apenas lembrassem da farra possível num Sega Saturno: 9 caras em frente a uma TV…! No que se refere aos servidores da Microsoft que sediam partidas, há a opção de entrar em duelos ranqueados ou não-ranqueados. Há atualizações constantes entre os primeiros colocados, com estatísticas completas. Dentro das partidas ainda será possível escolher entre o FPB e o modo clássico. Alguma dúvida neste setor? Os próprio servidores não escondem que o grosso dos competidores prefere o modo clássico, mesmo que na visão em “primeira pessoa” todos os outros 7 fossem prejudicados também! Avisa-se de antemão que, como se trata de um game fracassado, achar o número suficiente de jogadores para fechar uma partida com o máximo de capacidade é um evento considerado de sorte. O mais provável é encontrar 3 ou 4 gatos pingados para compor as arenas!

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Tá me zoando, porra?! Tragam o Bomberman antigo de volta!

A MESMA locutora-padrão de toda a década de 90 para cantar os resultados de vitória e escolhas no menu? Francamente… As explosões aparecem em duas cores, o que em si não é nada, e não apresentam aspecto impressionante de nenhuma perspectiva. Bombergirls selecionáveis têm modelos gráficos ridículos e completamente desnecessários em que os seios balançam o tempo inteiro, para não falar das nádegas à mostra na foto acima no caso dos modelos masculinos! O fato do time responsável pela engine de Bomberman:AZ ter perdido tempo programando algo tão asinino como a física do peito da boneca e de não ter tido vontade de eliminar as falhas graves que já enumeramos (e nem se dignar de contratar um voice worker) é indicativo da péssima qualidade da nova aparição de um Bomberman…

Rafael de Araújo Aguiar

Agradecimentos a Greg Mueller

© 2011-2020 NewGen

Mario Party 9 (Wii)

FICHA TÉCNICA

Developer: Nintendo

Publisher: Nintendo

Estilo: Ação / Sorte

Data de Lançamento: 11/03/12

NOTA

6.8

Este jogo é pra…

( ) passar longe (X) dar uma jogadinha de leve ( ) dar uma boa jogada ( ) jogar freneticamente (X) chamar a rua toda pra jogar (X) um tipo específico de jogador. Qual? O Nintendólatra ( ) incógnita

Finalmente uma demora de vários anos para um novo Mario Party sair. E finalmente alguns câmbios de maior porte na série! O primeiro deles é que os 4 participantes da gincana de tabuleiro se locomovem juntos, num veículo, embora cada um continue a ter seu turno (pois o posto de capitão é revezado). Como os gráficos foram finalmente adaptados à nova era de display televisivo, o visual surpreenderá os gamers nos primeiros minutos, mas não é nada tão drástico, a não ser a disposição da classificação, que desta vez ocupa o lado esquerdo da tela para todos.

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Em MP9 não há estrelas e moedas para colecionar, mas apenas mini-estrelas, algumas benévolas e outras malévolas (que negativam a contagem). Itens foram retirados da mecânica de jogo, o que nos faz pensar que, depois que o time da Hudson saiu do desenvolvimento do projeto, este MP é a primeira continuação verdadeira do clássico n. 1, se afastando das loucuras da era GameCube, que é definitivamente para esquecer. E há dois encontros com chefes por tabuleiro, o que sem dúvida apimenta mais as coisas e dá uma rajada de ar fresco na maratona festiva do encanador (são os minigames mais complexos e divertidos). Sete tabuleiros, 16 personagens selecionáveis (2 deles secretos) e 80 minigames (embora alguns tenham problemas de funcionalidade graças ao controle remoto – mas isso não conta como defeito se você só quer dar risadas em grupo e faz o tipo “jogador casual”) farão da experiência algo mais comprida, mas nada acima de 15h, a não ser em vindouras reuniões fortuitas e nostálgicas.

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O que não foi arejado até hoje é a inteligência artificial da CPU, problema crônico na série. Não que seja baixa, essa não é a reclamação exata: Easy, Normal e Hard nunca foram fronteiras bem-definidas, no final das contas. E independentemente do nível do adversário, o problema é que a sorte parece acenar sempre para eles, sacaneando o jogador humano. O chance time e os eventos do Bowser continuam deixando as vítimas absolutamente revoltadas, para não dizer outras palavras de baixo calão…

Deu para perceber que apesar da audácia despertada, falta polimento à Nintendo: é como se um grande trabalho tivesse sido começado, mas deixado pela metade.

Rafael de Araújo Aguiar

Agradecimentos a Ashton Raze, SonAmyFreak4Eva e super_luigi16

© 2012-2020 NewGen

Resident Evil: Director’s Cut (PS1/PS3) (BioHazard: Director’s Cut – Japão)

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FICHA TÉCNICA

Developer: Capcom

Publisher: Capcom / Virgin

Estilo: Action Adventure > Survival Horror

Datas de Lançamento: 25/09/97 (JP); 10/12/97 (EUA/EUR-c/ Demo de Resident Evil 2); 06/08/98 (JP-Dual Shock Version); 14/09/98 (EUA-Greatest Hits); 22/11/06 (JP-PSOne Classics); 28/05/09 (EUA-PSOne Classics); 31/03/11 (EUR-PSOne Classics); incluído ainda na compilação Resident Evil 6 Anthology (PS3).

NOTA

8.1

Este jogo é pra…

( ) passar longe (X) dar uma jogadinha de leve (X) dar uma boa jogada ( ) jogar freneticamente ( ) chamar a rua toda pra jogar (X) um tipo específico de jogador. Qual? O completista; o diretor de cinema, e de um cinema, aliás, horripilante! (X) incógnita

 

Enquanto a Capcom trabalhava na continuação do seu Survival Horror de maior sucesso (e único, até então), estava também forjando o que veio a ser conhecido mais tardar como ”Resident Evil 1.5”, com add-ons valiosos para o velho e surrado RE1, a ser lançado exclusivamente no console da Sony. Director’s Cut – o subtítulo oficial, parafraseando versões integrais/deluxe (do diretor) de longas-metragens lançadas meses ou anos depois – aterrissou em 1997 e para seduzir compradores sequiosos ainda contava com uma demonstração jogável de RE2, pelo menos na rendição norte-americana. Os principais destaques desse melhoramento são a inclusão de um Beginner Mode e de um Arrange Mode; na prática, levels de dificuldade easy e hard para complementar o modo original, que seria considerado “normal”. Ou seja: agradando gregos e troianos, a Capcom queria que iniciantes e veteranos comprassem a idéia de RE:DC. E essa versão se tornou clássica, por direito próprio, vindo a ser um hit também na PlayStation Network anos depois.

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O Arrange Mode é ideal para ser explorado por pessoas já familiarizadas com a aventura original. Itens estão espalhados por localidades diferentes, o que foi uma espécie de precursor do randomizador de objetos de RE3:Nemesis. Tudo está de certa forma mais complicado: inimigos mais resistentes e que produzem danos mais gravosos, a ponto de Jill poder morrer com duas mordidinhas de zumbi no pescoço. E o mandamento “economize na munição e nos saves” fica em negrito como nunca antes.

A dublagem do jogo é tão desastrosa que a própria Capcom já fez piadas sobre isso, os fãs gostaram e hoje esse trabalho é enaltecido como “um clássico da ruindade”!

A estória não muda nada. Agora, outra alteração foi promovida nos ângulos de câmera, para dar aquela sensação de que o jogo é mesmo outro. Alguns acham mais esquisito que o antigo, outros absorveram como um passo rumo a uma maior naturalidade. E há pelo menos um facilitador: a inclusão de uma handgun que mata zumbis inoportunos com menos suor; fora o estímulo da obtenção de um novo guarda-roupa para sua dupla de heróis. O Beginner Mode é fácil de resumir: o mesmo de sempre (do RE1 seminal) só que com muito mais balas para cada arma. Outra coisa que poderia ter sido melhorada pelo menos no novo easy mode, mas que segue imutável, é que os slots para encaixar os itens são poucos (só 6 ou 8, dependendo de você estar com Jill ou Chris). Quanto aos loading times, não vejo por que na versão de PSN eles ainda existam, que desleixo!!

Críticas ao mapa incluem a ausência de flechas (como em Zelda:Ocarina) indicando por onde você entrou no aposento, o que gera muita desorientação no labirinto-mansão em que se passa o jogo

São, reiterando, essencialmente 3 versões rodando por aí até hoje. Uma com uma demo de Resident Evil 2, que se tornou a mais anacrônica de todas. A outra versão física disponível é da coleção Greatest Hits, mais do que habitual em termos de PlayStationOne, com a cara dum zumbi na capa ao invés de Chris Redfield empunhando uma arma e as Montanhas Arklay ao fundo. A demo de RE2 foi removida mas, em compensação, há a compatibilidade com o controle dual shock (analógico). O que não gostei foi que remixaram a trilha sonora e ela ficou inferior. Finalmente, a terceira versão é o download content da PlayStation Network do PlayStation3, até segunda ordem obtenível por 10 dólares. Mas seja qual for a forma pela qual você chegue a Director’s Cut, trata-se da edição definitiva para o clássico dos clássicos do Survival (chama a Gloria Gaynor, porque VOCÊ VAI SOBREVIVER à infestação do vírus!).

Rafael de Araújo Aguiar é sociólogo não-praticante e um tanto apaixonado pela forma velha de se programar jogos

Lista de agradecimentos

GameFAQs:

1983guy

Ofisil

LordShibas

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Shotgunnova

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© 2014-2020 NewGen-0ldbutg8ld Do novo ao velho do velho ao novO ®

CastlecronoVanialogia!

CastlevaniA

Desde o começo, Castlevania foi um compêndio de filmes clássicos de terror, afinal seus antagonistas eram, invariavelmente, encabeçados pelo Conde Drácula e compostos por figuras ilustres como o Frankenstein, a Múmia, a Morte, a Medusa, etc., que até podiam ser chefes de fase mais complicados que o próprio vampirão. Falando nele, os vampiros têm origem imemorial, ligada a lendas e folclores regionais, porém a popularização e a universalização do mito vieram somente em 1897, com a publicação de Dracula (no original, sem acento), de Bram Stoker. Mas terá sido uma adaptação pura e simples da Konami aos games? Você saberia dizer o quanto da saga dos Belmont é fiel à novela de Bram?

A linha do tempo de Castlevania (um nome genérico para o castelo assombrado onde mora o insistente Conde Vlad), que é o objeto central deste artigo, é muito inconsistente. Há alguns buracos e controvérsias inconciliáveis. O manual de instruções do Castlevania 3 americano relata que a aventura de Trevor acontece 100 anos antes das peripécias de Simon. Já o manual da versão japonesa apresenta Christopher (mais os títulos de Game Boy) como o sucessor das aventuras de Trevor. Tudo não teria passado de erros de localização, no entanto. As datas de ressurreição do monstro Drácula, que seriam em tese de século em século, são geralmente mais curtas na sucessão dos jogos, mas podemos aceitá-las sem maiores legalismos. A linha do tempo abaixo, para além de um trabalho meticuloso de fã, também constava da página japonesa da Konami, que, não sabemos por quê, foi um dia desmantelada. Alguns jogos, como os Castlevania de Nintendo 64, além de Castlevania: Legends e Circle of The Moon, foram desconsiderados e retirados do enredo oficial, sempre por razões que não nos parecem totalmente esclarecidas. De qualquer modo, estes games também estão nessa timeline para que não faltem episódios na nossa reconstituição.

Há muita confusão em torno das odisséias protagonizadas por Simon Belmont, possivelmente o membro da família mais famoso, ou no mínimo o mais carismático ou “legendário” de todos. Antecipamos que o Vampire Killer de MSX (primeira aparição da série), o Castlevania de NES (de onde inclusive foi retirada a logomarca que abre a matéria – ah, que nostalgia!), o Super Castlevania IV de SNES, o Haunted Castle do Arcade e o Castlevania Chronicles de X68000 e de PlayStation são diferentes formas de contar a mesma estória, o mesmo episódio. O maior signo disso é que no Oriente todos esses jogos para múltiplas plataformas se chamam Akumanjou Dracula. O único aspecto sobressalente que merece comentários é que em Haunted Castle o protagonista não tem um nome e luta para salvar sua esposa com quem recém-casou. Em sites não-oficiais nipônicos essa dama é chamada de Selena, mas quão honesta pode ser a informação? Além de tudo, Dracula X (SNES e PC Engine/Turbografx) é exatamente a mesma versão não importa o videogame, para efeitos de trama, exceto o Dracula X de Saturn, que tem esse nome por ter aparecido apenas no Japão: ele é o remake melhorado de Symphony of The Night.

Um vampiro (morto-vivo) precisa do sangue de seres vivos para “sobreviver” (para manter a maldição eterna nas veias e não virar pó ainda – “eterna” enquanto dure!). Há ainda o método de envenenar vítimas fazendo-as beber o próprio sangue draculino. Quando esses humanos (ou animais, nunca se sabe) morrerem de fato, voltarão à (semi-)vida como vampiros ao invés de se entregarem totalmente ao Além, pacificados. Vampiros só saem para caçar de noite, porque são muito mais fracos à luz do dia. Mas ao contrário de muitos filmes e novelas, em Castlevania essas criaturas super-poderosas não se convertem em cinzas caso sejam atingidas diretamente pelos raios solares! Alho e crucifixos ainda podem repeli-los, enquanto água benta pode infligir-lhes queimaduras sérias. Vampiros podem encolher suas presas e disfarçar um pouco o aspecto “pálido” para representar humanos normais, ou então metamorfosear-se em morcego, lobo ou neblina (para escapar de seus adversários ou mesmo se infiltrar pela fresta de portas).

Nos episódios da franquia Castlevania, o herói costuma matar Drácula com chicotadas. Essa postura, em tese, não seria possível. No folclore é dito que, para matar um vampiro, uma estaca de madeira deve ser fincada até atravessar o coração da criatura deserdada e esquecida por Deus (que, de qualquer maneira, sequer era capaz de bater, pois vampiros não têm pulso!). Depois, havia mais duas precauções para evitar a ressurreição vampiresca: a) degolar o corpo e encher a boca de alho, enterrando sua cabeça voltada para baixo; b) selar a tampa do caixão enquanto o vampiro estiver dormindo e jogá-lo no fundo dum lago ou do oceano, já que eles também têm sérios problemas com a água. Mas o que torna as chicotadas dos Belmont letais é que o instrumento fôra agraciado com poderes divinos contra as criaturas da noite. Eis o mítico chicote Morning Star (Estrela da Manhã), um dos apelidos do planeta Vênus.

A origem mais remota dos duelos Belmont X Conde se dá com Leon em Castlevania: Lament of Innocence. Desde então, quase todos da linhagem têm sido convocados para usar seus poderes sobre-humanos e limpar a superfície terrestre da malignidade. Quando o Conde se insinuava, com sua horda de bichos insanos e nefastos, como um véu sobre a Europa, um Belmont nunca estava muito longe. Mesmo quando tudo parecia dar errado, um surpreendente aliado surgia do meio da escuridão… O guia desses atos heróicos não é ninguém menos que o jogador!

* * *

1094 – Castlevania: Lamento da Inocência

É o tempo das Cruzadas, e a estória se foca no primogênito dos matadores de vampiro Leon Belmont, por ora apenas um membro da Ordem da Cavalaria preocupado em evangelizar outros seres humanos hereges. Em um dia escuro, sua prometida Sara é raptada. Seu amigo e confidente, Mathias Cronquist, acometido de um grande mal que o faz ficar de cama, conta que a donzela foi levada por um vampiro chamado Walter, que vive na floresta conhecida como Noite Eterna. Incapaz de convencer a Igreja a patrociná-lo, o cavaleiro Leon renuncia a sua espada e ao seus títulos sagradas para achar Sara por conta própria. Ao ingressar na floresta diabólica, Leon encontra Rinaldo, um velho misterioso que consagra ao jovem um chicote encantado com poderes alquímicos.

Depois de penetrar até o coração da floresta e resgatar a amada, Leon descobre que ela foi amaldiçoada pela criatura das trevas. Sem poder reverter o cruel destino, Sara se sacrifica para que sua alma pudesse ser fundida ao chicote especial, criando a legendária arma conhecida como Vampire Killer. Ao ajustar contas com Walter, Leon toma conhecimento de que tudo, desde o seqüestro, fôra orquestrado por Mathias. Por ser um viúvo amargurado, este antigo amigo de Leon planejara em detalhes os eventos, até mesmo o êxito de Leon, para que ao final a alma de Walter fosse absorvida por um artefato seu, a Pedra de Ébano, que estava incompleta. A pedra, de coloração negra, se tornou Vermelho-Sangue após o feito de Leon. Com isso, Mathias ganhou a Vida Eterna, vulga iniciação na carreira de Vampiro! Mathias foge voando, escondendo-se em outros países, sempre assumindo diferentes nomes para ludibriar as pessoas. Era apenas o princípio da trajetória do Senhor dos Vampiros Conde Vlad Tepes Drácula. Leon faz um juramento: o sangue de seu sangue, não importa em que grau de descendência, iria caçá-lo até o fim, até cumprir a missão do clã.

1450 – Castlevania: Lendas

Alguns séculos depois, o principal Belmont vivo é uma mulher, Sonia. Pensando que o clã não mais existia, Drácula evade das sombras para realizar seus intentos de dominação mundial. A grande novidade é que Sonia não está sozinha: aliou-se a um delinqüente veterano chamado Alucard. Apesar de ter vivido o período de muitas vidas humanas, Alucard preservou sua juventude, posto que é um Imortal, e é o filho de Drácula, tendo se rebelado contra o próprio pai! Sonia, ao contrário dos eventuais preconceitos machistas, não tem dificuldades para acabar com o monstro mas, por outro lado, seus poderes são tão elevados e ameaçadores que o povo romeno a teme verdadeiramente. Os Belmont são exilados da Transilvânia. No fim do jogo, Sonia pare um bebê – muito provavelmente Trevor, filho de Alucard. Koji Igarashi, que se tornou responsável pela produção de todos os Castlevania desde Symphony of The Night em meados dos anos 90, removeu este capítulo da storyline oficial.

1476 – Castlevania 3: A Maldição de Drácula

É a vez de Trevor se exercitar um pouco. Um dos seguidores de Drácula o revive prematuramente (e depois é morto e sacrificado em prol da causa maior – que era alimentar o Conde, fragilizado). O Conde sabia que seus dois propósitos principais estavam concatenados: varrer o mundo com sua sombra e destruir o clã Belmont. Trevor conta com a ajuda de três bravos guerreiros: Grant DaNasty, Sypha Belnades e seu suposto pai, Alucard.¹ Nem preciso dizer que Drácula foi condenado a descansar um pouco mais. Trevor também reconquistou o respeito e a confiança da Romênia, voltando a estabelecer aí o lar belmontiano.

¹ Recentemente os esforços do trio – com a exclusão de Grant – ganharam uma versão anime produzida pela Netflix! (nota de 2020)

1479 – Castlevania: Curse of Darkness (A Maldição da Escuridão)

Apesar de ter sido suprimido, o poder do Conde ainda assombrava a terra. Um jovem, Hector, antigo membro das forças draculinas onde desempenhava a função de Mestre da Forja do Mal, traiu seu senhor e escapou dos domínios do castelo. Vivendo como que debaixo de uma nuvem negra desde então, Hector vê seu melhor amigo Isaac acusar sua amada de bruxaria e ela ser queimada na fogueira. Tomado de cólera, Hector inicia sua peregrinação, buscando reparação e também a cura para a praga e a peste que assolam a terra desde a partida de Drácula. Hector acaba se encontrando com o próprio Trevor Belmont. A princípio rivais, os dois unem forças para destruir Isaac e outros remanescentes do mal.

1576 – The Castlevania Adventure (A Aventura de Castlevania)

Cem anos se passam, como manda o script, e a hibernação de Drácula finda. Ele está seguro, mais uma vez, de que seus planos deram certo e de que nenhum Belmont o atrapalhará, mas sai de seu castelo apenas para descobrir que agora há um tal Christopher que mal pode esperar para dar umas chicotadas sádicas no velho Imortal! O vampirão sentiu aquele arrepio típico dos fregueses, e para não perder outra vez na batalha clássica, deu no pé, esperando um melhor momento para atacar…

1591 – Castlevania 2: Belmont’s Revenge (A Vingança dos Belmont)

15 anos depois, Drácula descobre que Christopher Belmont tem um filho, Soleiyu. Dessa vez o herói terá de tomar mais cuidado na infiltração, ou a garganta de seu herdeiro poderá sofrer as conseqüências… Mas os créditos são tão tranqüilos quanto os de outros jogos Castlevania: o filhinho volta para o colo do papai… Algo, porém, está estranho… Essa não!, Soleiyu fôra envenenado! Christopher não podia ser contido em sua fúria ultimada…

1691 – Castlevania

Então um século transcorre outra vez. O que Drácula-Cebolinha planeja? Se era para voltar a dormir recebendo humilhações, que dessa vez não fosse sozinho! A agitação na Transilvânia é facilmente sentida pelo Belmont na ativa, o saudoso Simon, o bisneto de Christopher. Isso significa que duas gerações de vampire killers tiveram a oportunidade de treinar muito bem o iminente herói. Pobrezinho do Drácula…

1698 – Castlevania 2: Simon’s Quest (A Jornada de Simon)

Teria sido assim tão “fácil” (não para quem já experimentou o primeiro Castlevania de Nintendinho, eu lhe garanto!)? Simon pensava que as tormentas eram coisa do passado, mas ele próprio fôra amaldiçoado durante a luta decisiva… Lentamente, o protagonista descobriu, ele iria cair doente e morrer. Um dos sábios da vila o preveniu de que a única forma de quebrar o feitiço era ressuscitando Drácula e queimando-o vivo. Seriam necessárias as partes do corpo do vilão, e o Conde já tinha isso tudo em mente, antes de morrer pela última vez. Os seguidores do vampirão foram ordenados, antes de sua morte, a proteger seus pedaços com a vida, cada um em uma porção da Romênia. Apesar de tal operação adiar sua volta, Conde Vlad sabia que o custo-benefício seria proveitoso! Drácula deduzia que quando suas partes fossem finalmente reunidas, Simon seria apenas restos num túmulo! Porém, nenhum vassalo draculino foi páreo para um benfeitor calejado e seu chicote lendário inseparável… Drácula voltou à vida só para queimar novamente, tsc!

1748 – Castlevania: Harmony of Dissonance (Harmonia da Dissonância)

Uma moça romena, Lydie Erlanger, foi raptada e trazida para um estranho castelo perpetuamente envolto em neblina. Adivinhe o autor do crime, e adivinhem de que castelo ele é dono… Que pena que Lydie tinha um amigo chamado Juste Belmont para fazer justiça! Este, neto de Simon, e o amigo Maxim Kischine, se encarregariam de devolver a existência de Lydie à normalidade. Mas Maxim começa a agir estranho quando os dois estão dentro dos muros do castelo. Poderia ser que seu ciúme doentio agia predestinadamente contra o sangue Belmont? Se um Imortal não pode parar um Belmont, porque um Imortal com a ajuda de um humano hipnotizado o conseguiria? Caixão para a criatura infernal, mais uma vez (se é que tal monstro mereceria tal honra)!

1792 – Dracula X: Rondó de Sangue

Será que menos de meio século de intervalo traria uma repentina vantagem ao vampiro que só sabia apanhar? Dessa vez ele iria investigar a vida do próximo Belmont – que ele sabia que deveria estar à espreita – cuidadosamente antes de praticar qualquer malvadeza! Richter, o rapagão, tinha, veja só, uma namoradinha, Annette Renard! Não contente em forçá-la a se tornar hóspede de seu insólito castelo, Vlad também traz a cunhada de Richter, a menina Maria, mais algumas donzelas do vilarejo-natal do galã chicoteador.

Assim que ele resgata Maria, logo à entrada do castelo, ela promete se tornar uma caçadora de vampiros também. Que azar, Sr. Drac, porque parece que ela leva jeito pra coisa! Ninguém seria páreo para os dois juntos, e parece que dessa vez nenhuma das seqüestradas tinha marcas estranhas no pescoço…

1797 – Castlevania: Sinfonia da Noite

Meros 4 aninhos depois da lição que Richter deu no Condinho (às vezes é melhor partir em definitivo do que ficar manchando a própria imagem mais e mais!), a escuridão mortífera voltou. O castelo, antes desaparecido, reergueu-se sozinho… Ou não tão sozinho… Shaft, um usuário de magia negra, pensando em adquirir o poder máximo, imagina que um atalho para isso seria contar com a ajuda de Drácula (mas que tipo de imbecil confiaria em outros porcos ainda mais astutos?). Para um perito dos espíritos trevosos, ressuscitá-lo não seria problema. O pior era que um tal Richter Belmont teimava em respirar sobre a face redonda da Terra! Se não era possível partir para o confronto aberto, o mago age na penumbra, enfeitiçando o justiceiro, na verdade obrigando-o a mudar de lado!

Mas tamanho desequilíbrio provocado na “Força”, digno da aparição de um Darth Vader, fez Alucard acordar de seu longo sono auto-infligido. “Quem esse Shaft pensa que é para ressuscitar meu maldito pai?”: agora sim o mago comprou uma briga longe demais de sua seara! Alucard conhecerá uma honorável descendente de seu próprio sangue – que, afinal, tudo indica, se misturou com o do (em tese) inimigo clã Belmont –, Maria. Parece que Shaft não pensou em outros além do casca-grossa Richter na hora de produzir feitiçozinhos baratos…

Alucard quebra o encanto que fazia de Richter, o novo senhor do castelo, adentra o misterioso e bizarro Castelo Invertido, muito apreciado pelos fãs da série da Konami, e não sossega até atravessar o gogó de Shaft com suas garras. Ainda acontece uma luta edipiana, só para abrilhantar mais ainda o espetáculo. Não que ele fizesse tanta questão de dar uns tabefes na cara do pai: Alucard só queria mesmo era dormir… Ironicamente, seu pai tinha de dormir mais algum tempo também, a sua revelia…

1830 – Castlevania: Círculo da Lua

Carmilla, outra maga negra obcecada pela volta sempre antes do tempo do Lorde dos Vampiros, coloca a mão na massa. Usando os poderes de um caça-vampiros capturado, Baldwin Morris, ela consegue poderes dignos da tarefa. Os discípulos de Morris, Hugh Baldwin e Nathan Graves, terão de evitar o pior. Como costuma acontecer quando dois aventureiros se arriscam juntos dentro das paredes traiçoeiras do castelo, o mais fraco dentre eles, Hugh, sucumbe à inveja e se insurge contra os próprios propósitos iniciais da expedição. No fim, Nathan sobressai contra os contratempos e contra a insidiosa mágica de Carmilla. Koji Igarashi vetou esses acontecimentos.

18?? – Castlevania: Order of Ecclesia (Ordem de Eclésia)

Um tempo indeterminado depois dos eventos de Sinfonia da Noite (assim como depois de alguns mencionados no Castlevania Radio Drama), a família Belmont parece estar ausente, senão extinta! Com esse indesejado hiato, diferentes organizações se formam. Uma delas, a Ordem de Ecclesia, cujos participantes se engajam contra o mal através de mágicas conhecidas como Glyphs, é uma das mais adiantadas no combate contra tudo que lembre Drácula de longe. Uma série de glyphs especialmente poderosas, no entanto, criada com o fim de conter para sempre o maior dentre os vampiros, batizada de Dominus, precisava ter seus poderes acionados através de um ritual, ou tudo seria em vão. Shanoa, a mulher indicada para a execução do ritual, falha no momento crucial, porque um membro da Ordem trai os companheiros, revelando-se como um vampiro infiltrado. Albus rouba as glyphs. Shanoa procura seu mentor para ser aconselhada, porém sucumbe a alguma maldição antes de achar Barlowe. Sua perda de memória e de ligações afetivas com as coisas e pessoas parece ter relação com o ritual cortado pela metade. Ainda assim, ela continua atrás da verdade sobre o caso…

Albus havia sido um grande companheiro de Shanoa antes da reviravolta. Algo como a fraternidade ou um sentimento correlato ligava os dois. Porém, o motivo pelo qual Albus tirou a Dominus das mãos da pessoa que era a quem ele mais queria bem no mundo pode ser menos gratuito do que parece (meramente ressuscitar Drácula ele próprio): Barlowe seria um mago corrompido, e estaria prestes a utilizar as próprias glyphs para assassinar Shanoa, a ex-discípula. Ao tomar essa decisão heróica, no entanto, Albus pagou com o preço da própria sanidade: qualquer pessoa sem extraordinários poderes espirituais sofre terríveis conseqüências ao entrar em contato com a Dominus. Antes de ficar louco, Albus tinha coletado pequenas amostras de sangue das pessoas de Wygol, vilarejo nas cercanias, porque haveria algo dos Belmont diluído naqueles habitantes, considerados herdeiros remotos do clã. Através de um ritual com tal sangue acumulado, Albus esperava ganhar imunidade à influência da poderosa Dominus, o que se provou um equívoco…

Dependendo da performance do jogador e de quantos e quais dos moradores da vila ele salvou enquanto jogava, o final é diferente. No melhor dentre eles, Albus morre mas funde sua essência à série de glyphs, que Shanoa absorve. A Dominus tinha sido dividida em três e Albus perde a vida após o confronto com Shanoa, quem lhe retira o último pedaço. Com a volta da alma purificada de Albus ao artefato, Shanoa recupera a memória. Ela entende que a Dominus não serviria para combater ou proteger o mundo da mágica de Drácula, mas justamente reforçá-la, porque seria um componente das próprias forças do mal… Aliás, a Dominus seria a alma de Drácula em si. A extirpação da memória de Shanoa teria sido a forma encontrada por Barlowe para controlar a Dominus. É hora, pois, de mestre e discípula se reverem, em um encontro derradeiro e nada amistoso. Barlowe, constatando que não venceria, cede a própria vida para o despertar de Drácula. Ainda longe de acabar, a aventura só começa quando a Ordem está desfeita e Shanoa deve, sozinha, penetrar na fortaleza refeita do demônio…

De posse da perigosa Dominus, uma das alternativas, ela figura, é auto-destruir-se, para derrubar o antagonista. Mas Albus, em forma de espírito, intervém, relatando que qualquer outra vida pode ser sacrificada no lugar da de Shanoa. Ele mesmo oferece sua alma, que se funde também às glyphs corrompidas. Agora os afetos de Shanoa estão recuperados, e a partida de Albus lhe devolve o sorriso ao rosto. Tais peripécias, todavia, não teriam sido registradas por testemunhos críveis, e todos os personagens dessa trama caíram no mais obscuro esquecimento para as gerações futuras de Belmonts e romenos. Quem sabe apenas Drácula detenha o conhecimento do que se passou…

1844 – Castlevania: Legacy of Darkness (Legado da Escuridão)

Através da necromancia de fanáticos, Drácula retorna ao mundo dos vivos, quem sabe estalando seu pescoço umas 4 ou 5 vezes para certificar-se de que “tudo estava em seu devido lugar”. É, e não estava, não! Seu corpo permanece incompleto… Ele precisa da energia vital de crianças dos vilarejos circunvizinhos para voltar à antiga forma, mais poderosa. O homem-besta (nem humano nem Belmont) Cornell interromperá tal atrocidade, por bem ou por mal. Ada, sua irmã adotiva, é uma das crianças infelizes que estão dentro do castelo.

No final, Ada volta para sua casa sã e salva, mas o Conde conseguiu fugir. Um dos personagens secretos, após finalizar a aventura, é Henry, humano caçador, na verdade uma das crianças resgatadas por Cornell em desventuras bastante anteriores a esta, e que resolve aparecer para dar sua contribuição uma vez que já é um adulto e sabe manejar armas de fogo. Como já explicado na introdução do artigo, Koji Igarashi, o homem-forte da Konami, baniu este episódio (mais o seguinte) da linha original.

1852 – Castlevania 64

Oito anos depois (mas um punhado de meses antes, na cronologia dos jogadores de N64), outro membro da árvore genealógica que não tem dó de Imortais ancestrais, Reinhart Schneider (para quem não entendeu, com um quê de Belmont), acompanhado de uma garota descendente de Sypha chamada Carrie Fernandez, investiga o sumiço de crianças em um certo vilarejo. Todas as pistas apontam para Castlevania, na flagrante continuação dos esforços de Cornell…

1897 – O Livro (Marco Zero)

Como documentado por Stoker, e reaproveitado pela Konami, aqui Drácula teria ressurgido, por meios que ignoramos, mas o certo é que decidira receber Jonathan Harker em sua magnífica e insular morada. Após muitos desdobramentos chocantes na estória, o próprio fugitivo e traumatizado Jonathan alcança o caixão de Drácula, que volta de uma emigração malsucedida para o Reino Unido, bem de frente para seu castelo, quase ao anoitecer. Ele e seu parceiro Quincey Morris, além de outros personagens secundários como Van Helsing, aproveitam os últimos segundos que têm para mutilar o coração do infeliz. Quincey não sobrevive aos ferimentos da luta contra os ciganos que inicialmente protegiam a encomenda (o caixão).

Apesar do livro não mencioná-lo, é especulado que o filho de Quincey, John Morris, fôra testemunha do desfecho sangrento, ocultando-se atrás do cenário natural. Também não é citado por Stoker o vínculo do sangue dos Morris com a linhagem Belmont. Mas quanto à presença do filho John, parece um boato bem inverossímil: não haveria como um bebê de 2 anos (já que o filho de Quincey seria de 1895!) ter seguido seu pai por água e terra até os confins da Europa conscientemente. Quincey, depois de tudo, seria viúvo, e a própria mãe de John, portanto, não poderia tê-lo levado até lá por sua conta. Sabemos disso porque, em um ponto anterior da novela, Bram Stoker descreve como Quincey cortejou Lucy, a amiga do casal Harker, sem obter sucesso.

1917(?) – Castlevania Bloodlines (Descendência)

Como se vê, 20 anos após ser apunhalado no coração sem ter podido reagir, Drácula terá uma ajuda familiar para voltar à vida: depois da acidental ressurreição de Elizabeth Bartley (Bathory?) por uma bruxa incauta, o século XX não poderia mais ser o mesmo…

Elizabeth, em sua primeira vida, tinha certeza de que era uma vampira, embora nunca tivesse se transformado de fato. Ela era uma humana comum com grande conhecimento da cultura vampírica, isso porque Conde Drácula era seu tio, e ela decidiu que devia trazê-lo de volta. Seu propósito não será tão simples como foi para os magos em vezes passadas: ela trata de iniciar a Primeira Guerra Mundial (por isso a data de 1917 me parece equivocada, então pus a interrogação; o correto seria 14), única forma de coletar a quantidade de sangue necessária! John Morris e seu fiel escudeiro Eric Lecarde querem e vão interferir…

1944 – Castlevania: Portrait of Ruin (Retrato da Ruína)

A Segunda Guerra se encaminha para seu término, com os Aliados se sobrepujando ao Eixo. O Conde Brauner, imitando o exemplo da sobrinha de Drácula, utilizou o sangue e a alma dos finados em conflito para alimentar o castelo e seus poderes intermináveis, místicos e asininos. Jonathan Morris (homenagem a Harker?), filho de John, é o encarregado de melar o trato bestial. Charlotte, uma amiga, o acompanha. No castelo, as filhas do Conde Drácula também aguardam, ansiosas…

No roteiro de “Retrato da Ruína” são incluídas revelações bombásticas: John Morris pereceu depois dos eventos do último game, porque apesar de ter sangue Belmont diluído em si, a família Morris não pode suportar manipular o Vampire Killer (o chicote sagrado). Apenas derrotando a alma de Richter Belmont o clã parcialmente herdeiro dos poderes caça-vampiros poderá normalizar a situação e domar de fato o tesouro legado para o Bem da raça humana.

1999 – The Demon Castle Wars (As Guerras do Castelo Demoníaco)

Conforme Nostradamus previra, Drácula aparece para aterrorizar a Terra em plena virada do milênio. Julius Belmont, com um grupo de compatriotas, destrói a ameaça inumana para todo o sempre (assim se supõe). Não há ainda um game que narre a saga de Julius & cia. nas Guerras do Castelo do Demônio, embora essa parte da estória tenha sido contada pela Konami! Quem sabe em algum novo Castlevania…

2035 – Castlevania: Aria of Sorrow (Ária da Tristeza)

36 anos depois da derrota final de Drácula (que nunca é “final”…), o estudante japonês de ensino médio Soma Cruz e sua amiga Mina Hakuba entram em um santuário e são transportados para Castlevania. Um estranho líder de cultos satânicos, Graham Jones, havia virado o anfitrião do lugar, e reivindicava os poderes do Conde para si próprio. A alma de Drácula poderia estar rondando sem descanso essa realidade futurista em busca de uma forma de reencarnar?

Como não poderia descobrir todos os detalhes sozinho, ou baseado na também limitada sabedoria vampírica de Mina, Soma contará com o suporte de Genya Arikado (possivelmente Alucard em uma nova identidade) e Yoko Belnades. Soma descobrirá, durante o jogo, que a alma de Drácula é ele mesmo, e terá de lutar contra o caos muito mais psíquica do que materialmente se quiser salvar o mundo da escuridão eterna!

2036 – Castlevania: Dawn of Sorrow (Madrugada da Tristeza)

Faz só um ano que Soma escapou de Castlevania. A vida do garoto segue em normalidade, até um outro membro do culto pró-Drácula, Celia, desafiá-lo mortalmente. Assim como Shaft e Carmilla em tempos antanhos, ela pretende ressuscitar seu Mestre, mas enquanto Soma prevalecer sobre sua alma isso seria impossível. Não se sabe como (talvez Julius seja um coroa extraordinário!), mas o último Belmont ressurge para auxiliar o rapaz, ao lado de Genya e da última descendente Belnades. A batalha será na fortaleza de Celia, que tem, ainda, dois discípulos que se candidatam, oferecendo seus organismos, para sediar a volta do Sinistro. Mina é seqüestrada, o que tenta o coração de Soma, mas ele supera as dificuldades e não deixa seu lado sombrio prevalecer.

[NOTA] Vários nomes de lugares e personagens em Castlevania foram baseados nas lendas do folclore. A cidade de Veros vem de Verossa, e Warakiya provém de Walachia, duas das vilas que tinham relação com o reino de Vlad Tepes. Grant DaNasty tem esse nome por causa da dinastia Dinesti, rival do clã Tepes.

Rafael de Araújo Aguiar é poeta

Agradecimentos a castlevaniadungeon.net

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Teorias Sociológicas Contemporâneas – “Reader’s Digest”

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Teorias Sociológicas Contemporâneas 1 (135461)

Semestre: 2/2009 [Atualização em 19/12/2019 para publicação em Os Segredos da Mosca]

Professor: Edson Farias

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Avaliação Final

[Comentário atual: Este trabalho é da época do meu curso de Licenciatura; eu estava me formando para dar aulas na escola; notar-se-á um grande enfoque na ‘arte de ser professor’, que eu efetivamente desenvolveria na prática dali a 2 anos, embora por um curto período de tempo, havendo eu decidido, em crise comigo mesmo, reformular meus projetos de vida desde então.]

Questão 01:

Talcott Parsons está contido num contexto norte-americano do fazer-sociológico em que os teóricos e mais abstracionistas sofriam grave repúdio, pois em voga estavam os postulados empíricos e a publicação de tratados com “fatos”, números, dentre outros dados e hermetismos, de um teor “menos especulativo”. Porém essa facilidade com que tais autores se despiam de discussões epistemológicas e da difícil formulação de um sistema teórico e exibiam certo pragmatismo metodológico é denunciada por Parsons como sendo absolutamente ilusória, já que a pesquisa empírica será sempre calcada em pressupostos, em teoria. Não é omiti-la que resolve a questão da verdade e da crítica ao subjetivismo dos sistemáticos. Eximir-se era uma saída um tanto pior. A nota de rodapé 9 na introdução do clássico A Estrutura da Ação Social demonstra o combate encetado por Parsons em meio à tradição americana hegemônica durante as primeiras décadas do século XX: “O mais perigoso e traiçoeiro de todos os teorizantes é aquele que proclama que deixa aos fatos e às cifras que falem por si próprios” (p. 44). Para dar conta dessa grande missão denunciativa, Parsons erige um modelo de síntese que reivindica a superação de dicotomias falhas das ciências sociais, baseado na contribuição de autores pregressos tais quais Durkheim, Pareto, Marshall e Weber (note-se a ausência de Marx do círculo de principais autores na sociologia americana, embora Parsons dedique algumas páginas a contrapor a solução marxiana do problema do Estado frente à de Thomas Hobbes), porém diferindo-se deles em algum grau. O fulcro problemático é: o que deve ser priorizado, a estrutura ou a ação? O livre-arbítrio ou a necessidade? Qual deles ganha a “primazia”, como gosta de dizer Parsons? Obviamente, a questão da racionalidade e do inconsciente, afora outras questões subsidiárias, aí se inscrevem. Parsons também se debaterá detidamente acerca do problema hobbesiano da ordem, o que justificaria a coesão social, de acordo consigo.

Como é de se deduzir pelo título da sua primeira grande obra, Parsons propõe um modelo que busca evitar coisificações como a imobilidade do pensamento estrutural (a unilateralidade causal dos mecanicistas) – o que praticamente anula o peso das escolhas individuais – mas que, em contrapartida, também não caia na cilada dos liberais econômicos e seu axioma auto-contraditório da liberdade irrestrita de escolha (eles promovem uma guerra suicida contra o Estado; necessitam dele mas não podem admiti-lo), que descamba para um anarquismo analítico e uma entropia social, haja vista os diferentes interesses dos atores envolvidos. Ambos os extremos são insuficientes. A ação obedece aos limites de uma tradição e a tradição é criada/recriada pelo conjunto das ações. Essa reciprocidade conceitual está presente em virtualmente qualquer sociólogo ainda hoje estudado, por mais que a ênfase recaia aparentemente mais em um lado do que no outro (a ponto de chamarem Weber de um “teórico da ação social”, ou acusarem Durkheim de superdimensionar a ascendência das instituições sobre os indivíduos na primeira fase de sua sociologia). Nesse quadro, o que torna Parsons peculiar?

A situação é definida pelo autor como o leque de circunstâncias e meios contingentes disponíveis para a ação do ator, que não tem controle sobre os elementos da cena, mas que pode usá-los a seu modo (como meios, visando a um fim específico), em combinações, desde que na margem do possível e do viável para o momento. Como o ator define suas escolhas? Através da “orientação normativa”, um conhecimento prévio, cumulativo, que permite o desenrolar concreto da ação. Isso por si só não garante que a ação será concretizada (que terá seu fim inicialmente proposto atingido), porque o ator pode não ter feito a eleição da norma mais apropriada, dir-se-ia que não está “devidamente encaixado no contexto” (agiu de forma racional, todavia há várias racionalidades e, para determinada circunstância, uma outra era a que funcionava melhor). Parsons excluirá de sua análise o que se passa na cabeça do indivíduo durante a ação, importando apenas o externo, o tangível socialmente. Inclusive ele se refere a um novo tipo de analista social mais acurado que denomina de “psicólogos da personalidade”, estudiosos da psicologia que começam a superar a distinção sujeito/sociedade, aproximando a relação entre indivíduos e coletividades – como um todo – e objeto. Em suma, que exigem a prioridade da relação, não da coisa. O problema da motivação para a ação não é contemplado o suficiente na teoria parsoniana. Em Parsons, isso não transforma os indivíduos em autômatos, uma vez que é apenas uma questão de método: não é necessário estudar as intenções, mas os efeitos. A ação individual existe. A vontade consciente é que é ilusão (cardeal no ser humano, devendo permanecer assim). Ou seja, interessa-lhe o particular descrito objetivamente.

Erving Goffman opta pelo relato de uma multiplicidade de casos comezinhos com enfoque nos desajustados (ou nos aspectos embaraçosos de qualquer vida humana). A agradável leitura desses casos faz com que o autor se torne ele mesmo vítima de um certo “preconceito sociológico”, conforme Giddens, posto que se despe um pouco da excessiva gravidade dos tratados acadêmicos, nutrindo predileção pelo ensaio estético. Talvez por isso seja mais difícil enxergar um sistema goffmaniano, embora possamos juntar as peças, reconhecer influências e compará-lo a Parsons.

É importante perceber o quanto este autor se aproxima do indivíduo e seus dramas psicológicos, inevitavelmente atrelados ao contexto social no qual se inscrevem (quando um sociólogo é “psicólogo demais”, isso também é motivo de desprezo academicista, pois ele recai na pecha de “subjetivista”). O conceito de “fachada” é essencial: longe de atuar de modo unilateral ou constante, simétrico com todos aqueles com quem interage, o indivíduo lança mão, consciente ou inconscientemente, de estratégias diversificadas de modo que represente vários papéis no mesmo dia. “Fachada” porque esse não é o “verdadeiro-eu”, porém a essência não se encontra em lugar ou tempo algum, sendo a condição humana um devir de papéis tão autênticos quanto fantasiosos, de acordo com o prisma assumido. Ora, o ator não pode se despir de todo e qualquer papel social, então ele “se agarra” ao que vivencia no presente como seu verdadeiro-eu; que em seguida é suplantado por um novo papel baseado em sua próxima necessidade imediata. Não subjaz nada : a “mentira social” (para os outros e para si, que “não existem”, pois ambos são constituídos pelas relações entre papéis, não mantendo qualquer definição fixa ou rígida) é a regra do ser. A etnometodologia, paradigma em que está situado Goffman, reconhece nessa transitoriedade o empírico do ser social, se apoiando decisivamente na própria linguagem e nos estudos que se desenvolveram bastante a partir de Saussure para afirmar a “efemeridade dos enunciados” (nem por isso menos enunciativos). Claro que é a recorrência do fenômeno, não-idêntico, em todos os aspectos, a qualquer outro, porém nitidamente estruturado da mesma maneira na realidade (palavra imensamente desgastada pelo seu uso antagônico nas mais diferentes escolas), ciclotímica em seus traços genéricos, que permite ao observador sociológico descrever tais singularidades como regularidades científicas: a Vorstellung, a Warheit, bem como a Sprache, a encenação/apresentação, a verdade, a fala, não são menos “reais” porque assim que o período, a sentença ou a situação são “cortados” (a vida é sempre uma soma de episódios, de interrupções, pois o que está consciente não se converte em inconsciente conscientemente – tem-se como exemplo a consciência do eu de que respira ou sente uma dor em determinado órgão, “desligada” ou “interrompida” sem aviso prévio ou de forma que se possa calculá-la, exatamente como quando um sujeito se põe a dormir) e seguidos por outros passam a um “plano de fundo”, sendo necessária sua re-evocação para sua re-validação. A linguagem são convenções – contudo, se estas nunca fossem levadas a sério (como um jogo, que é ficção menos para quem está concentrado na personagem que joga), não poderia haver sequer a noção de convenção que aqui nos auxilia. O faz-de-conta não poderia existir se não fosse, ao ser exibido (de alguém, para alguém, em algum momento e em dado território), real; dialeticamente, o real não poderia subsistir não fosse com essas montagens e sobreposições de “como ses”

Podemos “pescar” os exemplos mais valiosos suscitados por Goffman. O usuário incipiente da maconha “se trai” enquanto não percebe, por experiência e perspectivismo, que a “diferença interna” que sente ao fazer uso da substância malvista socialmente é bem mais dilatada que aquela que pode ser aferida por observadores externos, em abstinência da droga, ao dialogarem com e estudarem as reações de alguém que está sob efeito dela (e que não o admitiu anteriormente na cena; ou seja, num contexto em que o observador ignora se a pessoa realmente utilizou o entorpecente). Tal situação fenomenologicamente paradoxal e ao mesmo tempo objetivamente lógica ilustra a superação do que os positivistas chamariam de “solipsismo metodológico” em Goffman, que, como Parsons, não se situou num extremo nem noutro da análise. Na situação da sala de aula, temos uma boa lista de “sabedoria acumulada de professores e alunos” e algumas armadilhas em que os dois papéis possivelmente incorrem. Uma delas é a preferência dos professores por alunos intermediários, ou seja, nem iniciantes nem muito veteranos, partindo da convicção de que terão mais controle sobre seu papel de superioridade em classe. Outro é o código de ética compartilhado de que colegas de profissão não devem assistir uns às aulas dos outros. Há ainda o comportamento de “durão”, do profissional que deve começar se impondo e só em seguida “relaxar” ou “afrouxar” na exposição do conteúdo, porque o comportamento contrário incitaria a desordem por parte dos alunos; e, por fim, Goffman pega de empréstimo a decodificação sartreana do aluno que quer ser a mulher de César, ou seja, aparentar de todas as maneiras que está prestando atenção – ao cabo, ele terá todo seu sistema nervoso sugado pelo eu do Outro, ou seja, o próprio professor, não lhe restando muito “estoque” para interpretar de acordo com a própria bagagem o que é que ele está falando. Este último e célebre caso é aliás um tópico de abertura do dilema da reflexividade e prática (ou se pensa ou se age), que será bastante deslindado na questão 2. Goffman chama toda essa preocupação minuciosa com o jeito de se portar frente à “platéia” uma “regulação” ou “manutenção rigorosa” da fachada. Não que não conseguir manter a fachada implique na ausência de fachada: automaticamente se recai em outra fachada. Um professor que “não age como um professor” agirá como alguma outra coisa (faz papel de vítima, caluniado, incompreendido, furioso, de que não percebe o que se passa e mantém o mesmo discurso, de “fujão”, se decide se ausentar, ou então, após um solavanco ou ato falho, depois de perder o fio da meada, ele volta à tona, retoma o controle do papel original, ou ao chegar em casa reelabora novas estratégias, e ainda que não consiga jamais o controle da turma ele desempenha uma variedade de fachadas no transcurso do seu expediente). Outrossim, Goffman não isenta os categorizados como loucos dessa assunção de fachadas (Parsons diria que este indivíduo reside em um erro permanente da norma, pois cada ato-unidade seu não consegue estabelecer um entendimento do chamado “consensual”).

Anselm Strauss é outro colecionador de anedotas interessantes da mesma estirpe etnometodológica. Assim como Goffman, dedica um bom naco de seu trabalho às reações fisiológicas, musculares, por exemplo, durante as mais variadas performances de um ator (imagine-se o número de caras e bocas e trejeitos pelos quais o interlocutor “se denuncia” numa simples interação e a extensão que as interpretações sobre eles podem tomar, como fica bem claro neste trecho, que aliás é de Goffman mas serve também para aquele cientista social que inaugura o parágrafo: “Quanto mais o indivíduo se interessa pela realidade inacessível à percepção, tanto mais tem de concentrar a atenção nas aparências”). É claro que as semelhanças serão diversas e haverá um ou outro ponto de vista divergente, sobre os quais logo entraremos em detalhes, antecipando-lhes que a identidade pessoal/social do sujeito se liga, neste autor, mais a seu conceito de máscara que ao de fachada referido anteriormente; este, como é óbvio, não deixará de lembrar o primeiro modelo e carregará, no entanto, a marca de um novo pensador.

Ao invés de enfatizar o grupo de estigmatizados e “informados” (indivíduos que se tornavam fronteiriços por conta do contato habitual com estigmas de terceiros), a obra de Strauss a que tivemos acesso, Espelhos e Máscaras: A Busca da Identidade, tem como epicentro a constituição da própria personalidade mais genérica, embora não se negue nenhum postulado-mestre acerca do vir-a-ser do Homem e suas virtualmente ilimitadas fachadas, como que em busca de uma cobertura predominante ou sintética (compósita) das outras. Um exemplo é na elaboração de como alguém se torna bobo ou herói. Um indivíduo parece carregar essa característica consigo muito mais marcadamente do que em relação às micro-estratégias das quais Goffman faz um inventário invejável (e Strauss é-lhe similar até nesse tipo de exemplo, como na página 79 de Espelhos e Máscaras, em que descreve a elaboração de fantasias por parte do professor estreante que ainda não conhece com segurança as reações dos alunos e ensaia sozinho em casa as posições, as falas, os efeitos ao público…).

Os espelhos do título se referem à construção da personalidade e ao processo clássico de socialização do indivíduo, em que ele incorpora e exporta julgamentos dos e aos outros com base em projeções de seus corpos nele mesmo e vice-versa. Somos capazes de nos reconhecermos ali, em terceira pessoa, assim como nos reconhecemos ao mirarmo-nos em um vidro perfeitamente polido (e somos essas pessoas, na medida em que há uma consideração objetiva aí, a condição da “substituibilidade”, conforme diria um Bourdieu: se “tivéssemos nascido” no lugar dessa pessoa seríamos ela própria; nossa personalidade, nossa história, se define pelas situações vivenciadas no passado, não há nada “descolável” e essencial do nosso eu, algo realmente “particular” na acepção mais profunda, que não tenha uma explicação social; o comportamento mais bizarro pode ser demonstrado por essa teia inevitável de relações). Além disso, destaca-se a auto-avaliação moral que um indivíduo faz de si e como é complexa mas de ocorrência obrigatória a elaboração de uma continuidade existencial no meio de eternos momentos entrecortados. Strauss, ainda, se contrapõe a Parsons na questão da motivação, uma vez que, em que pese a dificuldade de aferirmos as nossas intenções por conta da lenta e dificultosa decifração do inconsciente, este não é um problema que deveria ser ignorado por uma teoria social. A contínua e multifacetada exegese, por sinal, impede que tiremos motivos concludentes de uma determinada situação.

Questão 02:

Pierre Bourdieu tenta empreender uma resposta, senão definitiva, bastante concisa para os problemas estrutura-ação, diacronia-sincronia e todas as suas implicações que já tanto discutimos e que desde os primeiros sociólogos estão no centro da arena, ao lado da questão da “cumulatividade em Ciências Sociais”. Desde Parsons já o víamos, e o inconsciente, a memória, continua desempenhando papel decisivo nas propostas de síntese dos autores mais recentes. Iniciemos com a Sociologia da Sociologia de Bourdieu:

Se se pensa por que ainda hoje se diz que a Sociologia é tão nova e precoce, e que por isso não se deposita nela confiança de mesmo grau que em uma “ciência dura”, e tomando por base o enorme receio disseminado de que “é quase impraticável uma modalidade de conhecimento da própria sociedade e do homem”, vê-se que, contrariamente ao que Parsons relata na introdução de um de seus livros, Comte, Spencer e outros precursores ainda não estão de fora das discussões mais relevantes nesta virada de século, ainda “não foram superados”, pois no fundo essa era para eles a preocupação-base. Pierre Bourdieu contra-ataca esse tipo de suspeita sobre o “fazer ciências humanas”: o próprio abismo entre a Matemática e a Sociologia perde legitimidade, se olharmos de perto. As Ciências capazes da Verdade e aquelas incapazes (ou, melhorando o termo, “confusas demais”, porque metalingüísticas e auto-referentes demais, e que permitem muitos caminhos, o que tantas vezes faz com que alguns cientistas exatos se dêem conta de que seus colegas das Humanidades sejam também cientistas em detrimento de “meros literatos”!) ganham contornos de uma coisa só. Se a própria observação etnográfica consiste em utilizar métodos sinuosos (incapazes de estabelecer uma totalidade definitiva, “confusos”, porque contingentes e insuficientes) e percebe os “seguros de si” (porque os ágrafos não possuem uma disciplina antropológica, em tese!) como outro grupo onde fervilham problemas existenciais, ou a Ciência toda só tem a perder ou, inversamente, há uma consolidação do método lógico e um nivelamento de todos os seus segmentos, dos que estudam a previsível “natureza” e dos que estudam a imprevisível “cultura”. É muito estranho que tão poucos autores tenham pensado em tratar a cultura como algo mais natural e a natureza como reino de onde provém o cultural, ou seja, que escassos pensadores tenham desmistificado a oposição dogmática entre natureza e cultura, dois universos tão correlatos, talvez um só universo, claro, que é profundamente cindido pela convenção da Linguagem, que opta – necessariamente – por dicotomias quase insuperáveis. Não se mostra um filme quando a intenção é mostrar como ele foi feito. O filme é o hiper-real e o enganador. O que está tácito e subjacente, encoberto por manipulação digital e outros recursos, é o que deveria interessar, assim como o que de fato os cientistas fazem com pedaços mortos de animais e toneladas de instrumentos caríssimos deve ser diferente do que consta nos artigos finais de seus trabalhos. O próprio antropólogo, seduzido fosse, demonstraria inaptidão para o trabalho. É sempre mais difícil, compreende-se, tratar da própria lógica em que se está inserido, utilizando da Ciência para desnudar a Ciência – e, portanto, a si mesmo. E pensar que o percurso ideal é, apesar de científico, baseado no olhar leigo sobre o entorno, com um nível de cuidado para o qual o leigo não está preparado! Bourdieu, enquanto fala dos cabilas, convida o sociólogo a se situar no campo e reconhecer que interfere em seu objeto de estudo, praticando uma Sociologia da Sociologia, ou seja, o julgamento, embutido no trabalho, do autor de sua própria Sociologia, já que ninguém melhor que ele para saber das próprias subjetividades e perspectivas preferenciais que construíram o trabalho. Isso faz parte também de um projeto de uma Sociologia do Poder. Toda essa noção de “humildade profissional” é necessária como preâmbulo do que se vai dizer acerca da reflexividade prática.

Imagina-se, apesar disso não ser dito no livro Esboço de uma Teoria da Prática nesses termos, que uma “teoria da teoria”, vulgo idealismo, seria aquilo de que Marx tanto fugiu ao propor o materialismo histórico e a evolução paulatina das idéias, ao contrário dos pós-hegelianos e seus sistemas “fáceis” que auto-interpretavam o universo a sua maneira. E é com um aforismo de Karl Marx que Bourdieu abre seu livro. Qual a contraposição igualmente estéril? Uma prática da prática, embora eu também não encontre esse termo ipsis litteris, a vida oca de uma sucessão de imagens sem uma retroalimentação. Quando Bourdieu tece sua “teoria da prática” e fala de uma “experiência primeira da prática”, ele retoma essa discussão da “teoria-prática e seu andar juntos”, e não à toa produz sua sociologia com “neologismos arcaicos”, isto é, expressões do latim já consagradas pelo passado mas que carregam agora significações inéditas (como o próprio Marx iria querer para sua praxis).

O impasse teórico advém também da sensação de que, por mais situações que se possa viver, “tudo é o mesmo”. O auge do estruturalismo deve ter causado essa forte impressão de “congelamento da realidade”. E no entanto, ao mesmo tempo que a academia chegava ao beco sem-saída metodológico, como é possível que o mundo vivesse sua maior promessa de “é possível fazer diferente, porque todos temos escolhas e somos o que escolhemos” (o utilitarismo econômico do pós-guerra talvez como ápice disso)? Em prol da vida “paralisada” no tempo do pós-grandes narrativas, a proposta hegemônica da ciência era sem dúvida “encerrar com a Episteme”, fechar cada vez mais os caminhos, isso porque enxergava-se nisso o único modus operandi. O Ocidente queria apenas o pragmatismo do “como”, não mais os “porquês” que tanto vieram se arrastando (a “amnésia da gênese” de Anthony Giddens). Esta é a vitória tecnicista contra o ideal mais antigo da ágora dos sábios. Parece que ou se age ou se pensa, e já se havia pensado demais… Mas então não se começou a agir demais, com o mesmo tipo de decorrência nefasta?

Os dois processos se desencadeiam simultaneamente – talvez isso seja tão mais discernível no espaço paradoxal sufocante e promissor da Alemanha do século XIX cujas armadilhas Marx desbaratou na Ideologia Alemã. Uma atrofia da variedade individual concomitante a uma hipertrofia do Estado – o desenvolvimento tecnológico tem disso: uma vez realizado o que antes era projetável e contingente, torna-se “o necessário”, o único que podia suceder-se de acordo com as forças produtivas, é um destino manifesto prosseguir na unidirecionalidade, o projeto já demarcado. Porém, em contradição com a supressão das alternativas de desenvolvimento, o conceito de “livre-arbítrio” ganha cada vez mais respaldo dentro dessas sociedades. A Alemanha só podia agir de um modo, adotar uma estratégia, para suplantar a superioridade industrial da Inglaterra. Ao mesmo tempo que o alemão teorizava o futuro e fantasiava sua íntegra realização tal e qual (refletia demais), a “cópia do modelo de sucesso” que implementou em relação a seus vizinhos França e Reino Unido era exatamente essa noção bourdieusiana de uma nociva prática pura. Para resumir tudo: quando se incorre num tipo de erro se comete automaticamente o outro, neste binômio fazer-pensar, bem como hipertrofia e atrofia muscular são igualmente problemáticos num homem.

Outros exemplos de ênfase excessiva em uma coisa só: a quantomania, ou growthmania no âmbito estatal, que só reconhece o poder da verdade nos números. O engodo do “empirismo estatístico”, achincalhado por Bourdieu, Elias e Giddens. E há, por exemplo, uma semiótica absolutamente niilista e iconoclasta que descasca todas as pretensões e enunciados, anula todos os valores e é incapaz da reconstrução em novos moldes, pois a lógica sobre que é montada não o permite (talvez um Guy Debord no seu desnorteante Sociedade do Espetáculo). Os dois casos são tanto “nenhuma razão” quanto “limites do emprego da razão”. A diacronia é fundamental aqui: como com um doente que esquece que suas angústias são produto de um estado desestabilizador temporário, o tempo dará uma chacoalhada nos pontos de vista.

Na página 148, Bourdieu expõe as insuficiências etnometodológicas (um “programa tapa-buraco” para responder ao “objetivismo”). O fazer-ciência necessita de uma resposta/um solo mais imediata(o). Mas um solo relacional, evidentemente (o que faz alguns confundirem praxis e fenomenologia num primeiro momento – não obstante, os fenomenólogos seriam, segundo Bourdieu, ainda subjetivistas, pois falharam na síntese). Como não poderia deixar de ser, o autor francês não deixa por menos em relação aos pós-estruturalistas, apontados como inferiores ao próprio Lévi-Strauss (p. 154).

Quanto ao habitus, quando ele relaciona os conceitos de padrão e disposição à biografia de um indivíduo, a fim de explicitá-lo melhor, seria aquilo que se torna visivelmente recorrente ainda que se vá tomar a vida como um rio cujas – moléculas das (em seu arranjo) – águas não se repetem; ao mesmo tempo, a perene produção do novo a partir do velho, da reprodução, a reinterpretação de significados por parte do sujeito, que os faz se readaptarem após solavancos e obstaculizações (pedras ou declives nesse rio), que independem dele, é certo, porque “assim funciona o homem”, mas que são efetivamente de autoria dele, de modo que o adulto “tenha a própria história”, que seja “cúmplice” dela não em menor grau que a criança e o complexo de Édipo e a formação primordial do caráter (como em Piaget ou no freudismo ortodoxo, conforme denuncia Giddens), em que pese ser esta biografia repleta de sentidos (alguns mais fixos e duradouros), doutra perspectiva, nada mais que um amontoado de acasos.

Giddens possui uma sadia e notável falta de escrúpulos quanto à crítica a colegas e a um discurso despido de arrogância, quase que informal, a respeito da situação da sociologia na sociedade pós-industrial. Sem meias-palavras, por exemplo, repudia aqueles que, em geral, ainda não entenderem as várias facetas de Weber, e assinala “meu Weber”, que seria a antítese do “Weber habermasiano”. Bourdieu faz questão de lembrar, idem, o quanto Marx e Weber foram postos como rivais intelectuais sem muita consideração pelo real conteúdo de suas obras. Voltando a Giddens, ele confirma o veredicto de que “a tecnologia não venceu o homem” em um de seus ensaios de Em Defesa da Sociologia, como muitos estiveram inclinados a pensar. Não é a técnica que está na dianteira das transformações, mas o gênio humano, por mais que correntemente este se veja como técnica aplicada (a questão do estreitamento dos horizontes, acima). Empreende uma análise mais psicológica que a de Bourdieu, no trato, por exemplo, da compulsão moderna. Sua principal contribuição está totalmente de acordo com uma teoria da prática, no entanto: a sociogênese, equivalente talvez da arqueologia do saber foucaultiana – enfatizar a história das estruturas ao invés de só a estrutura da História, ao que talvez o termo “sociologia” vinha remetendo excessivamente. Critica, a dado momento, a superestrutura e ideologia marxistas, ou talvez seu emprego por parte dos sucessores, que tenderam a polarizar suas conclusões sobre uma variável apenas, a fim de explicar todos os liames sociais.

Nesse aspecto psicológico, Norbert Elias é bem próximo de Giddens. Seu livro O Processo Cilizador (ou Civilizatório) passou décadas em branco entre os acadêmicos até ser levado em conta. Trata de forma singular do problema do inconsciente. Sua proposta é transcender as dicotomias clássicas e estilizantes. Há um enfoque da obra supracitada na explicação da dualidade bárbaro/selvagem-civilização (recalcamento e planejamento a longo prazo – o que não necessariamente corresponde a vantagem, tão-só dum ângulo moral, sendo em realidade uma espada de dois gumes –, mudança gradual e cientificamente justificável do ethos dos grupos humanos). Manifesta, numa linha ou noutra, a mesma preocupação com as exceções que vimos na unidade I entre os etnometodólogos.

Se não me engano, é em outro texto que este autor alemão irá evocar Cila e Caribde, os monstros marítimos homéricos como forma de alusão à física/metafísica, ao discurso/metadiscurso neste tempo de incertezas (nunca houve um tempo de certezas absolutas, e é certo que ainda temos um solo razoável de convicções). Em geral, seu teor é afim ao de Bourdieu no que tange a isso, inclusive quando aponta a recursividade dos problemas das ciências naturais de outrora nas ciências sociais de hoje, como se fosse uma história espelhada (“as ciências sociais encontram a mesma dificuldade que afligiu as ciências naturais”, p. 23 de Introdução à Sociologia).

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