GILBERTO FREYRE, DARCY RIBEIRO E A MARCA DO NEGRO DESDE O SISTEMA COLONIAL BRASILEIRO: Um estudo comparativo

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Sociologia Brasileira

Semestre: 1/2010

Professora: Mariza Velozo

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Dissertação acerca de um tema nacional de livre escolha, baseando-se no escopo teórico oferecido pelo curso

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS

PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL

BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS

NEGROS

CONCLUSÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Sobre a delimitação do tema: a idéia inicial era fazer uma comparação de como a vida do negro escravo era enxergada (em sua falta de salubridade das senzalas, no caráter penoso do trabalho, na eventual dieta, no nível de liberdade que podiam desfrutar, religiosa, moral e cívica, no que tangesse ao lazer enquanto não estivessem cumprindo as ordens de seus donos, etc.) por diferentes autores; seria, nas condições mais ideais, até, tentar responder uma dúvida que uma vez se me suscitou em aula de História Econômica Geral, nesta universidade, ainda em 2008, quando o professor da cadeira disse que os proletários ingleses do século XIX tinham uma existência muito mais precária que a dos nossos escravos, o que, me recordo, havia chocado a turma. Certo é que esse problema continuou reverberando em minha cabeça de quando em vez, mas nunca tive tempo de pesquisar sobre o assunto, e achei que esta matéria seria a deixa.

Mas tudo adquiriu contornos mais nítidos, realmente, quando os prazos do trabalho se avizinhavam e houve a sugestão em classe de Sociologia Brasileira, partindo da própria professora, tangendo a pirâmide étnica ou inter-racial nesses dois autores (Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro). Pode-se julgar que não intento aqui um esmiuçar profundo acerca do indígena e do próprio branco europeu, subsistindo aquela vontade de falar sobre o afro-descendente em especial, devido principalmente a limitações temporais. O que importa é que o trabalho ganha muito mais corpo ao tentar abarcar a totalidade da vivência dessa gente, e não apenas a forma como eram tratados em cativeiro.1 Além disso, devo obviamente me imiscuir na questão social que se refere às raças resultantes do “congraçamento sexual” entre brancos e negros e até eventualmente índios e negros. Muito ajuda, nesse prazo de tempo curtíssimo, ambas as leituras serem assaz gostosas.

E, felizmente, devo dizer que, por ser este um dos três pilares ou matrizes étnicas e de fulcral importância na descrição da evolução da civilização brasileira, será impossível que meu trabalho não cumpra em parte ao menos o delineamento geral de uma tal hierarquia ou pirâmide das três raças nesses dois autores (que foi a sugestão da Prof.ª Mariza e aquilo que me aprazeria desenvolver se houvesse mais condições), porque se o enfoque é no tipo negro, por tabela, a posição desta matriz na relação entre índios e portugueses entre si poderá ser assinalada, para não dizer da relação de ambos com o negro, o que já está tácito: assim sendo, quem sabe, nem que de soslaio, empreendemos esse objetivo que nos foi agregado “em meio do caminho”.

VISÃO PANORÂMICA DAS DUAS OBRAS A SEREM COMPARADAS

Casa-grande & Senzala – Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal” compõe, como se sabe, a terça parte do que viria a ser uma “História da sociedade patriarcal no Brasil”, ou apenas uma introdução a esta, como queria a modéstia de Gilberto Freyre. É a parte reputada como a mais bem-escrita e a mais imortalizada dentre os volumes seqüentes (que são, apenas por curiosidade, “Sobrados e Mucambos” e “Ordem e progresso”), e dizem os especialistas que o melhor jeito de lê-la é da forma menos sisuda e mais descontraída possível!2 Cuida “Casa-grande & Senzala” da parte colonial dessa hercúlea tarefa que é decifrar o Brasil. Entre suas maiores inovações, podemos elencar o exitoso emprego do culturalismo boasiano – ainda na década de 30 do século XX da antropologia brasileira – e a valorização da raça negra como jamais antes, superando a geração dos intelectuais brasileiros que se preocupavam em encontrar uma solução para a “questão racial”; questão racial que, pelo menos nos moldes do século XIX, está findada. Uma questão sócio-cultural é que se nos desenha, e seria inútil continuar procurando justificações étnicas em mitos europeus. Sabe-se, outrossim, que não seria do feitio de um grande escritor, que quisesse ser levado a sério, recair ingenuamente no outro extremo, o da ultra-idealização romanesca, quase como um Rousseau dos trópicos, do homem americano.

A ordem dos capítulos no livro de Freyre pode dar pistas imediatas de sua “hierarquização das raças” (inconsciente?). Muito embora não se respeite exatamente uma segmentação rígida na prestação de informações: muito se fala sobre o branco no capítulo dos índios, demais se fala sobre o negro em todos os capítulos, e um tanto se fala do branco e do silvícola nos dois capítulos dedicados aos escravos africanos. Mas a julgar pelo índice, percebe-se logo de cara o enfoque maior na matriz étnica dos afros, beirando 50% da obra.

Onde “Casa-grande (…)” se mostra mais instigante até os dias de hoje e inultrapassável, quiçá, é na microssociologia. Não é este exatamente o mapa do tesouro procurado por um profissional como o economista, portanto – como evidencia a página 276: “Não nos interessa, porém, senão indiretamente, neste ensaio [capítulo 3 – o capítulo 1 havia fornecido uma visão mais geral e macroscópica], o aspecto econômico ou político da colonização portuguesa do Brasil. Diretamente, só nos interessa o social, no sentido particular de social que coincide com o sociológico.”

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O mineiro Darcy Ribeiro, que tinha 11 anos quando a primeira edição de “Casagrande & Senzala” fôra publicada, foi talvez o último dos historiadores brasileiros a intentar uma “teoria geral” sobre o Brasil. Empreendeu 30 anos de sua vida, interrompidos por outros projetos3 e questões médicas, na sua magnum opus (tendo, inclusive, cinematograficamente, fugido da UTI para concluí-la à beira da praia em ‘paz da alma’), “O Povo Brasileiro”, cujo subtítulo sugestivo (como discutimos tantas vezes em classe acerca da freqüência dessa palavra “formação” nos trabalhos de grande esforço sistemático dos nossos autores clássicos!) é “A formação e o sentido do Brasil”. A tônica do livro, e provavelmente sua motivação por excelência, é uma análise do mito de que o Brasil seja o país do futuro, futuro que, hipoteticamente, nunca chega (e a pecha de “subdesenvolvidos”, o eterno “estar mergulhado” em uma zona pastosa de economias exploradas pelos países ricos e a descrença em nossa capacidade real de protagonismo, não seriam mitos, também?). Mas por que isso está tão entranhado em nós brasileiros (essa esperança quase que tola), a ponto de todos já terem ouvido falar no tal mito? A resposta para esse dilema pode ser encontrada em nosso passado e na forma absolutamente inédita como nos originamos, segundo o autor.4

Que, no entanto, a descrição dessa demorada labuta que virou livro não engane o leitor a respeito da forma como tal densidade está disponibilizada para o leitor: nada de academicismo pesado, mas uma leitura mui leve, que parte das mãos de outro romancista que por algum engano da História veio a ser cientista, à la Freyre!

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Para finalizar essa pequena pincelada nas duas obras, alguém que comentou sobre os dois num só lugar: “Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre. Mesmo os que o foram, como o próprio Darcy, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido.” (CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene In: FREYRE, 2006, p. 19). A frase, imagino eu, significa que tampouco Darcy Ribeiro, um grande fã e entusiasta do legado freyreano, deixou de dar suas pontadas historiográficas e assinalar suas necessárias correções. Mas repara-se que pela forma como Fernando Henrique Cardoso elaborou sua frase, ela pode adquirir um segundo sentido: o de que Darcy repetiu esses erros. E é irônico que Darcy Ribeiro tenha criticado o gosto de Gilberto Freyre pela palavra mais poética e cheia de efeito, pois esta é uma característica também sua! Sim, Ribeiro não deixou de mostrar suas mesmas contradições – o que, para sua sorte, não lhe retira o valor!

PALAVRAS SOBRE A MISCIGENAÇÃO E A IDENTIDADE RACIAL

Pécaut, quando diz que “o livro considera os relacionamentos sexuais como o motor de toda uma elaboração cultural, que fundamenta as relações sociais” (PÉCAUT, 1990), está se referindo a Freyre, mas a carapuça serve a “O Povo Brasileiro” também. Explicar o Brasil contemporâneo passa necessariamente pelo problema das etnias primordiais e mais “puras” (no conceito estritamente didático) da nação, pelo sexo, que é o invencível fator de amálgama entre esses tipos, e pela aceitação da alteridade e auto-formação da identidade, que são processos praticamente concomitantes.

À guisa de iniciar as explanações mais detalhadas dos dois livros, para não parecer que alguma coisa ficou perdida ou que as informações no tocante a esse problema central ficaram soltas demais, reunimo-las neste tópico:

“Abaixo” (na árvore genealógica) das óbvias tipologias “branco europeu”, “índio americano” e “negro africano”, temos as seguintes combinações: 1) o branco misturado com o índio (predominantemente o branco colonizador com a índia encontrada nestas terras, inaugurando a relação de cunhadismo descrita por Ribeiro) resulta no mameluco (termo pejorativo articulado por jesuítas paraguaios em referência aos temíveis bandeirantes, é o mais provável); note-se que Darcy Ribeiro cunhou seu próprio sinônimo para mameluco, brasilíndio; quando o indivíduo é mais nortista e embrenhado nas matas, preservando costumes indígenas, existe para ele o termo caboclo; 2) as uniões de índio com negro (isso era possível nos quilombos, por exemplo) resultavam na gente cafuza; 3) o mulato ou afro-brasileiro é a mistura do branco e do negro; 4) faz-se necessário entrar no mérito da obra “O Povo Brasileiro”, que é transcender esse debate, inaugurando novas tipologias para tratar melhor das mestiçagens: primeiro, temos o neobrasileiro (que melhor seria, para não confundir o leitor, chamar-se protobrasileiro), o germinal de uma consciência nacional brasileira;5 só posteriormente aparece o brasileiro p.d., e a seguir entenderemos o porquê.

BRANCOS, SEXO E ÍNDIOS

Em “Casa-grande & Senzala”, a análise é quase toda preenchida com relatos de senhores de engenho em suas safadezas e em seu ecletismo mulheril – sem poupar, no meio do caminho, mesmo os causos de relações homossexuais entre filhos de senhor e negrinhos, ou como no caso dos tutores e alunos, o que na maioria dos episódios era em instâncias eclesiásticas envolvendo fradecos –, ou de bandeirantes e dos primeiros colonos em seu apresamento de índios ou desventuras com índias; em segundo plano pela citação de exemplos de produção de gente cafuza nos quilombos; ou ainda estão presentes as cenas mais pitorescas, radicais e raras, da mulher branca em intercurso sexual com escravos da propriedade. A punição diante de leves suspeitas levantadas pelo marido era já a morte. Estas damas, coitadas, são retratadas como raparigas imensamente sedentárias. Não viviam muito tempo, máquinas de gerar prole que eram, abusivamente usadas, e com menos de 30 anos já se punham umas velhotas…

Freyre tentava desmistificar a tal fogosidade atribuída ao negro em maior grau – segundo alguns autores foi essa libidinosidade da raça mais primitiva que teria corrompido o homem branco. O tempo todo Freyre insistirá na impossibilidade de se efetuar uma caça às bruxas, e que a estrutura viciada do modo de produção implantado no Brasil, esta sozinha, explica muitas das nossas atuais mazelas. Dirá, pois, na defesa das raças dominadas pelo jugo do homem branco, que o português era o mais tarado e sexualmente disposto das três raças; depois viria o índio (ou a índia); em último, os afros. Rebatia os argumentos de que eles eram mais sexuais, tanto que tinham todo um repertório de danças e rituais que se mostravam provocativos com o corpo, alegando que isso era justamente um subterfúgio de raça que não se excita fácil e que precisa desse tipo de afrodisíaco ou estimulante, ao contrário do português, que chegava e fornicava sem-cerimônia (FREYRE, 2006, p. 168).

E, além do mais, a dança já representava um grande gasto de energia que implicaria, ao contrário das aparências, na impossibilidade de se ser devasso, como queriam os historiadores de antanho: “Pelo menos entre os negros (…) eram mais freqüentes e ardorosas as danças eróticas (…) e as danças eróticas parece que quanto mais freqüentes e ardorosas, mais fraca sexualidade indicam.” (FREYRE, 2006, p. 239). Freyre ainda antevê um problema que seria absolutamente abordável em correntes recentes que vimos: do Funk carioca, à Axé music, passando por outros ritmos populares e polêmicos: a mistura cultural e a contaminação da pureza nas danças modernas, fundamentalmente não outra coisa que o duelo “sensualidade x sexualidade”, o mesmo debate, aliás, de “erotismo x pornografia”.6 Também é o “gasto de energia”, segundo Freyre, que explica a menor destinação da pulsão sexual do homem índio guerreiro ao sexo em si; enquanto que a mulher da tribo, por ser mais sedentária, sofreria de um intenso “priapismo”, no vocábulo freyreano. Ainda no tocante à fama de “quente” do povo brasileiro, embora não a enumere como suficiente, Freyre admite a causação climática (o clima tropical), um dos fatores que gerariam a excitabilidade desenfreada dos jovens mancebos brasilianos…

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O colonizador da empresa Brasil se tornou, desde o princípio, de acordo com Gilberto Freyre, uma mera caricatura dos bons tempos lusitanos… Muito se dizia do racismo do português, mas se esquece de medir o quanto Portugal era tão multiétnico quanto o Brasil. Um caldeirão árabe que explicaria ainda um pouco do exotismo inclassificável do brasileiro. Além disso, era remarcado por uma intensa mobilidade social – outra característica que vai se espelhar na Colônia.7 A verdade é que o típico luso daquele tempo demonstraria muito mais uma intolerância religiosa e uma tolerância mercantil estrangeira do que qualquer ódio ou repulsa racial ou xenofobia sistemática, bastando que estivesse lidando com um forasteiro cristianizado a fim de negociar especiarias que as coisas teriam muito mais chances de prosseguir pacificamente. Os holandeses e os franceses foram por algum tempo seus maiores inimigos, mas isso porque tentavam implantar ilegalmente colônias na costa e professavam a fé calvinista. Verificar-se-á, ao longo do Brasil-Colônia e do Brasil Império, onde ainda há uma intelligentsia e uma burocracia portuguesas influentes, o quanto outros povos tiveram trânsito por aqui, desde que respeitassem algumas regras. Esse sangue disseminado só ajudou a ampliar nossa diversidade.

Para aqueles que sempre se referem aos próprios lusos que ajudaram a povoar o Brasil e fundar nossa nação como não mais que uns criminosos e prostitutas, ralé de Portugal, o que portanto explicaria nosso status de civilização inferior, Freyre também destina algumas linhas. Na página 296, desconstrói apropriadamente esse mito, relatando, aliás, que trazer uma mulher de além-mar era uma empresa muito incerta, que os ventres das índias atenderiam muito melhor esse anseio de constituição de família por aqui. Ainda segundo o autor, os tais “criminosos” deportados nas naus eram quase sempre hereges, excomungados da Igreja, pelo que hoje não seria considerado delito penal, como a sodomia, mas que para a época era infração mortal. Só que nem esses degredados constituíam uma maioria, cabendo ao espírito de aventura de muitos a própria razão da ida ao Brasil, afora os tantos que vieram como proto-intelligentsia e funcionários da Coroa. Tal preconceito manifesto no início do parágrafo, por conseguinte, não se sustenta. Cabe ainda enfatizar o quanto Portugal vivia dias difíceis, e não são exceções os registros de famílias médias ou mesmo de elite passando fome (porque preferiam sair bem-vestidas e ostentar muita escravaria, só que escondiam a real condição do lar): subnutrição era um problema corrente (FREYRE, 2006, p. 313). Por fim, não tolerava Freyre que se caísse na fantasia oposta à nossa síndrome de vira-lata ou baixa auto-estima, isto é, acreditar que os que vieram cá plasmar nossa raça fossem todos uns arianos aristocratas (cf. Oliveira Viana8).

No terreno da desmistificação religiosa (atribuir tudo que é mais reprovável e estranho de acordo com os dogmas cristãos ao desvirtuamento cultural provocado pela introdução do negro e pelas assimilações que se fez indeliberadamente dos indígenas), o autor recifense, remando contra a maré de seu tempo, até no caso da bruxaria, reputa ao europeu a maior “responsabilidade”, diante de credos satanistas importados do continente branco (sem negar que os valores da mitologia afro-americana apimentaram ainda mais os rituais, depois – e hoje temos a Bahia, a terra do candomblé).

Gilberto Freyre não perde nenhuma deixa para menoscabar os Estados Unidos, que tiveram uma colonização tão diferente e vieram a ser o que são (ou o que já foram), diante do nosso jeito brasileiro/neo-português/misturado de fazer as coisas: “Resultados de promessas ou do culto de Maria são ainda os nomes de muitos lugares do Brasil – Graças, Penha, Conceição (…) que tornam a nomenclatura geográfica do nosso país tão mais poética que a dos Estados Unidos com os seus Minneapolis, Indianápolis, e outros nomes em ‘polis’ que Mathew (sic) Arnold achou horrorosamente inexpressivos” (FREYRE, 2006, p. 475, nota 108 do capítulo IV). Na minha opinião sua caricatura é maldosa em excesso, haja vista muitos sítios americanos com nomes precedidos por “St.” ou correlatos, enquanto no Brasil temos designações tais quais Pirenópolis, Anápolis, e até mesmo muitos nomes americanizados ou germanizados, por exemplo, a depender da quantidade de imigrantes que vieram a povoar nossa terra. Eu acrescentaria ainda a cafonice de batizar monumentos urbanos com figuras que, com o passar das décadas e séculos, ficaram imensamente desprestigiadas, entre elas os generais da ditadura. Portanto, nomes feios e nomes bonitos não devem ser privilégio de nenhuma nação ou coordenadas em especial!

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Claro que o indígena acabaria por estar menos contemplado na obra, haja vista o título, “Casa-grande & Senzala”, já dar a entender que o principal ambiente a ser descrito – embora me pareça exagerada a crítica a Freyre de que ele tratou de descrever apenas os “feudos” do Brasil-Colônia em sua configuração interior apartada da mais geral realidade, pois compreendia muito bem toda a malha que interligava essas múltiplas zonas, setores e camadas sociais – seja o dos engenhos, do qual os índios, dentre as três raças, foram os que se mantiveram mais afastados.9 Muito embora sejam conhecidas as frustradas tentativas de empregar silvícolas como escravos, perdurando esse “mito da debilidade física” do nosso aborígene em relação ao negro africano,10 ou do seu caráter mais “arredio” e menos adaptável, o que mais parece uma balela para justificar a condição do negro:11 como se o negro não tivesse sido desenraizado de sua terra (e há até palavra para isso, diferente de “saudade” ou “nostalgia”: banzo)! Aliás, a resposta de Freyre estará estranhamente condicionada a um ideal evolucionista, de que as civilizações de Guiné, Sudão, Angola e demais sítios africanos eram mais complexas e desenvolvidas, sedentárias,12 e por isso muito mais aptas ao pesado trabalho de moagem e corte de cana que os semi-nômades índios americanos.

Na página 259, Freyre defenderá que nem em aproximações numéricas seria possível mensurar a população indígena ao longo do tempo. Fato é que Ribeiro, muitas décadas depois e com novos métodos à disposição, também estará reticente quanto ao caso, pela falta de evidenciações, embora ensaie um cálculo, que estipula o número razoável de índios nativos como de 5 milhões à época do “descobrimento”. Para se ter idéia da catástrofe, hoje essa população não deve exceder 100 mil. Tanto se fala de etnocídios em outras partes do globo que, sendo um brasileiro, me espantei que essa palavra estivesse ausente de praticamente qualquer historiador nacional que se ocupasse desse período (parece que só recentemente a Funai e outras instâncias, através de uma mudança de consciência, vêm possibilitando um ligeiro crescimento dessas populações). E foi uma agonia tão cáustica quanto lenta, sentida diferentemente que no México, no Peru, na guerra efêmera que se deu entre espanhóis e as civilizações americanas que possuíam um claro centro político, o que não é o caso da nossa população original. Aqui se morria devagar. A cultura jamais foi depredada, aniquilada por completo, houve uma continuidade, não obstante sofrida (o que contrasta, também, com a situação de verdadeira guerra palmo a palmo com as tribos que ocupavam o antigo território Oeste do que veio a se tornar os Estados Unidos, e de igual modo no Canadá). Melhor dizendo, para não parecer que falei por eufemismos: índios brasileiros, dizimados, senão fisicamente, culturalmente, devido aos traumas. Mas tudo tem o reverso da moeda, e ainda falarei, na conclusão, sobre a assimilação branca dos aspectos indígenas, em contrapartida – sua “contaminação”.

Entre as contribuições dos povos autóctones, Freyre lista: ajudaram na expulsão dos estrangeiros da costa brasileira, com seus dotes guerreiros; conhecimento da fauna e flora locais, grande interpenetração do território – capital cumulativo de geração a geração, pois tal base fora indispensável aos bandeirantes, que afinal eram mamelucos em sua maioria. Esses tais brasilíndios na nomenclatura ribeirista (RIBEIRO, 1995), se não eram tão familiarizados com a mata quanto os próprios nativos (e havia nativos que, depois de escravizados nas vilas, decidiam-se por ingressar nesse tipo de aventura com os mestiçados), por outro lado já estavam em uma integração muito maior com o habitat que seus pais portugueses, além de terem necessidades econômicas a suprir.13

A influência indígena muito se verifica pela nossa elaborada culinária: tapioca, canjica, pamonha, dentre outros deliciosos “quitutes”, com que qualquer um sente uma intensa identificação. Diluídas, influências africanas também se tornaram irremediáveis. Mas a cozinha africana é tão rica que deixamos outras de suas “exclusividades” (até se tornarem populares por aqui) para o próximo tópico.

A questão do asseio diário e de certo grau de narcisismo e auto-enfeitamento também não escapa. Em paralelo, os europeus viviam séculos negros quanto à higiene pessoal, e não é pequena a comicidade dos relatos das nojeiras rotineiras das pessoas da mais alta estirpe, naquele continente, trazidos por Gilberto Freyre.

Mesmo que os índios não cultivassem a escrita, indiretamente auxiliaram os portugueses até nesse fim, fornecendo o conhecimento de pigmentos de tinta que se poderiam extrair da vegetação local. O brincar de boneca é outro resquício dessa cultura, embora tenha sofrido também incorporações africanas a posteriori. Os dialetos indígenas, que foram aprendidos pelos primeiros jesuítas para facilitar a catequização do povo, foram um grande incremento para os rituais musicais ecumênicos e ajudou a aproximar portugueses e silvícolas.

Freyre peca um pouco no batido item de classificar os índios como “ruins no trabalho braçal”. Negligencia, ainda, sua inteligência e experiência na arte do cultivo (não que negligencie em absoluto, há até passagens que comprovariam o contrário – mas é quase sempre a mulher a plantadora; segundo este autor, a mulher indígena teria sido uma figura muito mais importante que a metade masculina de seu “povo”).

NEGROS

O Engenho Noruega (antigo Engenho dos Bois), localizado em Pernambuco, não é o exemplo de propriedade mais esbanjante, nem tampouco é desprezível, portanto nos serve de exemplo-médio da estrutura dual casa-grande/senzala:14 a nordeste (pelo menos considerando a página do livro uma réplica dos pontos cardeais, a base da página, mais próxima do leitor, sendo o sul, o lado direito do leitor sendo o leste), numa espécie de grande quintal, uma profusão de negrinhos e branquinhos, crianças em suas brincadeiras, sempre misturadas racialmente, umas violentas, em que o alvíssimo filho do senhor-da-casa exerce seu domínio de chicote em punho, outras não. Mais de 50, 60 pessoas são retratadas dentro do casarão (não à toa tem esse nome de casa-grande), e 200 seria um bom número para o total de escravos da propriedade, segundo Freyre e autores que ele cita. As cozinhas mereceram esmero do pintor/desenhista: lá, como veremos mais adiante, há uma especialização de funções invejável até mesmo para um industrial fordista. Ao norte há um pomar, um córrego, gado ao relento. Ao sul e a sudoeste, charretes chegando ao portal da casa, negros transportando materiais e mercadorias com auxílio animal. Vêem-se prédios que devem corresponder às casas de purgar, de destilar e à da caldeira, integradas e auto-suficientes, no somatório interno (sem falar em outras estruturas não-citadas, mas presentes no engenho), para a feitura e exportação da cana-de-açúcar consumível. Se o engenho era pouco eclético e não era uma autarquia na acepção mais abrangente da palavra, isso se devia a uma mera escolha pragmática do proprietário: era mais rentável se dedicar estritamente à produção desse bem de consumo tão valorizado que plantar e cultivar insumos mil, que podiam ser adquiridos nas vilas. Eis a descrição sucinta de uma unidade do meio de produção monocultor. Na iconografia do livro, a idéia é ainda mais direta e rica.

Que o negro africano fosse, como mão-de-obra não-livre, a classe mais desprivilegiada nas relações de poder, não é essa obviedade que pretendemos esmiuçar, como deixamos claro na introdução com uma extensa nota de rodapé.15 Mas, dentro disso, quais a relevância social e o grau de influência do negro frente aos demais troncos? Não era necessário ser cidadão para que tivesse um peso considerável na conduta dos gentios e na construção (involuntária) de um projeto de nação.

Vale dizer que a introdução do negro no sistema colonial brasileiro data de 1538 (RIBEIRO, 1995, p. 161). Coisa de que não temos absoluta noção, posto que mais nos interessou, no período escolar, por exemplo, a data do descobrimento português, e tampouco temos dados confiáveis sobre a escala de tempo aborígene pré-colombiana, nos restando a estimativa de que o grande grupo chamado tupi-guarani tenha chegado à costa brasileira cerca de 200 anos antes de Pedro Álvares Cabral.

O trecho que vou colar a seguir nos enche o olho de preocupação, da mesma preocupação freyreana em falar dos negros até mesmo na unidade dedicada aos aborígenes: “sociedade patriarcal no Brasil. Sociedade que teve no negro, importado de várias áreas africanas, um dos seus elementos sociologicamente mais importantes. Importante, do nosso ponto de vista, mais como escravo do que como negro ou africano, embora sua importância como negro ou africano seja enorme e suas áreas de origem mereçam a atenção e os estudos dos especialistas.” (2006, p. 238, nota 23 do capítulo 2). É realmente tanta a ânsia do autor em condensar toda a maravilha cultural africana que isso às vezes o atrapalha. É no início do primeiro capítulo exatamente criado para esse fim que enxergamos uma clara tomada de partido, que até ali vinha sendo evitada pelo escritor. É aqui que as críticas dos comentadores do legado freyreano mais têm sua razão de ser, porque a dado ponto Gilberto parece se entregar a um misto diletante de tratado de biologia com epistemologia, circunscrevendo-se a um debate que parece ser o ponto mais defasado de seu livro, um debate entre lamarckistas e weismannianos, com direito a várias notas de rodapé acusatórias e considerações sobre o evolucionismo e métodos rústicos como medidas de crânio, (b)ranqueamento de raças e climatologia. De todo modo, quando se assenta em oposição à linha que chama de dominante entre os positivistas norte-americanos, nosso autor retoma o bom senso na pesquisa.

No que não pude deixar de enxergar a felicidade do título que escolhi para o artigo, o que se deu antes mesmo das leituras, leio à página 367 de “Casa-grande & Senzala”: “trazemos quase todos a marca da influência negra”; e virando a folha, “Não nos interessa, senão indiretamente, nesse ensaio, a importância do negro (…) no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. (…) muito maior (…) que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.”. Freyre reconhece a multiplicidade de povos africanos e americanos, pois compactua com a teoria do difusionismo e vê graus civilizacionais divergentes, matizes/manchas no mapa, à la Kroeber-Herskovits. Portanto suas afirmações pregressas devem ser encaradas como generalizações introdutórias, isto é, ele considera o africano, em média, mais desenvolvido que o indígena médio, se é que é possível fazer tal abstração.

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Em complementaridade a esse nível todo de importância que é atribuído à raça, e no que toca mais ao trabalho: [os negros] desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.” (FREYRE, 2006, p. 390). Esse discurso, excetuando-se a sobrevalorização do negro, que sozinho é a mão destra frente às outras duas matrizes, é a exata antecipação de Darcy Ribeiro, tão preocupado em relatar um “processo civilizatório” em uma (hiperbólica, ao meu ver) “Roma tropical”.

Havia critérios estéticos na seleção dos negros para sua fazenda, e o comprador tentava relacionar a beleza, ou senão qualquer outra característica de saúde, também com a inteligência, para direcionar, a partir daí, o escravo a uma função mais elaborada e mais próxima da casa. Freyre narra cativos vindos de alguns navios que se sobressaíam aos demais, legítimos “negros de elite”, que fariam a ralé estadunidense (insiste nisso!) ser vítima de chacota. De modo geral podemos isentar as amas-de-leite, cozinheiras, copeiros e negrinhos que andavam pela casa-grande das violências e abusos perpetrados em localidades mais marginais dentro da propriedade. Lembremos, inclusive, como diz Foucault, que algumas coisas só nascem quando passam a ser ditas, nomeadas: “violência doméstica”, eis algo que ainda não existia, isto é, só se olharmos com olhos do presente para esse passado. Portanto, a própria esposa do senhor-de-engenho, por mais rude que fosse o tratamento recebido, e essa gente toda, não eram exatamente violentados, pelos parâmetros da época.

Ainda no que se refere ao valor do negro para o trabalho, nas minas teriam sido imprescindíveis metalúrgicos,16 pois nem o homem branco saberia nelas operar. Há que se dizer que, em muitos engenhos, a tecnologia reduzia a necessidade de tanta mão-de-obra (referimo-nos anteriormente à cifra de 200 trabalhadores num mesmo espaço), mas normalmente os senhores mantinham um excedente supérfluo e ostentatório. Não se era, pois, “moderno”, na acepção mais capitalista e liberal da palavra. Não se procurava investir o lucro em aquisição de novos equipamentos num ritmo racional para maximização de lucros, isto é, não se punha a propriedade privada quase nunca em risco, essa que é uma ousadia típica alavancada pela burguesia não-patriarcal.

Só que apesar disso podemos divisar racionalizações em outros pontos: cada negro possuía o conhecimento estritamente necessário para o desempenho de sua função na empresa da cana-de-açúcar, e com base nisso se estabelecia uma hierarquia intra-escravizados, mais ou menos evidente a depender de que setores estamos falando. Podia-se variar de quase-bicho a “praticamente da família”, cuidar do trabalho mais maçante e degradante até coisas como “mestre-de-chaves” (FREYRE, 2006, p. 567, nota 100 do quinto e último capítulo).

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Na língua, o peso da negritude é avassalador. Exemplos de vocábulos introduzidos pelos negros no nosso idioma: dengo, cafuné, caçula, mandinga (que parece ter sido originalmente o nome de um povo afro), moleque, quenga, bunda, zumbi, vatapá, quindim, catinga, birimbau (com “i” em Freyre, hoje dicionarizada com “e”), oxente (muito lançamos mão do tal “oxi” mesmo em Brasília) Todas muito mais empregadas no Norte que no Sul (não região Norte no senso atual, mas abrangendo também o Nordeste, e conseqüentemente regiões como a nossa, que receberam altíssimo índice de imigrantes de lá provindos, em data posterior à publicação desse livro, aliás). Outros termos consagrados como “bicho” (que usamos até para gente!) provêm, é mais provável, dos indígenas.

Uma grande questão facilmente vislumbrável por nós aprendizes na erudição é a seguinte: “um vício em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.” (FREYRE, 2006, p. 220). Sinceramente, não sei se houve um retrocesso (avanço) no quesito. O Português ainda se me surge como quase esquizofrênico (ou “órfão”), na hora da tradução do seu uso ágrafo para o papel ou vice-versa! Coisa que, como destacou Freyre, o negro que muitas vezes alfabetizou os meninotes da casa tentou remediar: “Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias” (p. 413).

Não só isso, mas “o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo”, graças à disseminação de histórias e estórias indígenas e africanas. Foi também o negro responsável pela introdução do islamismo no Brasil. Muitos das senzalas eram versados no Alcorão. Aqui declara Gilberto, em oposição ao que veremos em breve dos punhos de Darcy, havia uma relativa tolerância de costumes e rituais dentro da senzala; folguedos e dispensas dos trabalhos nas datas cristãs mais importantes. Há muito debate e polêmica quanto ao dia de trabalho ou descanso dos escravos no domingo, data sagrada.

Reconhece-se, maior influência africana que indígena na família moderna brasileira. “O negro é o componente mais criativo da cultura brasileira”: quem vai dizê-lo é Ribeiro, e não Freyre! Mas a verdade é que para o primeiro essa criatividade foi muito mais tolhida do que levada a cabo.

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O autor assevera que a influência anglo-francesa amainou a força da cozinha afro-brasileira ao longo do último século (podemos dizer, então, 200 anos, levando-se em conta a continuidade desse processo após a publicação de “Casa-grande & Senzala”); isto é, “desapimentou” um pouco os pratos… Em 1834 houve, por exemplo, a 1ª importação de gelo, em um navio inglês, para território brasileiro. O casamento desta nova “tecnologia” com as frutas tropicais seria da riqueza que hoje se vê em quase qualquer esquina, com a multitude de sabores exóticos, muitos dos quais imaginaríamos exclusivos de nossa terra se – quem diria! – os europeus e “desenvolvidos” não fossem os primeiros a importar delícias como o sorvete de cupuaçu! Consta ainda, em Freyre, ter sido a alimentação do negro regrada e balanceada. Isto é, se o engenho era bom… Porque não faltam os casos em que até o “opulento” senhor passava fome, em troca de gastos vãos em outros departamentos.

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Darcy certamente utiliza em larga medida da própria obra clássica de Freyre para caracterizar o negro, de forma que durante muitas páginas pensamos estar tão-somente diante de um comentador ou reprodutor, mas não no sentido pejorativo: significa que Freyre havia-o cumprido muito bem e, se quisesse retratar o negro com fidelidade, Ribeiro não poderia fugir muito das verossimilhanças. Não obstante, o que mais traz relevo a essa reescritura são informações pontuais como a de que o negro rendia de 7 a 10 anos em cativeiro, em média, e depois disso se tornava inutilizável (e aí sendo possível a alforria) ou morria (RIBEIRO, 1995, p. 118). Narra-se ainda todo o procedimento de aquisição do negro na costa oeste africana, sua embarcação em navios mal-cheirosos (e não só isso) e sua “vida” (assim mesmo, entre aspas) na nova terra, onde iria “trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano” (RIBEIRO, 1995, p. 119). Consta ainda que no dia de domingo podia se entregar a comer de sua horta auto-cultivada, que não dava para muito, mas repunha modestamente as vitaminas de que o corpo precisava para continuar funcionando para desempenhar as tarefas de burro de carga a ele ininterruptamente destinadas. Recebia castigos semanais que serviam de “prevenção” e “pedagogia”, isto é, alertavam o cativo de que ele deveria se manter produtivo e comportado, e que não se metesse a fugir, pois se fosse apanhado as conseqüências seriam muito piores.

Açoites de chicote, mutilações a esmo, arrancada de dentes… Ribeiro nos brinda com um relato mais sórdido que o freyreano, sem dúvida. Mas vai do estilo ou então de uma necessidade produzida exatamente pela falta de maior “crueldade” em “Casa-grande (…)” (não que não haja uma lista considerável de males perpetrados aos escravos, mas eram ocorrências consideradas isoladas, não foram tratadas estatística ou estruturalmente, o escritor parece que não estava “com a mão pesada” nessas horas), à guisa de preencher esse vácuo: Ribeiro não economiza no léxico ao chamar de etnocídio, genocídio e chacinas indiscriminadas o que houve em solo pátrio desde que as naus portuguesas aportaram (estabeleceram-se “moinhos de gastar gente”). Relata até casos grotescos de mobilidade social, na época da mineração, em que podia suceder a anomalia de vermos negros subitamente enricados que se alforriavam e se sagravam senhores de muitos escravos!

CONCLUSÕES

Contraporemos a opinião de dois autores da nossa segunda unidade do curso de Sociologia Brasileira para tentar julgar os méritos e deficiências gilbertofreyreanas-darcyribeiroanas em um panorama mais contextualizado:

Em ‘Massangana’ Nabuco revela o complexo de sentimentos associado à idéia que ele foi pioneiro em veicular no Brasil e que seria retomada e desenvolvida por Gilberto Freyre: a idéia de que o sistema escravocrata era um mal que afetava irreversivelmente tanto escravos quanto senhores, enredando-os numa miríade de interesses libidinais comuns. (MORICONI, 2001, p. 171)

E agora o antitético Ventura:

O patriarcalismo, adotado por Freyre como molde interpretativo, encobre o caráter mercantil e violento das relações de produção sob o cativeiro e concilia a sociedade brasileira com seu passado escravocrata. Ao privilegiar o patriarcalismo e generalizar características da escravidão doméstica, Freyre construiu o mito da brandura e docilidade nas relações entre senhores e escravos. (1991, p. 66 [negrito meu])

Há quem acuse Gilberto Freyre de complacência quanto ao regime de plantation e que ele teria defendido a escravocracia do ponto de vista de sua necessidade para que o projeto colonial fosse levado adiante: “Terra de insetos devastadores, de secas, inundações. A saúva sozinha, sem outra praga, nem dano, teria vencido o colono lavrador; devorando-lhe a pequena propriedade do dia para a noite; consumindo-lhe em curtas horas o difícil capital de instalação; o esforço penoso de muitos meses. Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala.” (FREYRE, 2006, p. 323, capítulo III). Concepção talvez estrutural da História, mas passando longe de uma justificação moral, porque há muitas outras passagens do livro que entram em contradição com esta que foi citada.

Ora, em sua descrição etnográfica, Freyre retrata essa verve muito mais melíflua da relação entre senhor e escravo, essa maneira sui generis do superior se dirigir ao inferior, por vezes sem bravatas, sem traços tirânicos e autocráticos, com aquele ar matreiro, semblante que muitos aproximariam do próprio africano espontâneo e “alegre” (como quer Freyre), sem pestanejar; descrição humana que mais ou menos se aproxima do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Mas nem por isso invertem-se os papéis, ou nivelam-se os papéis. O senhor – nem por sua língua mais macia, por seu trato mais terno com o subalterno – nem por isso deixa de ser senhor; nem o (alguns dos) escravo, por ser muito mais chegado à família que em um modo de produção outro, por participar muitas vezes da educação do filho branco do senhor de engenho, deixa de ser escravo. Nem deixa de haver um compêndio oceânico de casos de violência brutal do dominador contra o oprimido. Se esse mito de que fala Ventura é realmente muito falado, talvez se tenha de culpar muitos dos intérpretes de Freyre e dos exageradores desse tom de “democracia racial”, em primeiro lugar.

No que reside esse sentimento de “unidade” ou de integração senhor-escravo (ex-senhor/ex-escravo) narrado por Gilberto Freyre? Sabe-se que tanto um como o outro lado são insuprimíveis. Eles trocam fluidos incessantemente. Assim constrói-se uma cultura. Não se aniquila um modo de existência, fazendo-se uma deglutição completa. No máximo há uma antropofagia,17 diria Oswald de Andrade. Mas aquele que se “alimentou” não será jamais o mesmo. Nunca sequer foi-se uma unidade, cabendo sempre à idéia de relação a definição dos sujeitos e das culturas. Sendo assim, há muito de Marx, Freud e Nietzsche em Gilberto Freyre: cônscio de que na dialética das raças toda experiência importaria, se refletiria, no futuro, e que portanto mesmo o “modelo hegemônico” (ou “modo de produção”, para usar uma terminologia marxiana) carregaria em seu bojo tudo que já lhe foi antitético (uma pessoa que morre continua ecoando em nosso ser, sua personalidade continua para nós, nos julgando, participando do nosso projeto de ser), não faria o mínimo sentido idealizar uma pureza racial ou qualquer tipo de gradual ou súbito “melhoramento”, reeducação, etc. Nem haveria qualquer diagnóstico apocalíptico em cima disso: quando é que houve uma pureza de raça e quando ela teria sido realmente desejável? Mesmo em solo europeu, asiático, hindu? O mundo não fôra sempre um caldeirão multiétnico? A tal harmonia que querem ver em Freyre não é bem justificar um passado que é tabu ou fazer de conta que ele foi “menos mau”, mas a constatação de que nós, hoje, fomos tanto senhores quanto escravos, ambos habitam em nós, que essa dicotomia é falsa, porque ultrapassada, do ponto de vista do sujeito contemporâneo em busca de sua identidade “real”, “complexa”. Que no frigir dos ovos trata-se de um bloco só, um problema civilizacional só, que não poderia mais ser analisado da maneira esquizofrênica como vinha sendo. Pouco adianta o discurso de vitimização de uma parcela ou de demonização da outra parte, porque isso seria uma amputação de um membro vital do próprio organismo nacional (se é para usar uma metáfora biologizante em homenagem a tempos em que ela já foi quase obrigatória). Não significa também que o escravagismo, que não foi implantado aqui motivado por racismo, não tenha sido compreendido de forma distorcida por inúmeros grupos sociais sucedâneos, que realmente se utilizaram das prerrogativas de cor; não significa que a estrutura secular da casa-grande e da senzala não tenha feito com que patrões não selecionassem empregados de cor porque cressem, do fundo de suas experiências pessoais, que brancos fossem mais qualificados inerentemente para o trabalho, isso tanto durante o regime escravocrata, quando já havia gente de cor liberta, e em que havia setor de serviços na Colônia, quanto muito tempo ainda depois e até os tempos atuais. Não significa, em suma, que o autor tenha varrido toda a questão racial para debaixo de um tapete de Poliana, como muitos ainda insistem. Querer que a questão brasileira do preconceito racial fosse equiparada à norte-americana ou à sul-africana, no entanto, seria ultrajante. Ao longo de toda a obra é possível ver Freyre dialogando com autores das mais variadas estirpes e tendências e tentando abarcar todos os matizes, evitando esses “ismos” tão pedantescos e inúteis. Daí toda a ênfase na parte sexual: é no ato do coito que esta “unidade” ou projeto de um povo único, embora multifacetado, estão mais bem-representados.18

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Interessante observar que o conceito de “neobrasileiro” é de fato anterior ao de brasileiro, pois este viria a surgir somente no século XVIII (para se ter idéia, até o século XVII o tupi-guarani era o idioma mais falado no território colonial – para a padronização do uso do Português, os afro-brasileiros foram fundamentais). O prefixo “neo-” é para designar o “novo habitante das Américas”, no que se inserem alguns mamelucos (os que preferiam uma existência mais urbana e menos aventureira, ou seja, não-bandeirantes) e a virtual totalidade dos filhos de luso com luso (e nota-se aí que são populações plurais, divididas em algumas classes, uns comerciantes, outros senhores, outros funcionários delegados pela Coroa, muitos até filhos de padres!). Em seguida – conforme os mestiçados ou transplantados a esta nova terra iam “se acostumando” com o status da “Ninguendade” (ou antes, vão-no diluindo), termo ribeirista – cunhou-se o termo brasileiro, ou a idéia de “brasilidade” como são entendíveis ainda hoje, designações pátrias de uma novíssima etnia tropical (embora provinda de matrizes milenares!) que não se julgava nem portuguesa, nem africana, sequer aborígene, e em que havia bastantes pontos em comuns para que as identidades não fossem rachadas em outros rótulos raciais como “mameluco, caboclo, cafuzo, mulato”. Em suma, nós. Ninguendade: de categoria residual, sem tempo nem lugar, a identidade, exatamente a palavra para nos dizer aquilo que somos em contraste com tudo que não somos, por falta de melhores meios. “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.” (RIBEIRO, 1995, p. 120).19

Como vimos, a “pirâmide darcyana das etnias”, aquela que eu esbocei tentar encontrar nas considerações introdutórias, prima pela parcimônia, porque não só este autor dedica o mesmo número de páginas, aproximadamente, a cada raça original/pura, como tenta encontrar um método novo para tratar do problema, através dos híbridos.20 E o super-híbrido somos nós, mestiços de mestiços de mestiços. Alguns que lutam em movimentos mais “simplificadores de posição” (não por ignorância, mas por necessidade) poderiam achar essa solução tão boçal quanto o sustento de uma democracia de raças, mas Ribeiro dedica muitas páginas para falar apenas do negro, sem nada que “suavize a dialética”, se assim podemos dizer, e esperamos que sirva de “consolo” aos que têm uma forte auto-identificação como negros e não concordaram com o ponto de vista expresso até aqui neste ensaio:

Darcy Ribeiro evoca “saídas” (ou “exceções reparadoras”) para os bolsões de miséria continuamente perpetuados pelos mais ricos da nação, saídas não-definitivas ou insatisfatórias, mas que demonstram o quanto, circunstancialmente, a raça negra se mantém pulsante, a despeito de toda a desigualdade que a assolou até aqui: na música popular brasileira, no futebol e em outras atividades onde a hierarquia depende menos do crivo do homem branco industrial (será?), este encontra seu espaço. “O negro vem a ser, por isso, apesar de todas as vicissitudes que enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os índios, mais singulariza o nosso povo.” (RIBEIRO, 1995, p. 223). Ressalta-se como um dos pontos mais graves, que ajuda a transformar uma questão que não é de todo racial em mais racial do que devera ser, é o do racismo do negro quanto ao próprio negro: aquele que galgou postos até uma posição privilegiada tende a considerar os outros negros preguiçosos e a pensar seus suplícios como merecidos, dada a vida que levam, em clara continuidade da “síndrome de capataz”; não só isso, mas seu ideal de beleza, contaminado pela mídia, é o do “homem branco”; não são raros os negros exitosos a casarem-se com alvas loiras, sem nem ao menos refletirem sobre sua escolha. Mas este é um tema polêmico: Freyre insistirá no exemplo oposto, o do branco que, se não fosse com negra, não seria com ninguém (embora casar fosse uma outra história)… De qualquer maneira, resta acrescer que esse fenômeno do negro que age contra seus pares é batizado por Ribeiro como “racismo assimilacionista”.

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Parece que lidamos com Heisenberg aqui: ganha-se em precisão etnográfica, perde-se em força argumentativa (com o mais meticuloso Darcy, em relação a Freyre). O ideal é enxergar as coisas do seguinte modo: ambas as obras (“Casa-grande & Senzala” e “O Povo Brasileiro”), resultados de pesquisas ambiciosas e que deixam um forte cheiro de “construção da consciência nacional” no ar, são antes complementares que antitéticas, pois cada uma a seu modo jamais nega os postulados que tornaram a outra possível, mas como que os ressalta de ângulos díspares – só não devemos negar, numa consideração sem rodeios, que “Casa-grande & Senzala”, por ora (e do futuro não façamos prognósticos), permaneça a mais clássica entre elas.

Poderíamos ser acusados, ao levar em conta dois autores que se aproximam em suas concepções e não adentrar com esmero em outras bibliografias, de “conciliacionistas em demasia”? Certamente disso nos acusarão, mas contra isso não há remédio! Além disso, seria melhor do que, em tempos de pós-modernidade (ainda?), ser tachado de fragmentário ou atomista, afinal a análise de grupos sociais ou do maior grupo social possível na escala terráquea (a de um povo ou nação) demanda que pensemos dalguma forma num coletivo. Como se pode ver, talvez o resultado final do trabalho tenha sido até diferente do título proposto, mas decidi mantê-lo para que se testemunhe com transparência o quanto é “difícil” falar do assunto; mas também o quanto o tema é dinâmico e o quanto foi proveitoso e inesperado chegar a essa conclusão de que os movimentos de inclusão das minorias e a minoração do racismo e das desigualdades sociais de todo e qualquer tipo precisam ser repensados em uma ótica que os integre entre si, ao invés de construírem-se o tempo todo trincheiras entre “desfavorecidos que são mais iguais que outros desfavorecidos” (ao que parece!) e enfraquecer a luta. Uma elite “áspera” e esperta como a brasileira tem muito mais meios de coibir movimentos populares se eles se (des)articulam dessa forma fraturada. E o fazem às vezes inconscientemente. E a base da pirâmide age de modo “elitista” (ideologicamente), o mais das vezes sem se aperceber, pois a inclusão na sociedade de consumo tornou-se a meta hegemônica. As classes médias querem se elitizar; as classes baixas querem se aburguesar; as classes famélicas não anseiam por outra coisa senão ascender ao poder de barganhar pequenos itens de consumo que possibilitem o dia do amanhã. E a elite, óbvio, quer as coisas como estão, em que pese o mundo sempre mudar. O Brasil muito mudou, mas a classe dirigente soube se manter na crista da onda, até agora.

P.S.: Gostaria ainda que no curso houvesse um tiquinho de Raymundo Faoro, pois já há um tempo me recomendam a leitura de “Os Donos do Poder”, que parece ser uma excelente pedida para complementar as coisas que vim listando aqui, principalmente no que concerne à nossa inacreditavelmente persistente “elite dos muito poucos”, tão peculiar se comparada às de outros países, inclusive vizinhos, a ponto de Gilberto Freyre declarar que mais parecemos uma “Rússia brasileira” que uma Argentina; elite essa acometida ora ou outra por manias de perseguição e paranóias caricatas, se não fossem trágicas, capazes de fazerem aflorar velhos dogmas improfícuos como “a limpeza da mendicância ou das favelas via força policialesca”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal; apresentação de Fernando Henrique Cardoso. 51.ed. rev. São Paulo: Global, 2006.

MORICONI, Ítalo. Um estadista sensitivo. A noção de formação e o papel literário em Minha formação, de Joaquim Nabuco. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº 46, Junho, 2001.

PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: PÉCAUT, D. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

PEIRANO, Mariza. Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; RUBEN, Guilhermo Raul (Orgs.). Estilos de antropologia. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

VENTURA, Roberto. Civilização nos trópicos? In: VENTURA, R. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

1 Por isso, optamos pelo vocábulo “marca” no título deste trabalho, ao invés de simplesmente empregar “posição”, que é algo menos ambíguo, não dá margens para que elaboremos raciocínios sobre novas hipóteses, pois haverá uníssono entre os autores quanto à pouca mobilidade do negro (não vamos esquecer que temos uma divisão entre alforriados e não-alforriados) dentro do sistema produtivo da Colônia, embora, como ressalta Oliveira Vianna, não tenhamos vivido em um sistema de castas (1922b, apud Medeiros 1978, apud PÉCAUT, 1990, p. 47). O que nos interessa diz muito mais respeito à reverberação a longo prazo do capital cultural (que seria desarrolhado ou compreendido de maneira palpável somente depois, e de forma gradual, se bem que contando com interrupções e retrocessos, no contexto de uma sociedade de classes mais esclarecida) dessa população negra do que ao status quo usufruído por ela àquele tempo (apesar disso também estar contemplado na dissertação). Não é outro o motivo do uso de “desde o” no título em detrimento de “no sistema colonial”, pois Freyre e Ribeiro introjetam muitos elementos novos na análise, observadores contemporâneos (ou quase-contemporâneos) que são. Óbvio que trataremos tanto do liberto quanto do fugido e do escravo “regular”, o tanto quanto nossas evidentes limitações de tempo e de material bibliográfico permitirem!

2 Infelizmente não disponho de uma rede em casa, que seria o “melhor instrumento” para cumprir esses desígnios, mas a ver como procederemos!

3 Não podemos deixar de lembrar a fundação da nossa Universidade de Brasília, em meio a esse seu “vendaval da vida”, como o próprio Darcy gostava de se expressar.

4 Já a obra-mor de Darcy Ribeiro é tripartida e meticulosamente isonômica; isto é, de cerca de 400 páginas, detectei aproximadamente 110 dedicadas ao negro, mas, como explicado com referência a G. Freyre, esse didatismo de isolar uma dada raça das duas outras é apenas um exercício forçado. Fato é que Darcy Ribeiro tentou contemplar as matrizes sem manifestar preferências, pelo menos em quantidade de texto: quanto a o quê diz efetivamente sobre a relevância de cada raça na composição da identidade do brasileiro, cabe a nós analisar no trabalho que segue se ele chegou a algum tipo de preferência ou não.

5 A propósito do qual, é útil evocar o artigo “Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia” (PEIRANO, 1995). Embora a autora se refira ao sentimento da intelligentsia nacional, de desterro no plano das idéias, a dificuldade de encaixe e de encontrar destinatários para suas mensagens, podemos dilatar temporariamente essa noção para a gente simples, a fim de exemplificar a estranheza, o vazio e a sensação angustiante de não-pertencimento a um dado meio social, situação que perdurou talvez alguns séculos para alguns tipos de neobrasileiros. Mas é importante ressaltar o quanto há subcategorias diferenciadas: o negro foi forçado a viver aqui; o português tinha mais autonomia em sua escolha, se separava de sua terra e era, em tese, quem definiria o modus vivendi da colônia, em toda sua lusitanidade; o índio, apesar de não evadir o Brasil (o que era afinal, o Brasil, antes do Brasil?), era quase infalivelmente arrancado de seu território original e tinha que lidar com o fato de que seu mundo jamais seria o mesmo depois do invasor, e assim por diante.

6 Será que ao invés de depravados, os bailes funk não são uma forma de expressão, de catarse, enfim, de satisfação das pulsões do ser humano, sem que elas precisem ser canalizadas em algo diferente e socialmente mais prejudicial, como a violência?

7 Sorokin não acharia melhor laboratório para verificação e estudo de sua teoria de mobilidade do que entre esse povo cujo passado étnico e social não acusa predomínio exclusivo ou absoluto de nenhum elemento, mas contemporizações e interpenetrações sucessivas.” (FREYRE, 2006, p. 295). E ainda: “No Brasil ainda mais do que em Portugal, não há meio mais incerto e precário de identificação de origem social do que o nome de família.” (ibid., p. 540).

8 Encontrado tanto na grafia “Viana” quanto como “Vianna” nas passagens a que tive acesso.

9 Como assevera o próprio Freyre à página 352, encerrando o capítulo que dedica ao colonizador português, “o índio ficou logo no segundo plano”, referindo-se ao apogeu do ciclo da cana.

10 O que Darcy Ribeiro nega veementemente: “Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão-de-obra indígena” (2005, pp. 98-9). O que aconteceu foi que o tráfico ultramarino se tornou uma atividade ‘n’ vezes mais lucrativa.

11 “Foi preciso substituí-lo [ao índio como mão-de-obra] pela energia moça, tesa, vigorosa do negro, este um verdadeiro contraste com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade.” (FREYRE, 2006, p. 229).

12 Será que mais inclinadas ao sexo, por isso?

13 O êxito dessas empreitadas chamadas bandeiras ou monções (quando seguiam pelo curso dos rios) foi inquestionável, a ponto de ter iniciado a povoação dos países de colonização hispânica na costa oeste do continente americano: “Outros mamelucos foram os que abriram o que é hoje o território argentino, uruguaio e paraguaio. Muitos deles podem ser vistos em Buenos Aires, onde são tratados por cabecitas negras e malvistos pelos milhões de gringos que os sucederam. Todos ignoram, na Argentina, que o país foi realmente conquistado, organizado e conduzido à independência por cerca de 800 mil mamelucos.” (RIBEIRO, 2005, p. 110 [grifo do autor]). Atribui-se, nesta obra, o papel de protagonistas da formação brasileira a tais elementos sociais.

14 Há uma representação, em gravura e estilizada, porém fidedigna, de tal engenho em quase todas as edições de “Casa-grande & senzala”, logo antes do índice. Este foi um terreno visitado pelo autor.

15 Mas eis que esse assunto ainda não morreu e necessitamos de novo desse espaço marginal. Gostaria aqui de destrinchar o mito da “felicidade em si” do negro, perpetuado pelo próprio Gilberto Freyre. A eventual afirmação de que os negros africanos tinham uma vida “melhor”, eram mais bem-tratados, do que os proletários dos séculos XVIII e XIX inglês, que partiu do meu professor de História Econômica Geral e que foi minha motivação mais antiga para fazer um trabalho parecido com o que estou redigindo agora é para mim, finalmente, ponto pacífico. Isso porque não devemos incorrer no grave erro de tentar estabelecer um absoluto da felicidade. Essa eterna controvérsia entre os autores, eu não posso nem quero findar: contrasta-se a “introversão do índio” e a “extroversão do afro”, em Freyre (e Darcy dirá, talvez poética, talvez alegórica, talvez honesta, talvez tragicamente, que o brasileiro é o mais alegre, porque o mais sofrido dos povos, e nisso reside sua identificação com seus pares). Perde-se de vista que tal percepção é relacional. Sendo assim, haveria de se analisar por que o branco (erudito, academicista – ou Freyre não se situando nesta cultura, de uma perspectiva negra ou indígena, o que aliás explicaria essa distorção, senso comum o preconceito de dicotomizar e absolutizar duas raças em duas essências) acaso pensa no americano como introspectivo e no africano como “espontâneo e efusivo” – não estaria num ethos intermediário? O índio poderia até conceber o inverso, já o africano, da tribo ou nação ‘x’, poderia dizer que acha o europeu o rei da eloqüência, seguido pelo índio, e depois por si. Em suma, trata-se de reconhecer a assimetria interna entre os capítulos desta obra. Pecado do qual Ribeiro não escapou de todo, em livro irregular repleto de vaivéns.

16 O que atesta o culto do deus Ogum, nada mais nada menos que “a divindade da metalurgia”.

17 Um tanto mais seletiva no caso da antropofagia literal dos nossos índios, lembrariam Freyre e Ribeiro; ainda mais tendo em vista o contraste com as “fornicações para lá de casuais” entre lusos e outras raças, que iam indianizando e empretecendo o colono europeu, por mais que ele assim não o quisesse.

18 E para atestar, afinal, o quanto é imprescindível considerar que o problema do racismo no Brasil não é o mais importante, coroa este pensamento a citação da Introdução de “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro (p. 23): “O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais”. Ninguém – nenhum dos autores – nega que existe um problema racial no país, que no entanto é mal-enxergado, deturpado, pelas mais variadas razões, desde que nos entendemos por nação. Portanto, muitos dos que se propunham a colaborar na resolução do problema recaíram em incoerências, das quais Freyre e Ribeiro buscam escapar. Daí, particularmente neste segundo, até para evitar críticas semelhantes às direcionadas ao primeiro, notar-se um esforço de contorno de posições muito estereotipadoras através da ênfase nos híbridos, ou seja, na descrição dos gentios resultantes da mistura das raças…

19 Em certo aspecto, dada a noção de “brasilidade” de RIBEIRO, trata-se de um retrocesso a forma como o movimento negro e outras minorias vêm se encastelando na luta por maior isonomia no cumprimento dos direitos civis da nossa Carta, como que perdendo o diálogo com a carne da própria carne, talvez reacendendo ou se auto-conjeturando (ficcionalizando) atavismos que não teriam a menor razão de ser. Não negamos que, devido a uma cadeia de questões históricas, essa “luta de classes hiper-atomizada” tem um papel, é justificável e pode ser entendida como “uma etapa necessária” do desenvolvimento humano como correntemente transcorre, mas não pretendemos entrar nesse mérito aqui.

20 E, inevitavelmente, ocorre uma depreciação do branco, do tipo português, europeu, civilizado. Decerto inevitável. Levando-se em conta o grande handicap dos outros dois troncos, e que a História até hoje foi branca, posto que a única com documentos escritos, de que só jesuítas (que a bem da verdade nos ajudaram muito em escritos críticos, sinceros e devotados) e funcionários administrativos, praticamente, participavam; e levando-se em conta que a perspectiva dos acontecimentos precisava de uma correção ou de contraposições, que “estávamos em débito”, nós, da cultura letrada, com o mundo e as coisas, para não dizer “com o Outro” e com nós mesmos – dizia eu, levando-se tudo isso em conta, isso não é defeito, mas mérito do livro.

Norbert Elias, Michel Foucault, W.F. Hegel, R. Barthes e o que eles disseram que pode explicar a intelectualidade brasileira em formação

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Sociologia Brasileira

Semestre: 1/2010

Professora: Mariza Velozo

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Estudo Dirigido – Módulo Teórico

Data: 23/06/10 (revisado em 13/07/20)

QUESTÕES 1 E 2

Ao desenvolver a 1ª resposta, descobri que já havia pensado no problema da formação da consciência brasileira ao me deparar com a construção da identidade alemã, portanto esta é uma resposta para as duas primeiras perguntas.

Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, narra a evolução da moral e do sentimento de “civilização”, auto-proclamado, de um povo, no caso, nós mesmos, mas obviamente em um recorte de alguns poucos séculos na transição da Idade Média para a Idade Moderna em alguns solos europeus (Inglaterra – secundariamente –, França e Alemanha, esta última ainda em franca formação – e ver-se-á que este ‘franca’ não foi utilizado aqui à toa!). Descreve, através de uma vasta coleção de casos e uma esmerada pesquisa documental: 1) a interiorização de normas de etiqueta pelas elites emergentes que queriam se distinguir da velha aristocracia e da massa plebéia das cidades e dos campos; 2) a ascensão (e talvez gênese, no senso moderno) da vergonha e do vexame como disposição costumeira em um contexto seguro; 3) e a redução da violência e da exposição ao perigo. Não há valoração positiva ou negativa nessas constatações de mudança, pois o autor não cansa de reiterar que as vantagens e desvantagens das metamorfoses culturais ao longo dos séculos se equivalem.

É inevitável que Elias, em que pese sua fortíssima verve literária e sua prosa gostosa e aconchegante, utilize termos específicos para designar idéias mais amplas em um curto espaço, expediente freqüente no livro: sociogênese e psicogênese são duas delas, e estão na boca de muitos sociólogos de hoje. Nada mais são estas que a conceituação do que foi dito acima, quer seja, a observação da origem, do nascimento, do parto ou da genealogia das idéias e práticas, desde o âmbito estatal até a esfera mais privada, sem que se recaia na ilusão da não-recursividade das estruturas dos eventos na História ou na hipérbole dos padrões de recorrência que explanariam todas as singularidades, porque o socialmente palpável e relevante sobre os quais se pode discursar se encontram entre um e outro desses dois extremos.

Elias investe na distinção entre as idéias francesa e alemã de civilização. Apesar de parecer algo trivial, ambas as perspectivas são tão divergentes e a língua alemã é tão peculiar que seu Zivilisation não seria esse termo imediatamente mais próximo, o sinônimo mais adequado, da denotação francesa. O que é fundamental entre o povo tedesco para compreender sua percepção de superioridade e de nobreza em relação a outras etnias é a Kultur. A partir da Kultur se pode falar da intelligentsia alemã, como por exemplo o jovem Marx fez em “A Ideologia Alemã”. Enquanto “civilização”, conforme a entendemos, do verbete latino, parece nos remeter a populações espalhadas por todo o globo, a uma espécie de sentimento genérico de pertencimento a algo abstrato e inefável que no entanto encontra validade em quase todos os cantos onde já tenha pisado o homem branco europeu, o conceito Kultur é sui generis. Evoca um estado menos fluido e mais estacionário, ligado à identidade de um dos países mais novos do mapa europeu (e aí, então, pode-se traçar um paralelo com o Brasil). Essa análise lingüística é um exemplo do método de sociogênese de Elias. Não só o nascimento e o advento em larga escala de algumas expressões interessam ao autor como a interrupção e/ou a retomada (após longo intervalo) de seu uso, pois a amnésia da gênese de alguma coisa pode relatar muito do que está incrustado no imaginário coletivo, e por que essa informação trafega misteriosamente entre as raias do consciente e do inconsciente.

Os estratos médios, na tentativa de assimilação dos costumes cortesãos (e, na verdade, diante de uma inevitável passagem gradual de bastão das mãos dos aristocratas territorialistas para a dos profissionais liberais, os cortesãos também precisavam assimilar os novos ingressantes, ou seja, havia uma troca de influências que tornava a côrte mais plebéia e os cidadãos “mundanos” mais “sangue-azul”), se adestravam ou se recalcavam em vários gestos, falas e posturas. Essa noção psicológica da “mulher de César” (mais importante do que ser é parecer; ou: ainda que se seja, é necessário fazer-se acreditável) sempre foi muito bem entendida pelos franceses, e sua Literatura tão precocemente sofisticada é a prova viva disso. Então, era necessário aprender a jogar o jogo, suavizar-se, desbarbarizar-se, para angariar vantagens sociais. Os franceses foram mestres dos alemães, nesse quesito. Mas estes últimos nunca “aprenderam direito”, se posso me expressar assim, pois o incômodo entre essa vida pública forçosa e a espontaneidade da vida privada do teutônico, mais rude, sempre foi pungente para si. (Sem embargo, apesar da opinião de um povo, necessário que se diga: nem por isso o menos afetado e pomposo é mais sincero – novamente o lembrete de Elias de que perde-se em algo para ganhar em outro algo, ou seja, toda mudança cultural é uma espada de dois gumes. Ora, é útil esquecer que se agia assim e assim e passou-se, convenientemente, a agir desse modo mais atual, de maneira que a amnésia é desejável. Os alemães se esqueceram que sabem mentir; e muitos cortesãos franceses talvez não se dessem conta que todos os seus trejeitos não passavam de uma modalidade de honestidade.) Para se ter idéia de a que ponto chegou essa plasmação, se falava mais o francês do que o alemão nesses estratos mais ambiciosos e progressistas da Alemanha! Por isso o conceito de Kultur exala um certo olor de soberba no ar, a ouvidos “mais delicados”: o pós-hegelianismo que Marx retrata tão caricatamente já pertence a uma fase posterior, em que os jovens, de nacionalismo exacerbado, finalmente se orgulham do seu falar, da sua filosofia praticada com todos os ingredientes da terra natal.

Imagine-se o brasiliano, este filho de colonizadores portugueses que nasceu no Brasil e se habituou a uma vida tropical, mas que, tendo de residir em algum centro importante, como Petrópolis, tenha de macaquear os modos da família real e sua gente mais chegada, a fim de ser bem-visto ou de um dia fazer parte do “time”. Pode ter sido um exemplo grosseiro, mas é óbvia a razão de estudarmos Elias no curso de Sociologia Brasileira!

Importante ressaltar que, se há implicações políticas muito fortes da Kultur, ela só foi consolidada graças a esse treinamento doloroso e insistente da classe burguesa alemã que gostaria de copiar moralmente aqueles que realmente mandavam no continente, ingleses e franceses, sendo seu projeto político e facetas tão conhecidos por nós como a Lebensraum, essa sede de expansionismo físico do império germânico, uma decorrência de metamorfoses culturais profundas que se faziam necessárias. É, inclusive, a mesma proposição de Schwarz para o Brasil e a Rússia de determinadas épocas: longe de poderem modificar seus modos produtivos porém ideologicamente informados dos modos de produção dos países de primeiro ,undo, essas duas Literaturas atingiram um posto privilegiado, como parece notável nas figuras de Machado de Assis e Dostoievsky; de Goethe, Heine, Kant e Hegel, no caso da Europa central e desta obra de Norbert Elias. Em que pese Rouanet refutar Schwarz, ele ecoa esse discurso quando diz que hoje a Europa representa o papel mundial um dia exercido pela Alemanha no contexto europeu, quer seja, nós, os periféricos, é que recebemos suas idéias, um substrato para concretizar uma História nova (a diferença é que para Schwarz a Literatura, a Ideologia, já eram a História sendo feita), em detrimento do Velho Continente, que está fatigado demais para isso. (Vide a escola pós-estruturalista francesa, que exportou inúmeros sistemas de crítica, às vezes autofágicos, nos “contaminando” com fenômenos antes exclusivamente europeus, como o niilismo, mas nada muito além disso. Ou seja, navega-se sem grandes meta-narrativas que proponham uma solução ético-estética.)

QUESTÃO 3

Gosto muito do fim do livro de Foucault “A Ordem do Discurso”, e como o início já foi bastante falado em sala, talvez seja esse, o retroativo, um bom caminho para desenrolar minha resposta (o engraçado é que iremos de novo a Hegel): “toda a nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer há pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano § Mas escapar realmente [itálico meu] de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar” (pp. 72-3). Nessa passagem e pouco mais adiante, Michel Foucault não exagera a respeito de um consenso que vejo na análise da Filosofia ocidental (ou pelo menos na chamada Filosofia continental), esta que está, a meu ver, como pano-de-fundo de toda a Sociologia construída: o sistema de Hegel é uma espécie de ápice da coerência, pois a “Fenomenologia do Espírito” é uma obra que se sucede a várias tentativas racionalizantes de filósofos pregressos e que parece – tem pelo menos uma aura de – definitiva, um marco, sem dúvida, da teoria do conhecimento, da História como disciplina e das estruturas. E exatamente por isso, às vezes nós, seus sucedâneos, temos dificuldade de lidar com as coisas como ficaram postas “do lado de cá”, e tentar a antítese ou a superação destes postulados mostra-se uma tarefa hercúlea, ainda mais tendo em vista que estamos diante do “mestre da dialética”, de quem Marx bebeu para chegar aonde chegou como um cânone de nosso curso; e mesmo sua operacionalização do Espírito de modo a que viesse a ser mundo/concretude/materialismo, mais fluido e hiper-empírico, é, como acaba de relatar Foucault, passível de ser vista ainda como uma continuação natural, ou “embutida já”, no trabalho de Hegel.

Por que tive necessidade de um preâmbulo inusitado que começa pelo desfecho de um livro sobre o discurso? Estamos falando ainda, aqui, como nas questões 1 e 2, da gênese de alguma coisa, do mistério dessa organização das idéias, como sujeitos que aparecem no mundo quando ele “já está completo”; e isso não é contra-senso algum, pois somos o mundo, estamos em perpétuo vir-a-ser, mas do ângulo da “necessidade ou não de um novo ser”, no presente, podemos nos dizer completos, somos esta obra, o mundo é nosso espelho; a consideração de um ser é inclusive meramente didática. Com todo o arcabouço que nos é fornecido quando nascemos, e com o que deixamos após nossa passagem, Foucault se pergunta: afinal, estamos começando um discurso? Reiterando uma fala ancestral? Nem um nem outro?! Sempre Cila ou Caribde e a obrigatoriedade de evitar os extremos… Epistemologicamente, ao mesmo tempo que toda situação é nova e todo discurso inédito, ele é um reflexo, uma recorrência, quem fala não somos nós, mas as coisas nos utilizam como porta-vozes. O que nasce, brota, emerge de algo já dado, não possui uma essência, mas pode-se dizer, para fins pedagógicos, que a essência do objeto que acaba de emergir já estava contida, seu germe situado, nas coisas pregressas, e assim ad infinitum. É por conter em nós agora todo o substrato do “ser-que-ainda-não-está”, desse faltante desconhecido, que podemos dizer: sim, somos completos!

Mas me dedicando mais ao discurso, o que está em questão nesse seminário de boas-vindas à universidade para a qual o autor foi chamado é que o monopólio desse discurso, todos os rituais que precisam ser cumpridos e as coerções que são irreparavelmente levadas a cabo, não se encontra em alguma instância central, não é ou não precisa ser sempre voluntário, mas subjaz em cada apresentação/re-apresentação de um sujeito falante. Em que pese, por exemplo, essa sua palestra ser algo transgressor, uma criação, espontânea até, assim que é emitida ela se torna já parte do poder regulador, uma arena que – é sua natureza fazê-lo – exclui, pela simples omissão, elimina mesmo, o que foi dito antes, e age sobre o que será dito depois, está situada na História, contra a História, rompendo com a História, mas deve isso a ela; a História é um compilado virtualmente inesgotável de discursos como esse que se justapõem.

Então como, pois, um livro que é um discurso como qualquer outro, “A Fenomenologia do Espírito”, supracitado, pode adquirir ares, como deixa transpassar Foucault em seu também discurso, de imbatível, ter a petulância de se imiscuir de repente entre as coisas do mundo e reivindicar um direito à perenidade, acima das outras? Não é essa uma divinização do indivíduo-no-mundo Hegel, ele também tiranizado-monopolizado, tirano-monopolizador de inúmeros outros discursos dentro de uma Alemanha insípida ou exuberantemente acadêmica (a depender do ponto de vista) dos séculos XVIII e XIX, esta por sua vez dentro de um sistema-mundo de complexidade indizível? A ponto de se dizer que a crítica ao seu Idealismo é apenas uma extensão proto-pensada ou latente do Seu Idealismo, assim, com letras grandes? É esse episódio, esse evento, que muito assusta teóricos do século XX, ainda. E posso utilizá-lo como ícone para o poder do discurso, e acreditar, com Foucault, que ele não é imbatível, ou recairíamos na asserção “depois de Homero (ou da Bíblia, da sabedoria de Salomão, etc.) nenhum livro precisava ser escrito”, “toda música é repetição e exploração da genialidade contida nos Beatles (ou Bach, ou Beethoven)”; ou viveríamos como o eu-lírico de Jorge Luis Borges (cf. Santiago), sempre à sombra do Dom Quixote, reprodutor mas nulo… Frases e neuroses do nosso cotidiano que, por mais que sejam tomadas como verdadeiras, não descaracterizam o que está-aí: foram escritos livros depois de Homero e há uma imensidão de outras músicas; portanto, ainda que procedesse o argumento da auto-suficiência, da completude do ser a dado ponto, o devir não “perdoa” e segue infatigável… Outra coisa não se denota da proposta de Foucault no meio de seu “A Ordem do Discurso”, ao exigir um “materialismo do incorpóreo” dentro de uma “filosofia do acontecimento”, um claro revide ao título imponente Fenomenologia do Espírito.

Ora, e cabe aqui, ainda, acrescentar: “a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?” (itálico do autor). Tal aforismo advém de Roland Barthes, quem nunca li diretamente, portanto não posso dizer o livro, mas o retirei de “Filosofando”, em apêndice de um dos capítulos, página 323, livro didático de Maria Aranha e Maria Martins que eu e muitos da minha geração usaram por vários anos na escola. Lembrei-me instantaneamente dessa passagem que já havia destacado anos antes ao falar de Hegel neste momento. Porque não feriria o autor se chamasse sua filosofia de a expressão da redundância, bem como a filosofia de Nietzsche. E esta frase é perfeita para continuar a idéia da auto-suficiência… Elas, as redundâncias, bastam a elas próprias, mas o mundo, que pode ser também uma grande redundância, é sentido historicamente, diacronicamente, então a redundância está sempre em deslocamento. Mas a própria idéia de uma redundância em deslocamento não será entendida igual hoje e amanhã, num século ou no outro, por isso a riqueza de interpretações é – com o perdão do trocadilho – fenomenal! Pouco importa, neste caso, se se assumir Nietzsche como posfácio banal de Hegel ou o inverso, e Marx ali como um elo perdido, ou nenhum dos dois, porque cada posicionamento, inclusive, traz muito de um ranço de época. Importante é saber que as operações lógicas, depois de “mais um fim”, sempre se reiniciam… E ainda que se lance mão do recurso “a lógica que paira sobre todas as lógicas”, vê-se-a de dentro, portanto o Um jamais será Um, embora sempre se possa usar o expediente da palavra e do conceito, que uniformizam, homogeneízam.

Talvez tenha faltado apenas um pouco de consideração – embora pense que já foi cumprida, me desculpe se tácita ou encoberta pela questão alemã – sobre o desinteresse e sua importância, em Foucault e outros: uma cátedra universitária jamais estará ali pelo discurso em si; o discurso-pelo-discurso é uma coisa que não existe; a Alemanha hegeliana, tida como a apoteose da Teoria, era bastante prática – o que seria toda a volição de explicar o Todo, superar o atraso teutônico e afirmar-se como cultura soberana sem o poder por trás de, em, sendo cada palavra? Portanto a intelligentsia pura não existe, embora se chame a maioria de “péssimos políticos”, quando intentam consciente e formalmente essa missão.

QUESTÃO 4

Devido à absoluta impossibilidade de separar as coisas, por achar que uma estava inexoravelmente ligada à outra, optei por juntar os itens “a” a “d” no que segue:

Sobre a questão colonial, em direta relação com essa indefinição do “lugar das idéias” e da posição a se tomar, de onde aparecem os discursos assumidos pelos intelectuais e para quem eles têm ressonância, adianta-se a questão das três principais matrizes étnicas do povo brasileiro (bem caracterizadas no último livro de Darcy Ribeiro): brancos, índios e negros – uns espoliados, dizimados, catequizados; outros escravizados; aqueles inevitavelmente transformados, rearranjados, reinventados em uma nova terra. Claro que as tensões raciais devido ao histórico de opressão e miséria da raça negra vão complicar ainda mais esse quadro de indefinição, com uma cornucópia de autores de uma mesma geração sem chegar a uníssono algum, chegando-se ao cúmulo de alguns liberais defenderem a propriedade de humanos (isto é, humanos de acordo com a teoria liberal estrangeira; sub-homens para nós, nesta abrasileiração esdrúxula) e de um império diretamente descendente do português ter de efetuar a transição do Brasil-Colônia ao Brasil-soberano, afora muitas outras polêmicas.

Na aula de hoje, quarta-feira, 23 de junho, a professora Mariza nos relatou, por exemplo, que os dois primeiros responsáveis por compilar uma história do Brasil no século XIX eram autores estrangeiros. Um dos autores desta unidade introdutória, cujo nome irei logo resgatar um pouco mais abaixo, chama o período imperial de “auge da liberdade de imprensa”, fase que jamais se repetirá: já que livros eram artigos raríssimos, quem tivesse meios que os escrevesse, pois ninguém o censuraria! O paraíso? Talvez, mas o motivo era desalentador para aqueles com alguma ambição intelectual e desejo de colher os louros da fama: não seriam combatidos, não seriam citados nem defendidos, simplesmente pelo fato de que não eram lidos, a não ser por seus exíguos pares!

Não serão poucos os que defenderão uma sociologia principiada do zero no Brasil. Quando muito, autores clássicos deveriam ser lidos apenas para serem filtrados no que interessasse aos trópicos e à estrutura da sociedade tupiniquim. Florestan Fernandes desejava com afinco uma sociologia nacional, e nos anos 60 vemos Roberto Cardoso de Oliveira formular o conceito de “fricção interétnica” para tentar tipificar como sui generis as relações raciais no país, impossíveis de ser explicadas por modelos importados de fora. Porém, e demonstra Rouanet muito bem, como citei na segunda questão, recai-se assim, ao se fechar ao exterior, num paradoxo, que é pensar-se à maneira européia para não-ser-europeu, até porque inventariar as componentes de uma nova nação, idealizar um Estado, é uma atitude completamente ligada às Luzes e à consciência nacional dos séculos XVIII e XIX da Europa! Um problema correlato se verifica na Índia, outro país de terceiro mundo que aparece para nós na mídia como tentando se modernizar e capitalizar e “formular sua identidade”, mas que possui uma organização interna que bate de frente com nosso modelo. Sequer pode-se chamar a Índia de país, olhando-se de dentro; as castas não coadunam com o humanismo deste início de milênio. Ainda assim, a única forma de nativos terem voz no palco do Ocidente é ocidentalizando-se um pouco, chegando à formalidade do grau de mestres e doutores nas sociologia e antropologia ocidentais. Sendo assim, o que esses têm para contar acerca de brâmanes e chandalas, e o que a intelligentsia brasileira primitiva tem para dissecar, é carregado de mal-entendidos e unilateralismos (PEIRANO).

Através de uma análise histórica da noção de Estado-nação, Anderson mostra a pedra no sapato dos movimentos marxistas e das Internacionais, que sempre buscavam uma superação do problema das fronteiras e etnias em prol de um só e mesmo ideal, encerrar a exploração do trabalhador. Quando guerras entre aliados políticos – em tese – são travadas por motivos territoriais ou raciais, algo não anda na ordem das coisas, principalmente para os comunistas que desejavam o desaparecimento ulterior do Estado e das diferenças de classe. A União Soviética possuía tal pressuposto no título e na gênese de sua promulgação; por isso, logo entrou em choque com a anciã China, país de tradições milenares que queria ter o seu socialismo. Sei que ainda não chegamos ao Brasil, mas esse prólogo serve para mostrar a ubiqüidade, hoje, no mapa-múndi, dos Estados-nações, de origens muitas vezes totêmicas, religiosas, ou provenientes de uma política comunitária extremamente arcaica (no sentido temporal, exclusivamente). E nós teríamos de ser forçosamente um deles a partir da emancipação de Portugal. Talvez seja este o tema mais explorado em todas as séries da escola básica até estarmos habilitados a chegarmos aqui. A inculcação dos processos que levaram o Brasil a ser o Brasil; é o marco zero, antes do qual não é muito preocupante, a uma criança, não saber muitos detalhes. Sua referência inicial para os estudos é Pedro Álvares Cabral. Aí começa a história de sua família, de fato. Felizmente não precisamos retroceder tanto na análise.

O que era antes um entreposto comercial para o branco e um cativeiro além-mar para o negro africano vai se incorporando, fundindo, com o devir das gerações. A terra passa a ser mais as pessoas. Espocam valores e costumes inevitavelmente diferentes, por questões de clima ou qualquer outra. Os índios, que não são “os índios”, são uma multitude de povos, de nações, se vêem em novas demarcações, rodeados de novas leis de propriedade, uma metamorfose tão abaladora quanto descer em um outro planeta com outras relações humanas, provavelmente. Há ainda o revés provocado no homem branco pelo contato com negros e esses estranhos que aqui já reinavam, isto é, prosavam, porque eles não tinham reis! A música, ritmos africanos, a crença antropofágica indígena, a alimentação nutritiva com base na macaxeira, os casamentos interraciais, a própria Igreja católica edificada nesta terra, talvez mais mansa para uns, mais inquisidora para outros, mas sempre em diálogo com as determinações da metrópole. E todos os órgãos burocráticos que se intensificaram num curto espaço de tempo quando da vinda da família real. Todas as ondas migratórias européias, as novas relações de trabalho, a sucessão dos ciclos econômicos e commodities para exportação, expansão do setor terciário, belicismo para com os vizinhos, concursos para criar bandeira e hino nacionais, sementes do orgulho a ser ejetado para contemplação dos países ricos… Poderia elencar outros parágrafos sem que o material se tornasse mais escasso!

Uma só característica seria o suficiente para especulações intermináveis: o calendário cristão. Contar o tempo a partir de 1500 e comemorar com mega-festas os primeiros 500 anos; sai-se do mito para entrar em um protocolo, em uma parafernália de normatizações compiladas num livro chamado código de leis, semelhante a outros, inspirado, isso é inegável, nas declarações humanistas francesas. As questões mais polêmicas se referem à zona híbrida em que o brasileiro se sente constrangido pelo que vem de fora e, de outra parte, pela expectativa de nossas autoridades quanto à nossa imagem lá fora, se nos acatam, se recebem nosso conteúdo, se o Brasil adquire relevo e reforça sua identidade. Seja Luís Costa Lima chiando porque o brasileiro usa terno e não deveria usar ou, já, Gilberto Freyre relatando a parca dieta dos mais ricos mesmo no período colonial, que se contentavam com frutos em putrefação porque tinham poucas noções culinárias neste mundo transplantado… Os autores desta unidade estão cheios dessas percepções.

Chama atenção a condição de marginalizado do intelectual brasileiro (do intelectual, para Mannheim). “Trapezistas sem redes de proteção” (p. 17), é assim que Peirano define esses primeiros corajosos da inteligência de um país por (se) fazer. Com “a raiva impotente” (p. 4) quase começa Lima. Desde sempre tivemos nossos gauches (no sentido drummondiano, portanto sem itálico), nossos excluídos dos debates de época (o que não significa que não tenham sido valorizados mais tarde), como Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ainda antes da imprensa chegar. Por muito tempo, nossos homens responsáveis por nos compreender foram mais deglutidores de pastiches e simulacros do que propriamente sensatos; talvez não por falta de juízo mas de condições materiais. Os jargões de Direito eram habituais para gerar boa impressão e dificultar a retórica (do oponente não-versado, é claro); a teatralidade e o gestual também mereciam atenção, quase maior que a do conteúdo; o corporativismo sempre foi impiedoso, nauseante, até – que o digam os advogados, jornalistas, sambistas, poetas, sempre defendendo seus próprios colegas sem olhar as razões e defendendo os truísmos da prática pura ou do talento inato para enxotar quem surgisse ameaçadoramente portando características exógenas –; e quantos mais numerosos fossem aqueles estrangeiros de que se apropriasse no discurso (omitindo seus nomes!), mais complicado seria retirá-lo de voga, se é que existia realmente alguma voga de discursos, ou estes eram apenas ecos do que se sucedia longe. A nostalgia e a conclamação hiperbólica da pátria são apontadas, com boa margem de segurança, como características presentes nessas primeiras gerações.

Conforme ensaiado acima, trago aqui o nome de Luís Costa Lima, quem disse que aqui era muito difícil haver público no princípio mas que isso implicava uma impressionante liberdade autoral. No entanto, não é sua voz a das aspas: “nem os governantes nem o povo as liam, e os poetas catequisavam-se (sic) entre si” (José Veríssimo apud Lima, p. 7). A verdade é que ainda hoje há resquícios dessa intelectualidade que não gosta de vestir a camisa da intelectualidade, se acha outras coisas, investe em áreas paralelas; não são poucos os casos de jornalistas nativos que se crêem sociólogos, cientistas políticos que se aventuram a showman e professores que acabam indo parar no parlamento – aliás, a lista de ministros que nenhuma intimidade tinham com a política até serem nomeados é embasbacante. Muito disso tem a ver com a “cordialidade oficializada” (Lima) ou “teoria do favor”, proposta por Schwarz para justificar anomalias que nem diagnósticos de ordem econômica pareciam poder contemplar. Em detrimento da luta dos estratos liberais, como se viu em outros países, por mudanças nas formas de encarar os fatos, aqui esses, desde a escravatura, sustentavam sua liberdade e autonomia nas costas dos senhores de engenho e da casa-grande, mas de um modo tal que também desengessavam estes senhores em muitas atribuições para as quais não estavam qualificados nem dispunham de tempo hábil. Sem que se pudesse dizer, no final das contas, quem era o parasita e quem era o hospedeiro, pois a harmonia do sistema era mantida, com as centenas de milhares de cabeças africanas em permanente reposição pelos navios do tráfico internacional. O legítimo país do “Acordão”. Num país como esse as instituições sempre, na prática, destoam de suas intenções originais, como é o caso da USP e também da UnB, para infelicidade de Darcy Ribeiro, com todo o plano de sua autonomia sendo sacrificado ao tecnicismo e às políticas governamentais mal-feitas que destratam a educação. Há surtos de efervescência cultural – como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros que encabeçam o Modernismo da década de 20 ou a Tropicália nos anos 60 –, seguidos por hiatos de um consentimento tácito dos intelectuais no que tange à performance negligente das autoridades. Ora, todos sabem que em terra onde a intelectualidade for marasmo, reedições do mesmo, sem debates francos, as idéias não podem mesmo vingar, por falta de quem as aperfeiçoe, contraste-as, enfim, dinamize o cenário.

FRASES UNIVERSITÁRIAS (2010)

SOBRE O CURIOSO FENÔMENO FOLK

E um pouco influenciado por esses manifestos modernistas mil…

Quão rasa é uma cultura que se representa em uma só raça, em uma origem única e despida de controvérsias!

E quão precária essa necessidade de auto-afirmar-se sozinho no mundo, como se independesse de relações, não fosse elaborado justamente nelas e por elas! E como se o mundo pudesse ter grande valor ou sentido se não houvesse esse agon, essa eterna discórdia, essa crise identitária!

O folk brasileiro é o próprio brasileiro. Não precisamos idealizar no passado o que já está presente.

Não temos saudade de uma perfeição mítica – olhamos para o horizonte, somos nossa própria dianteira. Sim, acreditamos em nós mesmos, não somos fatalistas!

SEXO

Palavra tão abundante e daquelas que falam do que não existe tanto quanto justiça, igualdade, democracia, revolução, e esse tipo de coisa…

CASA-GRANDE, ALHOS E BUGALHOS – anotações enquanto lia Gilberto Freyre

Majora’s possui bastantes elementos folclóricos!

todo animal [para o brasileiro] é apenas um bicho” – chega aê, bicho!

Onde já se viu não querer ter animais de estimação por medo de se entristecer quando eles morrerem?

A volúpia indígena com o vigor afro (ou seria o inverso?) são uma potente bomba calórica. (?)

Clube do Bolinha: viril até a página 2.

um vício em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.” Eu particularmente sinto um desconforto tremendo na hora da expressão oral em academês.

Torcicolo monstruoso, mas tá valendo a pena…

O internetês lembra o arcaico Português!

É o plantation, tion, é o plantation!…”

furor de Don-juan das senzalas desadorado atrás de negras e molecas.”

Quem não vê Lisboa, não vê coisa boa”

Vá queixar-se ao bispo!”

O Brasil foi como uma carta de paus puxada em um jogo de trunfo em ouros.”

Portugal é por excelência o país europeu do louro transitório ou do meio-louro. Nas regiões mais penetradas de sangue nórdico, muita criança nasce loura e cor-de-rosa como um Menino Jesus flamengo para tornar-se, depois de grande, morena e de cabelo escuro.” Por que o inverso não sucede?

Os orientais e eslavos são todos extremamente parecidos, ou isso se deve a uma ilusão perspectivística de nossa parte?

Gente como a gente – isso para ti é um elogio?

As mulheres até do século XIX se punham mais belas quanto mais gordas ficavam, pelo menos na opinião dos homens de então – e conseqüentemente delas próprias.

Achar todo pé feio – bem coisa de árabe!

Cascão, o Luso

A festa de igreja no Brasil, como em Portugal, é o que pode haver de menos nazareno no sentido detestado por Nietzsche.”

Usar óculos – outra modinha da alma judia!

cristãos-novos = judeus

Índio também devastava e dizimava a terra. Naturebas pragmáticos.

Não há alma que esbanje inteligência sem muita nutrição por carne e leite.

Pois que cortar o cabelo é uma tolice e uma falta de economia!

Por fora muita farofa, por dentro mulambo só” – há o contrário também.

Cuspindo-me abelhas africanas…

São Gonçalo do Amarante,

Casamenteiro das velhas,

Por que não casais as moças?

Que mal vos fizeram elas?”

Dançou-se e namorou-se muito nas igrejas coloniais do Brasil (…) Namorando e tomando sorvete nas igrejas exatamente como 90 anos depois nas confeitarias e nas praias.”

Freud e os resquícios de práticas como “ejaculação na face ou na boca de uma pessoa”. O prazer oral e o prazer das zonas erógenas.

A origem das doceiras: “Não podendo-se entregar em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos. (…) E é curioso o fato de chamar-se ‘dinheiro para comprar bolo’ o que dão certos pais brasileiros aos filhos rapazes, em idade, segundo eles, de ‘conhecer mulher’.”

Byron aprendeu palavrões em Português, a língua mais fecunda para esse “fenômeno”: “sonoros palavrões que nas cartas ao seu amigo, o Rev. Francis Hogson, felizmente não soube escrever direito: carracho, ambra di merdo. Carracho, para D.G. Dalgado – nos seus comentários às cartas de Byron – deve ser ‘caramba’; identificação que não nos parece correta [negrito meu]. Quer nos parecer que o poeta inglês procurasse grafar palavra menos inocente e mais portuguesa do que caramba. (…) A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza. Histórias de frades com freiras. De portugueses com negras. De ingleses impotentes.”

P. 358: médias de idade em que as mulheres sofrem primeira menstruação em diversas localidades geográficas.

O mito da aberração incestuosa. Manga e seu leite…

Eu aumento mas não invento”

Eu aumento, mas não em vento.

Pp. 359-60: autêntico exercício de ervilhas humanóides de Mendel (relatos de homens que casavam com as bisnetas de seus irmãos).

A arte do eufemismo: seu mitomaníaco!

Nas palavras do povo: ‘Não há Wanderley que não beba; Albuquerque que não minta; Cavalcanti que não deva’.”

bonita e mulher, só pretas”

Dos Mendonça Furtado se diz no Norte: ‘não há Mendonça que não tenha Furtado’.”

Ceroulas eram um verdadeiro luxo àquele tempo… E masculinas!

DESCULPAS DO HOMEM MODERNO

Não, isso não é da minha alçada…”

Não é a minha área!”

Coloque no microondas e estará pronta em 10 segundos…

És um homem ou um amálgama? Ou deveria eu dizer, “rato ou amálgama”?

* * *

Ópera, trabalho. Como o trabalho se vulgarizou, desmusicalizou. Da lavadeira ao rato de gabinete.

479 (n. 73): sobre a maconha – “Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música ainda nos ouvidos. Parece, entretanto, que seus efeitos variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo.”

A sifilização brasileira nos trópicos! Sífilis, a avó da AIDS.

a fome de mulher que aos 13 ou 14 anos faz de todo brasileiro um don-juan”

Sócrates era pederasta. Tanto é que “amor socrático” torna-se sinônimo da situação em que o professor se apaixona pela aluna.

Até no caso da bruxaria, reputa-se ao europeu maior “responsabilidade”, diante de credos satanistas importados do continente branco, em detrimento de misticismos dos negros e índios (que, claro, apimentaram ainda mais os rituais, mas isso depois – e hoje temos a Bahia).

P. 406: do “Viagra colonial”

A questão que se nos impõe não é refutar simpatias a priori, por questões de lógica. É verificar sociologicamente qual a porcentagem dessas simpatias de amor que realmente tiveram um bom êxito! Que tal?! Se duas moças fazem simpatias perfeitas, quem decide o desempate? Ou não tem desempate? O coração do mancebo se racha ao meio…

Monteiro Lobato, o grande concentrador das criaturas brasileiras.

É de comer?”

Demorará até certos setores da população entenderem que o racismo não é, no Brasil, um problema de primeira plana. E com “não é”, quer-se dizer: não devera ser, porque realmente nunca foi o dilema-mor. Ele, como protagonista, age mais como “desviador focal”…

Fletcher e Kidder, que estiveram no Brasil no meado do século XIX, atribuem a fala estridente e desagradável das brasileiras ao hábito de falarem sempre aos gritos, dando ordens às escravas.”

488 (155): “No Brasil, entretanto, embora contra a lei, a nobreza quase que imitou o Código de Manu onde se permitia à mulher casar-se até com 8 anos.”

A boca como a das irmãs de Maria Borralheira: boca por onde só saía bosta. Meninos que só conversavam porcaria.”

Com pretas e pretos boçaes, e com os filhinhos destes, vivemos desde que abrimos os olhos; e como poderá ser bôa nossa educação?”

P. 437: A surpreendente e comovente infância de Sílvio Romero (racista!), apegado à sua ama-de-leite (negra!).

O medo consistia principalmente em dizer-se, em voz grossa, ao menino mijão que o Mão de pêlo, o Quibungo ou o Negro Velho havia de comer-lhe ou cortar-lhe a piroca. Medo que se fazia também à criança masturbadora.” – variante: deixar a mão cabeluda se abusar…

452: o “jogo do beliscão”

Aquele mórbido deleite de ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso”

Bons tempos em que fazer gente era ganhar dinheiro…

Eu fui mimado ou fui simplesmente criado feito bicho?

Eu era tão cândido que queria escrever um livro para meus filhos que ainda estavam longe de nascer, mas que eu sabia que viriam, contando como era a vida de seus pais quando jovens…

O brasileiro não é o tipo de pessoa que aceitaria de repente um Jesus negro.

quando é que as leis de proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?”

Tempos e locais em que se chama ao pai de “Sr”.

Vossa Excelência, com todo respeito, é um filho da puta!”

Chifre, mais conhecido como pular a cerca ou “com sacrilego desprezo do sacramento e de tão authorisadas pessoas injuriava o thalamo conjugal”…

É verdade que em assuntos de amor e de mulheres os franceses passam por mais entendidos que os ingleses; como viajantes, porém, os ingleses levam a palma aos franceses em lisura, exatidão e honestidade de narrativa.”

os negros – tantos deles gigantes enormes, mas pirocas de menino pequeno.”

Se por um lado todos nós somos escravos (do sistema produtivo), todos nós somos como os senhores daqueles engenhos: sedentários à vera. Parece que só colhemos o lado ruim de ser um e outro!

louco moção, locomoção, comoção, low commotion

amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa”

Incrivelmente, ainda não li UM sobrenome Araújo OU Aguiar, nessas imensas listagens e citações!

Uma preta quarentona é ainda uma mulher apenas querendo ficar madura; ainda capaz de tentações envolventes.”

O que seu pai faz?” “Meu pai é padre.”

Famílias de padres, netinhos seguindo o ofício! E a castidade…

P. 534: primeiro Aguiar do livro. Sobrinho de padre.

P. 536: “‘Feliz que nem filho de padre’, é comum ouvir-se no Brasil.”

de” (no sobrenome) é inclusive preposição que designa nobreza.

Forrest Gump correndo para cicatrizar a ferida amorosa: o cúmulo da sabedoria.

Bolo” não-raro associado à genitália. Aniversário…

introdução do gelo em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um navio norte-americano, o Madagáscar.”

Eu adoro ler as contracapas dos livros. Até a contracapa do meu livro conterá citações ilustres ressaltando que este é o maior livro já escrito pela humanidade. Aguardai! (DÉJÀ VU)

* * *

UMA COPA DO MUNDO DE INTERVALO – novas impressões, 4 anos depois

O POVO BRASILEIRO – Darcy Ribeiro

monções menções traições

Somos um povo novo feito de povos milenares”

Cifras ribeirinhas…

Projetos que tomam o lugar de outros projetos… No final damos um jeito.

Não deve haver coisa pior – e mais comum! – do que escrever ou pensar que escreveu um livro que, no fundo, não diz nada.

O processo civilizatório/civilizador – confusão Ribeiro-Elias.

Crítica ferrenha aos antropólogos, que cultuam os assuntos mais esdrúxulos e se esquecem apenas daquilo que mais importa!

O Português brasileiro inventou uma nova acepção para o verbete revolução, e na verdade é decreto-Lei que só esse sentido pode ser aplicado em território tupiniquim: contra-revolução.

P. 34: “Não se comia um covarde.” – Hans Staden entre os tupis. Monteiro Lobato não se lembra disso… (adendo 2020)

acato ataco recato

Macambúzio unbóide

Jura, Jurema?

DAQUELA SÉRIE CHAMADA “E SE…”: Não houvesse o continente americano, mas tão-só “o oceano”, como se teriam desenvolvido os outros continentes?

Fetiche quanto ao igualitarismo dos movimentos sociais.

stalinismo jesuítico”

Para que permitir estrangeiros concorrendo às eleições, se nossos políticos são os de alma mais estrangeira que há, menos brasileiros que qualquer cosmopolita nova-iorquino, londrino ou parisiense?

devemos configurar no futuro uma população morena em que cada família, por imperativo genético, terá por vezes, ocasionalmente, uma negrinha retinta ou um branquinho desbotado.” “os brasileiros se tornam capazes de gerar filhos tão variados como variadas são as faces do homem.”

7 A 1: “Os brasileiros todos torcem nas copas do mundo com um sentimento tão profundo como se se tratasse de guerra de nosso povo contra todos os outros povos do mundo. As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas sofridas como vergonhas pessoais.”

LEITURAS RECOMENDADAS

Eisenstein – Printing press as an agent of change (1979, 2 vols.)

[Não é o cineasta: “Eisenstein’s work brought historical method, rigor, and clarity to earlier ideas of Marshall McLuhan and others, about the general social effects of such media transitions.”]

Havelock – Preface to Plato

José Américo de Almeida – A Bagaceira

José Lins do Rego – Menino de Engenho

Lipovetsky – O Império do Efêmero

Octavio Ianni – v á r i a s o b r a s

Roger Bastide – A Psicologia do Cafuné (1941)

Teorias Sociológicas Contemporâneas – “Reader’s Digest”

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Teorias Sociológicas Contemporâneas 1 (135461)

Semestre: 2/2009 [Atualização em 19/12/2019 para publicação em Os Segredos da Mosca]

Professor: Edson Farias

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Avaliação Final

[Comentário atual: Este trabalho é da época do meu curso de Licenciatura; eu estava me formando para dar aulas na escola; notar-se-á um grande enfoque na ‘arte de ser professor’, que eu efetivamente desenvolveria na prática dali a 2 anos, embora por um curto período de tempo, havendo eu decidido, em crise comigo mesmo, reformular meus projetos de vida desde então.]

Questão 01:

Talcott Parsons está contido num contexto norte-americano do fazer-sociológico em que os teóricos e mais abstracionistas sofriam grave repúdio, pois em voga estavam os postulados empíricos e a publicação de tratados com “fatos”, números, dentre outros dados e hermetismos, de um teor “menos especulativo”. Porém essa facilidade com que tais autores se despiam de discussões epistemológicas e da difícil formulação de um sistema teórico e exibiam certo pragmatismo metodológico é denunciada por Parsons como sendo absolutamente ilusória, já que a pesquisa empírica será sempre calcada em pressupostos, em teoria. Não é omiti-la que resolve a questão da verdade e da crítica ao subjetivismo dos sistemáticos. Eximir-se era uma saída um tanto pior. A nota de rodapé 9 na introdução do clássico A Estrutura da Ação Social demonstra o combate encetado por Parsons em meio à tradição americana hegemônica durante as primeiras décadas do século XX: “O mais perigoso e traiçoeiro de todos os teorizantes é aquele que proclama que deixa aos fatos e às cifras que falem por si próprios” (p. 44). Para dar conta dessa grande missão denunciativa, Parsons erige um modelo de síntese que reivindica a superação de dicotomias falhas das ciências sociais, baseado na contribuição de autores pregressos tais quais Durkheim, Pareto, Marshall e Weber (note-se a ausência de Marx do círculo de principais autores na sociologia americana, embora Parsons dedique algumas páginas a contrapor a solução marxiana do problema do Estado frente à de Thomas Hobbes), porém diferindo-se deles em algum grau. O fulcro problemático é: o que deve ser priorizado, a estrutura ou a ação? O livre-arbítrio ou a necessidade? Qual deles ganha a “primazia”, como gosta de dizer Parsons? Obviamente, a questão da racionalidade e do inconsciente, afora outras questões subsidiárias, aí se inscrevem. Parsons também se debaterá detidamente acerca do problema hobbesiano da ordem, o que justificaria a coesão social, de acordo consigo.

Como é de se deduzir pelo título da sua primeira grande obra, Parsons propõe um modelo que busca evitar coisificações como a imobilidade do pensamento estrutural (a unilateralidade causal dos mecanicistas) – o que praticamente anula o peso das escolhas individuais – mas que, em contrapartida, também não caia na cilada dos liberais econômicos e seu axioma auto-contraditório da liberdade irrestrita de escolha (eles promovem uma guerra suicida contra o Estado; necessitam dele mas não podem admiti-lo), que descamba para um anarquismo analítico e uma entropia social, haja vista os diferentes interesses dos atores envolvidos. Ambos os extremos são insuficientes. A ação obedece aos limites de uma tradição e a tradição é criada/recriada pelo conjunto das ações. Essa reciprocidade conceitual está presente em virtualmente qualquer sociólogo ainda hoje estudado, por mais que a ênfase recaia aparentemente mais em um lado do que no outro (a ponto de chamarem Weber de um “teórico da ação social”, ou acusarem Durkheim de superdimensionar a ascendência das instituições sobre os indivíduos na primeira fase de sua sociologia). Nesse quadro, o que torna Parsons peculiar?

A situação é definida pelo autor como o leque de circunstâncias e meios contingentes disponíveis para a ação do ator, que não tem controle sobre os elementos da cena, mas que pode usá-los a seu modo (como meios, visando a um fim específico), em combinações, desde que na margem do possível e do viável para o momento. Como o ator define suas escolhas? Através da “orientação normativa”, um conhecimento prévio, cumulativo, que permite o desenrolar concreto da ação. Isso por si só não garante que a ação será concretizada (que terá seu fim inicialmente proposto atingido), porque o ator pode não ter feito a eleição da norma mais apropriada, dir-se-ia que não está “devidamente encaixado no contexto” (agiu de forma racional, todavia há várias racionalidades e, para determinada circunstância, uma outra era a que funcionava melhor). Parsons excluirá de sua análise o que se passa na cabeça do indivíduo durante a ação, importando apenas o externo, o tangível socialmente. Inclusive ele se refere a um novo tipo de analista social mais acurado que denomina de “psicólogos da personalidade”, estudiosos da psicologia que começam a superar a distinção sujeito/sociedade, aproximando a relação entre indivíduos e coletividades – como um todo – e objeto. Em suma, que exigem a prioridade da relação, não da coisa. O problema da motivação para a ação não é contemplado o suficiente na teoria parsoniana. Em Parsons, isso não transforma os indivíduos em autômatos, uma vez que é apenas uma questão de método: não é necessário estudar as intenções, mas os efeitos. A ação individual existe. A vontade consciente é que é ilusão (cardeal no ser humano, devendo permanecer assim). Ou seja, interessa-lhe o particular descrito objetivamente.

Erving Goffman opta pelo relato de uma multiplicidade de casos comezinhos com enfoque nos desajustados (ou nos aspectos embaraçosos de qualquer vida humana). A agradável leitura desses casos faz com que o autor se torne ele mesmo vítima de um certo “preconceito sociológico”, conforme Giddens, posto que se despe um pouco da excessiva gravidade dos tratados acadêmicos, nutrindo predileção pelo ensaio estético. Talvez por isso seja mais difícil enxergar um sistema goffmaniano, embora possamos juntar as peças, reconhecer influências e compará-lo a Parsons.

É importante perceber o quanto este autor se aproxima do indivíduo e seus dramas psicológicos, inevitavelmente atrelados ao contexto social no qual se inscrevem (quando um sociólogo é “psicólogo demais”, isso também é motivo de desprezo academicista, pois ele recai na pecha de “subjetivista”). O conceito de “fachada” é essencial: longe de atuar de modo unilateral ou constante, simétrico com todos aqueles com quem interage, o indivíduo lança mão, consciente ou inconscientemente, de estratégias diversificadas de modo que represente vários papéis no mesmo dia. “Fachada” porque esse não é o “verdadeiro-eu”, porém a essência não se encontra em lugar ou tempo algum, sendo a condição humana um devir de papéis tão autênticos quanto fantasiosos, de acordo com o prisma assumido. Ora, o ator não pode se despir de todo e qualquer papel social, então ele “se agarra” ao que vivencia no presente como seu verdadeiro-eu; que em seguida é suplantado por um novo papel baseado em sua próxima necessidade imediata. Não subjaz nada : a “mentira social” (para os outros e para si, que “não existem”, pois ambos são constituídos pelas relações entre papéis, não mantendo qualquer definição fixa ou rígida) é a regra do ser. A etnometodologia, paradigma em que está situado Goffman, reconhece nessa transitoriedade o empírico do ser social, se apoiando decisivamente na própria linguagem e nos estudos que se desenvolveram bastante a partir de Saussure para afirmar a “efemeridade dos enunciados” (nem por isso menos enunciativos). Claro que é a recorrência do fenômeno, não-idêntico, em todos os aspectos, a qualquer outro, porém nitidamente estruturado da mesma maneira na realidade (palavra imensamente desgastada pelo seu uso antagônico nas mais diferentes escolas), ciclotímica em seus traços genéricos, que permite ao observador sociológico descrever tais singularidades como regularidades científicas: a Vorstellung, a Warheit, bem como a Sprache, a encenação/apresentação, a verdade, a fala, não são menos “reais” porque assim que o período, a sentença ou a situação são “cortados” (a vida é sempre uma soma de episódios, de interrupções, pois o que está consciente não se converte em inconsciente conscientemente – tem-se como exemplo a consciência do eu de que respira ou sente uma dor em determinado órgão, “desligada” ou “interrompida” sem aviso prévio ou de forma que se possa calculá-la, exatamente como quando um sujeito se põe a dormir) e seguidos por outros passam a um “plano de fundo”, sendo necessária sua re-evocação para sua re-validação. A linguagem são convenções – contudo, se estas nunca fossem levadas a sério (como um jogo, que é ficção menos para quem está concentrado na personagem que joga), não poderia haver sequer a noção de convenção que aqui nos auxilia. O faz-de-conta não poderia existir se não fosse, ao ser exibido (de alguém, para alguém, em algum momento e em dado território), real; dialeticamente, o real não poderia subsistir não fosse com essas montagens e sobreposições de “como ses”

Podemos “pescar” os exemplos mais valiosos suscitados por Goffman. O usuário incipiente da maconha “se trai” enquanto não percebe, por experiência e perspectivismo, que a “diferença interna” que sente ao fazer uso da substância malvista socialmente é bem mais dilatada que aquela que pode ser aferida por observadores externos, em abstinência da droga, ao dialogarem com e estudarem as reações de alguém que está sob efeito dela (e que não o admitiu anteriormente na cena; ou seja, num contexto em que o observador ignora se a pessoa realmente utilizou o entorpecente). Tal situação fenomenologicamente paradoxal e ao mesmo tempo objetivamente lógica ilustra a superação do que os positivistas chamariam de “solipsismo metodológico” em Goffman, que, como Parsons, não se situou num extremo nem noutro da análise. Na situação da sala de aula, temos uma boa lista de “sabedoria acumulada de professores e alunos” e algumas armadilhas em que os dois papéis possivelmente incorrem. Uma delas é a preferência dos professores por alunos intermediários, ou seja, nem iniciantes nem muito veteranos, partindo da convicção de que terão mais controle sobre seu papel de superioridade em classe. Outro é o código de ética compartilhado de que colegas de profissão não devem assistir uns às aulas dos outros. Há ainda o comportamento de “durão”, do profissional que deve começar se impondo e só em seguida “relaxar” ou “afrouxar” na exposição do conteúdo, porque o comportamento contrário incitaria a desordem por parte dos alunos; e, por fim, Goffman pega de empréstimo a decodificação sartreana do aluno que quer ser a mulher de César, ou seja, aparentar de todas as maneiras que está prestando atenção – ao cabo, ele terá todo seu sistema nervoso sugado pelo eu do Outro, ou seja, o próprio professor, não lhe restando muito “estoque” para interpretar de acordo com a própria bagagem o que é que ele está falando. Este último e célebre caso é aliás um tópico de abertura do dilema da reflexividade e prática (ou se pensa ou se age), que será bastante deslindado na questão 2. Goffman chama toda essa preocupação minuciosa com o jeito de se portar frente à “platéia” uma “regulação” ou “manutenção rigorosa” da fachada. Não que não conseguir manter a fachada implique na ausência de fachada: automaticamente se recai em outra fachada. Um professor que “não age como um professor” agirá como alguma outra coisa (faz papel de vítima, caluniado, incompreendido, furioso, de que não percebe o que se passa e mantém o mesmo discurso, de “fujão”, se decide se ausentar, ou então, após um solavanco ou ato falho, depois de perder o fio da meada, ele volta à tona, retoma o controle do papel original, ou ao chegar em casa reelabora novas estratégias, e ainda que não consiga jamais o controle da turma ele desempenha uma variedade de fachadas no transcurso do seu expediente). Outrossim, Goffman não isenta os categorizados como loucos dessa assunção de fachadas (Parsons diria que este indivíduo reside em um erro permanente da norma, pois cada ato-unidade seu não consegue estabelecer um entendimento do chamado “consensual”).

Anselm Strauss é outro colecionador de anedotas interessantes da mesma estirpe etnometodológica. Assim como Goffman, dedica um bom naco de seu trabalho às reações fisiológicas, musculares, por exemplo, durante as mais variadas performances de um ator (imagine-se o número de caras e bocas e trejeitos pelos quais o interlocutor “se denuncia” numa simples interação e a extensão que as interpretações sobre eles podem tomar, como fica bem claro neste trecho, que aliás é de Goffman mas serve também para aquele cientista social que inaugura o parágrafo: “Quanto mais o indivíduo se interessa pela realidade inacessível à percepção, tanto mais tem de concentrar a atenção nas aparências”). É claro que as semelhanças serão diversas e haverá um ou outro ponto de vista divergente, sobre os quais logo entraremos em detalhes, antecipando-lhes que a identidade pessoal/social do sujeito se liga, neste autor, mais a seu conceito de máscara que ao de fachada referido anteriormente; este, como é óbvio, não deixará de lembrar o primeiro modelo e carregará, no entanto, a marca de um novo pensador.

Ao invés de enfatizar o grupo de estigmatizados e “informados” (indivíduos que se tornavam fronteiriços por conta do contato habitual com estigmas de terceiros), a obra de Strauss a que tivemos acesso, Espelhos e Máscaras: A Busca da Identidade, tem como epicentro a constituição da própria personalidade mais genérica, embora não se negue nenhum postulado-mestre acerca do vir-a-ser do Homem e suas virtualmente ilimitadas fachadas, como que em busca de uma cobertura predominante ou sintética (compósita) das outras. Um exemplo é na elaboração de como alguém se torna bobo ou herói. Um indivíduo parece carregar essa característica consigo muito mais marcadamente do que em relação às micro-estratégias das quais Goffman faz um inventário invejável (e Strauss é-lhe similar até nesse tipo de exemplo, como na página 79 de Espelhos e Máscaras, em que descreve a elaboração de fantasias por parte do professor estreante que ainda não conhece com segurança as reações dos alunos e ensaia sozinho em casa as posições, as falas, os efeitos ao público…).

Os espelhos do título se referem à construção da personalidade e ao processo clássico de socialização do indivíduo, em que ele incorpora e exporta julgamentos dos e aos outros com base em projeções de seus corpos nele mesmo e vice-versa. Somos capazes de nos reconhecermos ali, em terceira pessoa, assim como nos reconhecemos ao mirarmo-nos em um vidro perfeitamente polido (e somos essas pessoas, na medida em que há uma consideração objetiva aí, a condição da “substituibilidade”, conforme diria um Bourdieu: se “tivéssemos nascido” no lugar dessa pessoa seríamos ela própria; nossa personalidade, nossa história, se define pelas situações vivenciadas no passado, não há nada “descolável” e essencial do nosso eu, algo realmente “particular” na acepção mais profunda, que não tenha uma explicação social; o comportamento mais bizarro pode ser demonstrado por essa teia inevitável de relações). Além disso, destaca-se a auto-avaliação moral que um indivíduo faz de si e como é complexa mas de ocorrência obrigatória a elaboração de uma continuidade existencial no meio de eternos momentos entrecortados. Strauss, ainda, se contrapõe a Parsons na questão da motivação, uma vez que, em que pese a dificuldade de aferirmos as nossas intenções por conta da lenta e dificultosa decifração do inconsciente, este não é um problema que deveria ser ignorado por uma teoria social. A contínua e multifacetada exegese, por sinal, impede que tiremos motivos concludentes de uma determinada situação.

Questão 02:

Pierre Bourdieu tenta empreender uma resposta, senão definitiva, bastante concisa para os problemas estrutura-ação, diacronia-sincronia e todas as suas implicações que já tanto discutimos e que desde os primeiros sociólogos estão no centro da arena, ao lado da questão da “cumulatividade em Ciências Sociais”. Desde Parsons já o víamos, e o inconsciente, a memória, continua desempenhando papel decisivo nas propostas de síntese dos autores mais recentes. Iniciemos com a Sociologia da Sociologia de Bourdieu:

Se se pensa por que ainda hoje se diz que a Sociologia é tão nova e precoce, e que por isso não se deposita nela confiança de mesmo grau que em uma “ciência dura”, e tomando por base o enorme receio disseminado de que “é quase impraticável uma modalidade de conhecimento da própria sociedade e do homem”, vê-se que, contrariamente ao que Parsons relata na introdução de um de seus livros, Comte, Spencer e outros precursores ainda não estão de fora das discussões mais relevantes nesta virada de século, ainda “não foram superados”, pois no fundo essa era para eles a preocupação-base. Pierre Bourdieu contra-ataca esse tipo de suspeita sobre o “fazer ciências humanas”: o próprio abismo entre a Matemática e a Sociologia perde legitimidade, se olharmos de perto. As Ciências capazes da Verdade e aquelas incapazes (ou, melhorando o termo, “confusas demais”, porque metalingüísticas e auto-referentes demais, e que permitem muitos caminhos, o que tantas vezes faz com que alguns cientistas exatos se dêem conta de que seus colegas das Humanidades sejam também cientistas em detrimento de “meros literatos”!) ganham contornos de uma coisa só. Se a própria observação etnográfica consiste em utilizar métodos sinuosos (incapazes de estabelecer uma totalidade definitiva, “confusos”, porque contingentes e insuficientes) e percebe os “seguros de si” (porque os ágrafos não possuem uma disciplina antropológica, em tese!) como outro grupo onde fervilham problemas existenciais, ou a Ciência toda só tem a perder ou, inversamente, há uma consolidação do método lógico e um nivelamento de todos os seus segmentos, dos que estudam a previsível “natureza” e dos que estudam a imprevisível “cultura”. É muito estranho que tão poucos autores tenham pensado em tratar a cultura como algo mais natural e a natureza como reino de onde provém o cultural, ou seja, que escassos pensadores tenham desmistificado a oposição dogmática entre natureza e cultura, dois universos tão correlatos, talvez um só universo, claro, que é profundamente cindido pela convenção da Linguagem, que opta – necessariamente – por dicotomias quase insuperáveis. Não se mostra um filme quando a intenção é mostrar como ele foi feito. O filme é o hiper-real e o enganador. O que está tácito e subjacente, encoberto por manipulação digital e outros recursos, é o que deveria interessar, assim como o que de fato os cientistas fazem com pedaços mortos de animais e toneladas de instrumentos caríssimos deve ser diferente do que consta nos artigos finais de seus trabalhos. O próprio antropólogo, seduzido fosse, demonstraria inaptidão para o trabalho. É sempre mais difícil, compreende-se, tratar da própria lógica em que se está inserido, utilizando da Ciência para desnudar a Ciência – e, portanto, a si mesmo. E pensar que o percurso ideal é, apesar de científico, baseado no olhar leigo sobre o entorno, com um nível de cuidado para o qual o leigo não está preparado! Bourdieu, enquanto fala dos cabilas, convida o sociólogo a se situar no campo e reconhecer que interfere em seu objeto de estudo, praticando uma Sociologia da Sociologia, ou seja, o julgamento, embutido no trabalho, do autor de sua própria Sociologia, já que ninguém melhor que ele para saber das próprias subjetividades e perspectivas preferenciais que construíram o trabalho. Isso faz parte também de um projeto de uma Sociologia do Poder. Toda essa noção de “humildade profissional” é necessária como preâmbulo do que se vai dizer acerca da reflexividade prática.

Imagina-se, apesar disso não ser dito no livro Esboço de uma Teoria da Prática nesses termos, que uma “teoria da teoria”, vulgo idealismo, seria aquilo de que Marx tanto fugiu ao propor o materialismo histórico e a evolução paulatina das idéias, ao contrário dos pós-hegelianos e seus sistemas “fáceis” que auto-interpretavam o universo a sua maneira. E é com um aforismo de Karl Marx que Bourdieu abre seu livro. Qual a contraposição igualmente estéril? Uma prática da prática, embora eu também não encontre esse termo ipsis litteris, a vida oca de uma sucessão de imagens sem uma retroalimentação. Quando Bourdieu tece sua “teoria da prática” e fala de uma “experiência primeira da prática”, ele retoma essa discussão da “teoria-prática e seu andar juntos”, e não à toa produz sua sociologia com “neologismos arcaicos”, isto é, expressões do latim já consagradas pelo passado mas que carregam agora significações inéditas (como o próprio Marx iria querer para sua praxis).

O impasse teórico advém também da sensação de que, por mais situações que se possa viver, “tudo é o mesmo”. O auge do estruturalismo deve ter causado essa forte impressão de “congelamento da realidade”. E no entanto, ao mesmo tempo que a academia chegava ao beco sem-saída metodológico, como é possível que o mundo vivesse sua maior promessa de “é possível fazer diferente, porque todos temos escolhas e somos o que escolhemos” (o utilitarismo econômico do pós-guerra talvez como ápice disso)? Em prol da vida “paralisada” no tempo do pós-grandes narrativas, a proposta hegemônica da ciência era sem dúvida “encerrar com a Episteme”, fechar cada vez mais os caminhos, isso porque enxergava-se nisso o único modus operandi. O Ocidente queria apenas o pragmatismo do “como”, não mais os “porquês” que tanto vieram se arrastando (a “amnésia da gênese” de Anthony Giddens). Esta é a vitória tecnicista contra o ideal mais antigo da ágora dos sábios. Parece que ou se age ou se pensa, e já se havia pensado demais… Mas então não se começou a agir demais, com o mesmo tipo de decorrência nefasta?

Os dois processos se desencadeiam simultaneamente – talvez isso seja tão mais discernível no espaço paradoxal sufocante e promissor da Alemanha do século XIX cujas armadilhas Marx desbaratou na Ideologia Alemã. Uma atrofia da variedade individual concomitante a uma hipertrofia do Estado – o desenvolvimento tecnológico tem disso: uma vez realizado o que antes era projetável e contingente, torna-se “o necessário”, o único que podia suceder-se de acordo com as forças produtivas, é um destino manifesto prosseguir na unidirecionalidade, o projeto já demarcado. Porém, em contradição com a supressão das alternativas de desenvolvimento, o conceito de “livre-arbítrio” ganha cada vez mais respaldo dentro dessas sociedades. A Alemanha só podia agir de um modo, adotar uma estratégia, para suplantar a superioridade industrial da Inglaterra. Ao mesmo tempo que o alemão teorizava o futuro e fantasiava sua íntegra realização tal e qual (refletia demais), a “cópia do modelo de sucesso” que implementou em relação a seus vizinhos França e Reino Unido era exatamente essa noção bourdieusiana de uma nociva prática pura. Para resumir tudo: quando se incorre num tipo de erro se comete automaticamente o outro, neste binômio fazer-pensar, bem como hipertrofia e atrofia muscular são igualmente problemáticos num homem.

Outros exemplos de ênfase excessiva em uma coisa só: a quantomania, ou growthmania no âmbito estatal, que só reconhece o poder da verdade nos números. O engodo do “empirismo estatístico”, achincalhado por Bourdieu, Elias e Giddens. E há, por exemplo, uma semiótica absolutamente niilista e iconoclasta que descasca todas as pretensões e enunciados, anula todos os valores e é incapaz da reconstrução em novos moldes, pois a lógica sobre que é montada não o permite (talvez um Guy Debord no seu desnorteante Sociedade do Espetáculo). Os dois casos são tanto “nenhuma razão” quanto “limites do emprego da razão”. A diacronia é fundamental aqui: como com um doente que esquece que suas angústias são produto de um estado desestabilizador temporário, o tempo dará uma chacoalhada nos pontos de vista.

Na página 148, Bourdieu expõe as insuficiências etnometodológicas (um “programa tapa-buraco” para responder ao “objetivismo”). O fazer-ciência necessita de uma resposta/um solo mais imediata(o). Mas um solo relacional, evidentemente (o que faz alguns confundirem praxis e fenomenologia num primeiro momento – não obstante, os fenomenólogos seriam, segundo Bourdieu, ainda subjetivistas, pois falharam na síntese). Como não poderia deixar de ser, o autor francês não deixa por menos em relação aos pós-estruturalistas, apontados como inferiores ao próprio Lévi-Strauss (p. 154).

Quanto ao habitus, quando ele relaciona os conceitos de padrão e disposição à biografia de um indivíduo, a fim de explicitá-lo melhor, seria aquilo que se torna visivelmente recorrente ainda que se vá tomar a vida como um rio cujas – moléculas das (em seu arranjo) – águas não se repetem; ao mesmo tempo, a perene produção do novo a partir do velho, da reprodução, a reinterpretação de significados por parte do sujeito, que os faz se readaptarem após solavancos e obstaculizações (pedras ou declives nesse rio), que independem dele, é certo, porque “assim funciona o homem”, mas que são efetivamente de autoria dele, de modo que o adulto “tenha a própria história”, que seja “cúmplice” dela não em menor grau que a criança e o complexo de Édipo e a formação primordial do caráter (como em Piaget ou no freudismo ortodoxo, conforme denuncia Giddens), em que pese ser esta biografia repleta de sentidos (alguns mais fixos e duradouros), doutra perspectiva, nada mais que um amontoado de acasos.

Giddens possui uma sadia e notável falta de escrúpulos quanto à crítica a colegas e a um discurso despido de arrogância, quase que informal, a respeito da situação da sociologia na sociedade pós-industrial. Sem meias-palavras, por exemplo, repudia aqueles que, em geral, ainda não entenderem as várias facetas de Weber, e assinala “meu Weber”, que seria a antítese do “Weber habermasiano”. Bourdieu faz questão de lembrar, idem, o quanto Marx e Weber foram postos como rivais intelectuais sem muita consideração pelo real conteúdo de suas obras. Voltando a Giddens, ele confirma o veredicto de que “a tecnologia não venceu o homem” em um de seus ensaios de Em Defesa da Sociologia, como muitos estiveram inclinados a pensar. Não é a técnica que está na dianteira das transformações, mas o gênio humano, por mais que correntemente este se veja como técnica aplicada (a questão do estreitamento dos horizontes, acima). Empreende uma análise mais psicológica que a de Bourdieu, no trato, por exemplo, da compulsão moderna. Sua principal contribuição está totalmente de acordo com uma teoria da prática, no entanto: a sociogênese, equivalente talvez da arqueologia do saber foucaultiana – enfatizar a história das estruturas ao invés de só a estrutura da História, ao que talvez o termo “sociologia” vinha remetendo excessivamente. Critica, a dado momento, a superestrutura e ideologia marxistas, ou talvez seu emprego por parte dos sucessores, que tenderam a polarizar suas conclusões sobre uma variável apenas, a fim de explicar todos os liames sociais.

Nesse aspecto psicológico, Norbert Elias é bem próximo de Giddens. Seu livro O Processo Cilizador (ou Civilizatório) passou décadas em branco entre os acadêmicos até ser levado em conta. Trata de forma singular do problema do inconsciente. Sua proposta é transcender as dicotomias clássicas e estilizantes. Há um enfoque da obra supracitada na explicação da dualidade bárbaro/selvagem-civilização (recalcamento e planejamento a longo prazo – o que não necessariamente corresponde a vantagem, tão-só dum ângulo moral, sendo em realidade uma espada de dois gumes –, mudança gradual e cientificamente justificável do ethos dos grupos humanos). Manifesta, numa linha ou noutra, a mesma preocupação com as exceções que vimos na unidade I entre os etnometodólogos.

Se não me engano, é em outro texto que este autor alemão irá evocar Cila e Caribde, os monstros marítimos homéricos como forma de alusão à física/metafísica, ao discurso/metadiscurso neste tempo de incertezas (nunca houve um tempo de certezas absolutas, e é certo que ainda temos um solo razoável de convicções). Em geral, seu teor é afim ao de Bourdieu no que tange a isso, inclusive quando aponta a recursividade dos problemas das ciências naturais de outrora nas ciências sociais de hoje, como se fosse uma história espelhada (“as ciências sociais encontram a mesma dificuldade que afligiu as ciências naturais”, p. 23 de Introdução à Sociologia).

Ensaio sobre a Dádiva, Marcel Mauss

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 07/11/08

 

INTRODUÇÃO – Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir os presentes

  1. Epígrafe – O antropólogo irá tratar aqui de um fenômeno batizado de “dádiva”, a ser pormenorizado mais à frente. Por enquanto, basta a consideração de que em toda dádiva está embutida uma contradádiva, e nisto se poderia resumir por enquanto a espécie de contrato social que vigora em várias sociedades “primitivas” (outro intuito de Mauss é demonstrar o quanto este termo está equivocado, pois o sistema da dádiva é algo plenamente maduro do ponto de vista ocidental e, até seu tempo, isso era difícil de reconhecer).

  1. Programa – Mauss introduz os dilemas ou perguntas principais de sua tese: qual força misteriosa impele o receptor da dádiva à contradádiva? O que existe de direito real (arcaico) incrustado no direito pessoal, nome pelo qual nos acostumamos a chamar nossas garantias e deveres constitucionais (nos termos maussianos, “conclusões morais sobre (…) a crise de nosso direito”, p. 189)? Analisando sociedades míticas, em que não existe a noção de indivíduo dissociado de um todo, pretende-se chegar a estas respostas.

  1. Método seguido – Há uma semelhança incrível entre o método comparativo de Mauss e o método histórico ensejado por Franz Boas, que será, aliás, enormemente citado em notas de rodapé. Objetiva-se o “acesso à consciência das próprias sociedades” (p. 189) e, para tanto, há a consideração do sistema cultural em sua completude, sem comparações fragmentárias entre instituições de um e de outro povo, o que “tiraria a coloração” delas, pela perda do contexto.

  1. Prestação, dádiva e potlatchO número de sociedades ao redor do mundo descritas detalhadamente por Mauss – para comparação posterior – é razoável e será possível encontrar desde “sistemas parciais da dádiva” até “dádivas totais” (“prestações totais” ou potlatch, como Mauss emprega, que quer dizer nutrir ou consumir), esta última variante encontrada nas tribos do noroeste americano. Algumas destas culturas apresentam pistas de parentesco (uma adotou o sistema após contatos com outra que já o adotava e depois o suplementou a sua maneira), mas este fato não é uma necessidade absoluta (há casos de desenvolvimento autônomo das prestações e contraprestações).

  1. AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE RETRIBUÍ-LAS (POLINÉSIA)

  1. Prestação total, bens uterinos contra bens masculinos (Samoa) – O próprio casamento se afigura como relação de prestação e de contraprestação: oloa é como são chamados os bens masculinos (móveis) e tonga os bens femininos (imóveis). A criança é tida como um bem uterino: ela é literalmente um bem que será fonte de contradádivas pelo resto de sua existência (parentes que o presentearão – regalarão, em conseqüência, o núcleo da família do menino ou menina – com oloas, bens móveis). Mas tal sistema samoano não é ainda um potlatch (prestação total), uma vez que fica faltando um pré-requisito essencial: a ocorrência da guerra caso a reciprocidade não tome lugar.

  1. O espírito da coisa dada (Maori) – O tema ganha em abrangência quando migramos, em pensamento, para outra sociedade, a dos maoris. Sucede-se a transição do conceito anterior “tonga” para “taonga”. Cada taonga tem o seu hau (aqui, tonga ganhou em amplitude) ou mana, quer seja, espírito, alma, atributo sem o qual “não se está vivo”, “não se está”. Pois bem: quem infringe a regra da dádiva e da contradádiva tem seu hau destruído, a maior vendeta imaginável (vendeta = vingança – quando alguém comete um crime, supostamente será alvo de vendeta daqueles em comunhão com as vítimas). Eis a caracterização da violação às regras de troca como crime, “punido” e sentenciado de forma diversa do nosso sistema de justiça. Portanto, a coisa “tem poder sobre o ladrão”. Se a coisa tem poder, ela não é inerte (a propriedade “resmunga”, “grita”, cf. p. 254 et circa). A interpretação das coisas terem hau é que sejam espíritos, antepassados, objetos que foram de antigos maoris e que ainda encerram suas atribuições, e jamais deixarão de fazê-lo, posto que circulam indefinidamente. Há um vínculo inseparável entre coisas e homens aqui: na própria linguagem nativa, seria impossível determinar o que é o quê.

  1. Outros temas (a obrigação de dar, a obrigação de receber) – Não consiste o potlatch apenas em retribuir, mas, por inferência lógica, em sempre oferecer e receber (afinal, a retribuição só existe com estes dois verbos a ela vinculados), e jamais recusar convites (exceções são enumeradas, mas creio que não seja preciso chegar a esse nível de precisão).

  1. Observação – o presente dado aos homens e o presente dado aos deuses – Estendendo as conclusões sobre o hau, tem-se que os deuses são os “verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo” (p. 206).

  1. Outra observação, a esmola – Alcunha-se aqui a teoria da esmola, uma eventual origem do nosso “Doces ou travessuras?” do Dia das Bruxas: “dádivas às crianças e aos pobres agradam aos mortos” (p. 208), em última instância aos deuses. Sendo assim, é demandado “dar” para não entrar em desgraça. Mauss precisa o momento em que os termos hebraicos da Bíblia passaram a significar esmola ao invés de outra coisa menos clara, o nascimento da doutrina cristã como adequada para aqueles que viviam em penúria material.

  1. EXTENSÃO DESSE SISTEMA – LIBERALIDADE, HONRA, MOEDA

  1. Regras da generosidade. Andaman (obs.) – Os antropólogos desta escola racionalista francesa não priorizam a história (apesar de levarem em alta consideração as metamorfoses do Direito nas diversas sociedades) – fogem do difusionismo puro e também do “independentismo puro e simples das descobertas de um povo” (neste aspecto lembram muito Boas, ao se situarem em uma escala intermediária, de moderação na explicação das “invenções culturais”).

  1. Princípios, razões e intensidade das trocas de dádivas (Melanésia) – Por diversas vezes, ficamos sabendo que o “comércio circular ou de retorno”, de taongas ou bens, o potlach ou kula (em Malinowski), costuma ser realizado intra-chefia, ou seja, entre os chefes de fratrias e tribos. Eles – e o povo que mediam – estão sujeitos a sanções como o banimento do indivíduo (“O esquecimento tem conseqüências funestas”, p. 246). Correspondente a essa noção e não menos importante, temos as classes sociais destas sociedades. Eu pensava, de acordo com noções antropológicas anteriores à leitura deste livro, que as sociedades australianas “primitivas” careciam de divisão social em estamentos, porque fica transparente em Mauss (e Malinowski, no kula) a presença de um ethos nobre, à maneira hindu, no tocante às relações de trocas entre os indivíduos. Os presentes da troca são supérfluos no que se refere à subsistência, mas nisto reside sua importância e sua nobreza. Para não deixar margem para dúvidas, está é uma questão que, exteriormente, varia: tais presentes podem muito bem constituir filhos e comida, bens claramente de subsistência, tomados sem um contexto definido; no entanto é requerido observar a função desse tipo de honraria. É escusado dizer que aqui se trata de dádivas sem as quais, em tese, ainda é viável uma vida – só que não é suficiente tê-las só para si ou não tê-las, é necessário haver essas relações de troca entre os nativos, como se sem isso, com efeito, viessem a morrer. Prova cabal disso é o costume ancestral do esquimó de presentear o visitante – e não o nativo, o que é uma peculiaridade – com sua própria esposa, ao menos na primeira noite em que o estrangeiro é recebido em suas dependências: sem isso sua existência se tornaria vexatória, indigna. Há um distanciamento soberano entre a dádiva e o econômico/cotidiano: não pode haver barganha, pois isso denegriria o processo. Há inclusive a idéia do juro, mais moral que material (qualitativo ao invés de quantitativo, exato, matemático): em um mês se viaja sem mantimentos e se é acolhido; pois no próximo a intenção é receber aqueles anfitriões de outrora com ainda mais luxúria e opulência. Talvez por isso haja um impulso de “dar” pela primeira vez: dar sem ter recebido indica honra e significa um grande presente ou banquete vindouro.

Na nota número 29 entra em jogo o complexificador do sistema: a moeda. Mauss lista algumas etapas de consolidação do sistema financeiro até o presente. Antes de a moeda ser um equivalente universal de todos os bens e que não é um bem por si (o que ocorre em nossa sociedade – uma nota de 10 reais não pode “ser vendida” por 2, ou então por 25 reais, pela sua beleza ou para qualquer tipo de consumo final, se seu valor ainda está em curso e não estamos falando de colecionadores), ela era também qualidade, estava atrelada à magia, ao hau. Ou seja: apesar de envolver algo de impessoal, a moeda arcaica não o é de todo (aliás, disso está distante). Tanto é assim que Malinowski e Simiand contestam a classificação de Mauss, que atribui ao cobre, conchas, gado e a tantos outros talismãs das sociedades estudadas o título de moedas. Sua defesa é que, apesar de não haver uma arregimentação fixa do valor de troca, este existe e pode ser expresso em números, e isso basta. Tampouco há um centro burocrático emissor da moeda ou que a estipula por lei; mas para as considerações em mente do antropólogo francês a lei escrita é banal: basta que seus efeitos se verifiquem, e parece realmente ser uma instituição de uso universal nas fratrias e clãs. A relação do indivíduo local com a moeda é curiosíssima: “Os proprietários os manipulam [os pedaços de cobre] e os observam durante horas. Um simples contato transmite suas virtudes. Colocam-se os vaygu’a sobre a testa, o peito do moribundo, eles são esfregados em seu ventre, balouçados diante de seu nariz. São o supremo conforto dele” (p. 219). O contraste com nossa situação chega à comicidade: apesar do alto apreço pelo dinheiro e de eventuais demonstrações de “fruição do poder”, como o milionário que “se banha de notas e moedas” ou que “joga o dinheiro para o alto”, contentíssimo (o personagem ficcional Tio Patinhas, que mora num cofre, seria o absoluto disso), tanto o dinheiro de plástico quanto o dinheiro de metal estão mais associados à sujeira; lavamos a mão depois que entramos em contato com cédulas e moedas – elas “passam pelas mãos de todo mundo”, não servem para nada que não seja “comprar aquilo de que se necessita”, seu uso é “pontual e metódico”.

E para atestar a “tese da moeda”, Mauss lança mão de analogias com um corpo de nomenclaturas com o qual estamos acostumados, ainda que não torne essas ilustrações explícitas. É o caso, por exemplo, da menção ao basi, que funciona nitidamente como “entrada” numa “compra a prazo”, uma espécie de “fiado”; e dos “bancos” (nota de rodapé 37). Uma associação do sistema de dádivas com o mundo ocidental é, então, viável: o dinheiro ou capital (forma acabada do dinheiro) é onde nossa potência e sua elevação reside. Onde se concentra o ímpeto cultural de criar. Seu cunho inflacionário, os juros sobre juros e as casas financeiras garantem que amanhã ele será mais que hoje. Assim como o “primitivo” retribui amanhã mais do que lhe foi oferecido hoje. O que é nossa poupança senão um enorme potlatch?

É preciso apenas deixar claro que a dádiva não compreende toda e qualquer transação (o potlatch é entendido como essa totalização, mas mesmo ele carrega cadeias secundárias). Há, acessoriamente, no cotidiano das famílias, trocas meramente comerciais ou o chamado escambo, onde os dois pensam estar fazendo um “negócio lucrativo”, trocando algo de um quantum menor por algo de um quantum maior. A essência do escambo é divergente do princípio do potlatch: o impulso do primeiro se direciona ao ganho material, enquanto o segundo, de significação mais profunda e mítica socialmente, é motivado pela moral e pela honra, onde o mais importante é dar. As ilhas Trobriand, onde esteve Malinowski, e suas considerações sobre a enorme variedade de comércios existentes servem de base ao meu comentário.

b.2) outras sociedades melanésias – Chegamos aqui a uma demonstração viva (comprovada pela língua) da “confusão” existente entre “pessoa” e “coisa”, indissolúvel nestes povos: “As operações ‘antitéticas são expressas pela mesma palavra’” (p. 231), referência à ignorância do nativo quanto a “estar emprestando” e “tomar emprestado”: para ele, são uma coisa só. Tal peculiaridade ainda reside parcialmente em dialetos correntes, no Ocidente e na China (notas de rodapé 116 a 118).

  1. Noroeste americano

c.1) a honra e o crédito – Na página 236 nos deparamos de novo com aquilo que se poderia chamar de bancos, entre os índios americanos. (Nota de rodapé 131: se todos fossem sacar ao mesmo tempo aquilo a que tem direito por “crédito”, haveria uma “quebradeira geral”! Vê-se que apesar de serem sociedades ágrafas, elas possuem tantos elementos especulativos quanto a nossa, e sequer se poderia dizer que nelas estes são “informais”, porque há um sem-número de ritos que envolvem os atos de empréstimos, concessões e pagamentos.) Aliás, a preponderância do potlatch no noroeste americano é tão patente que uma das tribos se chama Kwakiutl, “rico” no dialeto local. Pode-se concluir, por conseguinte, que o tema da destruição e da guerra (“dar é destruir”, p. 239; ato bélico que é, aliás, equiparado a “jogar um jogo”) está presente com força nessa região. O banquete cumpre uma importante função social, outrossim. Normalmente, os nativos passam uma estação inteira “dizimando” sua moeda, toda a riqueza, o excedente do restante do ano, em tremendas festas. E Mauss defende que “complexidade jurídica” e “complexidade do fato social” não estão necessariamente em compasso: aqui as normas são mais simples que nas ilhas do Pacífico e no entanto o potlatch é ainda mais ostensivo (ou melhor: se há um potlatch, ou algo que mais se aproxime de um potlatch puro, eis o exemplar). Sobressai, também, a conclusão de que a própria dádiva talvez seja o fenômeno econômico mais fundamental, e quer dizer muito sua classificação como evento complexo: significa que as instituições humanas atuais não vieram linearmente de relações simples que iam se complexificando com o passar do tempo. O autor até acha que o escambo, bem como a compra e venda contemporâneas usuais, é que derivaram desse estado de coisas de prestações e contraprestações, afinal pedir uma mercadoria no balcão de uma loja e dar uma certa quantia monetária por ela é uma espécie de síntese do fenômeno fundamental da dádiva, duas etapas de um fato social camufladas de uma só!

c.2) as três obrigações: dar, receber, retribuir – Reiterando, o axioma máximo descoberto por Mauss em sua pesquisa etnográfica (a despeito de não-presencial) é: “melhor dar do que receber”. Mas “receber” não é visto como vexame. O vergonhoso seria apenas receber. Recebe-se com austeridade e polidez e desde esse ponto a ética demanda a retribuição gloriosa e mais rica do primeiro presente.

c.3) a força das coisas – Mauss se escora em inumeráveis mitos das diversas sociedades para ilustrar a importância da dádiva e da contradádiva. Apresentam um enorme poder explicativo alegórico, mas não é necessário falar em nomes neste resumo – suas idéias se encontram diluídas nos outros tópicos.

c.4) a “moeda de renome” – A partir da página 260 podemos averiguar a extrema relevância do cobre entre os kwakiutl. Já ficou claro há muito tempo, mas finalmente o autor comenta o assunto nestes termos: a dádiva é um fato social total (abrange toda a existência – ou no mínimo muitos, quase todos os, elementos, em uma singular troca – dos povos tratados, do ethos exigido aos nomes com que chamam as coisas, da política à religião, passando pelos preceitos econômicos, pela moda, pela família e pela vida sexual, entre inumeráveis outras minúcias).

  1. SOBREVIVÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS NOS DIREITOS ANTIGOS E NAS ECONOMIAS ANTIGAS

  1. Direito pessoal e direito real (direito romano muito antigo) – Um sistema jurídico parcialmente mágico e no entanto reconhecedor da propriedade privada (alienação dos bens). A questão é que no nexum romano o escravo ainda é um bem móvel, o que deturpa (em relação à nossa sociedade) a relação sujeito-objeto. Somente na época de Justiniano haverá uma reformulação que torne a “coisa” mais afeiçoada ao que se pode chamar de “inerte”. Os antigos romanos são muito similares aos kwakiutl no tocante a bens inamomíveis de uma família, porque eles são a família (é só lembrar da relação dos melanésios e dos índios norte-americanos com a moeda – e transferir automaticamente essa relação afetiva para objetos ancestrais do clã).

a.1) escólio – À página 272 verifica-se a explicação da nomenclatura reus, de suma importância quando se vai considerar a relação diferenciada que povos mágicos mantém com os objetos – sua relação sujeito-objeto que se afigura, inicialmente, estranha a nós. Os contratos e a punição do furto nos remetem às tribos já estudadas por Mauss: réu – aqui – é o acusado e o acusador! Outras figuras jurídicas comuns a vários tempos e sociedades: o leilão, onde compete-se para dar mais.

a.2) outros direitos indo-europeus – Aos gregos tardios e aos semitas atribui-se o fato da primeira divisão conhecida entre direito real e direito pessoal (modernidade). Mas Mauss é breve por não tê-los estudado a fundo.

  1. Direito hindu clássico (teoria das dádivas) – O Código de Manu é uma extensa lei que trata em grande parte da moral da dádiva. As associações não param por aí: “O Mahabharata é a história de um gigantesco potlatch” (p. 279, grifo do autor). Há variações de hau verificáveis, adaptadas, por exemplo, à doutrina da reencarnação: “O alimento dado é (…) ainda o mesmo alimento na série de seus renascimentos”, cf. p. 281. Além disso, “a terra canta”, assim como “a casa fala” nos kwakiutl. Há, para se ver, a figura do poeta jurista, evidenciada em uma das notas. O Ocidente é o típico lugar da abertura incomensurável do fosso entre o jurista (técnico) e o poeta (irracional). E é com este poeta do direito que Mauss encerra o capítulo: “Aqui há somente uma roda (girando de um lado só)”, é o que o primeiro diz.

  1. Direito germânico (a caução e a dádiva) – A noção que merece ser citada é a de caução, presente (com leves diferenciações) no Império Romano Arcaico: trata-se da garantia contratual que pesará sobre o infrator, e que diz respeito, naturalmente, à contraparte. Eis o velho vínculo (citado nas linhas acima) entre sujeito e objeto, uma espécie de hau.

  1. Direito céltico – Vizinho do folclore alemão (sabe-se que o direito se funda nos mitos – tanto assim que autores como Max Weber irão denunciar que, apesar da coexistência entre burocracia e direito, trava-se perpetuamente uma luta neste campo: aquela entre os especialistas, que são sempre reformadores da sociedade, apólogos do progresso, e os juízes clássicos, “sacerdotes”, os porta-vozes da vontade divina, que são os representantes dos mandamentos mais arcaicos e tentam “conservar” a sociedade, evitar sua secularização técnica).

  1. Direito chinês – O Direito Chinês também está permeado da noção de “perigo” ou “risco” de se “aceitar um presente”. Terras para onde se migra, uma comida que se aceita, podem encerrar maldições, feitiços de espíritos remotos – os mortos estão nas coisas, são as coisas, as coisas são gente. Este é um país de tradição camponesa em que a terra é considerada parte da família e dificilmente é abandonada. Mesmo na China Comunista não houve a alienação total das terras pelo Estado, como se há de pensar. Um sistema milenar dadivoso não rui facilmente: nas comunas rurais a gerência continuou sendo autárquica e um dos mandamentos de Mao lembra a questão do dom: “Aprender a andar com as próprias pernas”, que ensina a recusar favores o quanto for possível (evitando assim o mau agouro de espíritos ruins). Grande parte das informações deste tópico “e” foi complementada pela etnografia de Henrique de Sousa Filho, Henfil na China.

CONCLUSÃO

  1. Conclusões de moral – Marcel Mauss nos oferece, então, em seu balanço final, ricas páginas. Alerta para o perigo do Homo oeconomicus engendrado pelo projeto moderno, que passa a enxergar tudo como relações venais. Mas na verdade a mágica sempre subjaz em nossos atos, não é possível escapar dela! Os exemplos da aplicação da dádiva em nossa sociedade são vastos. Por mais que se o omite, as coisas ainda têm alma e superstições cotidianas não nos poderiam fazê-lo olvidar. O que dizer de dar três toques na madeira depois de dizer algo de ruim? E o que uma escada haveria de ter a ver com nossa sorte? Há uma luta constante, nos porões da arena social, entre os valores tradicionais/humanistas e a inumanidade (objetividade) de nossos códigos. Receio estar sendo parcial ao criticar este mundo? Não o receio, porque estou apenas dando eco à atitude de Mauss. As passagens do francês são, aliás, soberbamente atuais. Ele dá saltos e comenta da lei francesa de proteção aos artistas, do sistema de previdência social, dos movimentos assistenciais (de ONGs, por que não? Ele anteviu bastantes coisas…) e proletários – enfim, de tudo que tem uma acepção “anti-mercado” hoje, um quê de comunitarismo. “A sociedade quer reencontrar a célula social”, é seu recado exibido à página 297. O perigo, assinalará mais adiante, é quando o pequeno grupo se considera o porta-voz de toda a sociedade.

  1. Conclusões de sociologia econômica e de economia política – Nas páginas 304 e 305 encontramos um belo resumo de todo o percurso delineado até aqui. À 306, a mensagem de que quão mais alto é o teor mágico de uma sociedade, mais a característica da beleza estará atrelada à da força – o mais belo é o mais forte (invertendo a frase, a compreensão do leitor moderno pode melhorar), o que mais tem para dar. Ainda na mesma página: se “[a palavra] interesse é recente”, conforme o texto, é indubitável que chamar os nativos de “desinteressados” (ou justamente “interessados”!) para caracterizar o potlatch é desprovido de sentido – a linguagem cria essas ambivalências. Está claro que para os nativos da etnografia maussiana não existe nem uma coisa nem outra. Afinal, no mundo mágico a roda gira para um só lado…

  1. Conclusões de sociologia geral e de moral – Enxergo a Sociologia e Antropologia de Mauss como bastante atuais, e um grande serviço epistemológico para as ciências. Apesar de citar Durkheim em seus escritos, de ser co-autor de livros com seu tio e de ser constantemente emparelhado com o mesmo, sinto que o sobrinho superou em muito o mestre, porque seus questionamentos não envelheceram, pelo contrário, como os postulados objetivistas de Durkheim. A escola francesa é um interessante esforço de guinada antropológica, pois ensaia a tão necessária crítica ao Ocidente, o que vejo de forma mais acentuada em autores contemporâneos como Bruno Latour. São capítulos fundamentais, portanto, da história da disciplina no século XX. Imprescindível leitura para a compreensão da “circularidade da cultura”.

Os Nuer

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 22/11/08 – editado em 25/09/19

Evans-Pritchard escreveu um livro sobre sua estadia entre o povo Nuer, nilotas semi-nômades localizados no sul do Sudão, região pantanosa que enfrenta estiagem sazonal, homens de índole boiadeira e guerreira e que são sintetizados na introdução do autor como “apolíticos”, no senso de que toda sua organização, em aparência, obedece tão-somente a preceitos religiosos e de que falta a lei formal. Sua estrutura familial (as linhagens nuer) é agnática, quer seja, baseia-se na tradição, na consideração de que todos das gerações mais novas descendem de outros de gerações mais velhas até uma origem remota de um ente Nuer, consistindo sua árvore genealógica, portanto, num triângulo perfeito (mais detalhes sobre esta constituição no TEMPO E ESPAÇO).

Ver-se-á que inexiste qualquer hierarquia social entre os Nuer, no entanto é verdade que existe uma divisão entre conjuntos etários que auxilia na determinação da ocupação ou das atividades desempenhadas pelo indivíduo. Sabe-se que a iniciação do jovem à idade adulta é bastante notável. Diz o autor que se preocupa neste volume apenas com a “coisa pública”, deixando de lado ou em segundo plano a vida doméstica dos Nuer. Não obstante, se não há governo institucionalizado, não haveria de haver uma confusão entre uma suposta existência privada e a que se pretende retratar? Com isso, Evans quer ao menos dizer que não prestará muita atenção a relações que se pode chamar “de dominação”, uma vez que, no contexto em que irá trabalhar, não considera o fosso entre os dois sexos da tribo, segundo ele mais palpável apenas na consideração da intimidade da família (choupana, estábulo e afazeres diários), não sendo representativo no quadro genérico ou em comparação com outras culturas regionais.

Antes de dar início a sua descrição dos Nuer, Evans-Pritchard enumera uma inacreditável série de percalços e intempéries que teve de enfrentar a fim de concretizar seu projeto, o que nos faz pensar que cada descoberta em campo consistiu em um ato heróico! Em princípio, o etnógrafo era vítima da mais copiosa indiferença. Os Nuer são considerados de natureza hostil e há inclusive uma listagem de estudiosos que foram mortos durante observações de seus costumes! Pesava muito o fato de Evans não dispor de um intérprete – e como os Nuer tendem ao isolamento e não se especializaram no árabe ou no inglês (línguas dos colonizadores do Sudão em diferentes épocas), a comunicação nos primeiros dias era impraticável. Além do mais, o empreendimento do antropólogo foi, não escassas vezes, interrompido, e ele tinha de voltar para uma maior coleta de dados apenas após vários meses terem-se passado. Tais contratempos foram promovidos tanto por instabilidades nas relações entre Nuer e governo quanto pela saúde precária de Evans. Ao todo, teria passado um ano em campo. Alguns trechos, há que se admitir, beiram a comicidade: “Os Nuer recusavam-se a carregar meus suprimentos e equipamento, e, como tinha apenas duas mulas, uma delas manca, era impossível mudar de lugar” (p. 17). Talvez, ao cabo, o autor devesse agradecer o fato de ter sido alvo de insensibilidade, e não de ataque! Pouco mais adiante: “Os Nuer são peritos em sabotar uma investigação”. O próprio “hóspede indesejado” brinca com o fato, alegando ter apresentado “os sintomas mais evidentes de ‘nuerose’” no transcurso da investigação. É uma verdadeira lição de casa que deve ser absorvida pelos aspirantes à etnografia, cuja realização não inclui apenas flores e sorrisos.

Apesar de todos os reveses e dá técnica nuer de entravar a conversação, Evans foi se familiarizando com a linguagem e tornou-se inclusive bastante integrado à aldeia (e não poderia ser de outro modo, já que este é um procedimento nuer por excelência: ao estrangeiro, nada se dedica; porém, semanas depois, a integração já é quase completa). Procederei ao balanço de suas conclusões do mesmo modo que o autor: por uma divisão em subtítulos que correspondem aos três primeiros capítulos do livro.

Interesse pelo gado

A característica mais evidente dos Nuer. Toda relação social deste povo objetiva obter cabeças de gado, conquistar pastos ou garantir as condições de sobrevivência do rebanho, e todo o mais periférico acaba se mostrando reflexo dessa “obsessão”. Até mesmo o hábito da guerra se inscreve nessa totalidade, bem como, o leitor já deve ter especulado, qualquer possibilidade de casamento e enumeração de posses do(a) indivíduo/família. Como exemplos acessórios, a multa provocada pelo assassinato se resume a bois para os parentes do morto e os nomes de batismo são explicados inteiramente pelo culto bovino. A necessidade máxima, que é manter as reses seguras, faz com que haja uma forte interdependência e solidariedade entre as várias células residenciais, clãs, segmentos de tribos e mesmo tribos, em situações excepcionais. Uma delas é a guerra, outra pode ser a seca que afeta os Nuer durante boa parte do ano.

Atualmente (e isto na época deste tratado, dos anos 30), os Nuer são retratados em fase decadente, uma vez que sua principal riqueza (as cabeças de gado) minguou, tanto por epidemias animais quanto pela ação do governo em que estão circunscritos. Esta é apontada como a razão principal da personalidade desprendida deste povo. Tais observações pritchardianas demonstram o quanto o autor se interessa pela História e suas metamorfoses na constituição da cultura nuer.

Há muita homogeneidade na “distribuição de renda”, se assim podemos chamar, nuer. Os mais ricos, por ocasião de verem filhos se casando, precisam se desfazer de suas reses, enquanto que os mais pobres raramente deixam de ter algumas cabeças de gado e, ainda que não usufruíssem de nenhuma, contam com a colaboração de vizinhos no tocante à obtenção de leite, queijo, sorgo, peixes e a própria carne de gado (consumida em circunstâncias pontuais), as principais fontes alimentícias da cultura. No próximo subtítulo haverá bastantes detalhes sobre questões relativas à pesada limitação material nuer (o que inclui pouco espaço terreno para abrigar sadiamente o rebanho, portanto seria impossível uma disparidade enorme entre as possessões das famílias – ver-se-á que inexiste, por exemplo, possessão individual literal, pois o que é de um é de quase todos os consangüíneos, direta ou indiretamente), o que não impede – e até fortifica – o sentimento de orgulho dos indivíduos e a realização regular de festas.

A pormenorização técnica do autor no que respeita à ordenha e ao erguimento de acampamentos, para não se ir muito longe, é espantosa, mas, para os fins em vista aqui, seria desnecessário condensar essa parte. Devo apenas chamar a atenção para o que influencia sobremaneira no relacionamento nuer com o mundo. E sua medicina e conhecimento do rebanho são tão elevados que o autor aponta como sendo impossível, dentro desse ecossistema, haver uma eficácia maior na produção de leite e filhotes, enfim, na perpetuação da espécie e, por tabela, do próprio modo de vida nuer. Isso tudo em que pese os Nuer situarem-se, de acordo com o texto, em uma idade paleontológica indefinida, talvez “orgânica” (seriam representantes “clássicos” do “estado selvagem”, diriam os evolucionistas, já que se comportam em maior harmonia com a natureza e andam nus) posto que não seria nem mesmo a da pedra lascada (mais detalhes sobre a “era pré-mineral” dos Nuer adiante). O que prova que artefatos tecnológicos em si têm muito pouco a dizer sobre a real sabedoria de um povo.

No trecho final do capítulo, muitas demonstrações da forte comunhão (mesmo simbiose) entre os animais prediletos dos Nuer e os habitantes da região. Higiene íntima, adornamento e conhecimento mnemônico das gerações passadas do espécime são absolutamente normais, e dir-se-ia que não tê-los ou não praticá-los com seu “par” seria imoral. A riqueza das nomenclaturas é a maior prova da complexidade das relações sociais aqui. Há a figura do poeta/músico, que compõe para suas crias, fora a legião de mitos relacionada ao amor ao gado (alguns inclusive denotando submissão dos humanos a uma remota maldição da vaca, que condenou os humanos a morrerem em prol desta, mas que quando o último humano perecesse também pereceria o último exemplar do animal quadrúpede – é o mito do Homem, do Búfalo e da Vaca, p. 58).

Ecologia

Cada minúcia é de valor no delineamento estrutural do modo de existência nuer. A única maneira dos Nuer e seu gado subsistirem é compondo-se como semi-nômades de acordo com as estações – dir-se-ia que há as aldeias (sede, matriz) e os acampamentos, filiais emergenciais. Quando a seca está em sua fase mais aguda, os Nuer se dirigem aos postos mais baixos de suas terras quase-planas, onde há açudes permanentes. Por outro lado, quando as chuvas mais abundam há a ocupação de entrepostos dos mais elevados, onde restem pastos em condições (se não de todo secos – porque, afinal, chove –, ao menos não-encharcados). As aldeias das tribos do leste parecem se situar em uma espécie de meio-termo entre essas duas instâncias extremas (nas beiradas de rios temporários e que no entanto não drenarão antes da forte escassez de chuvas de três ou quatro meses). Já os Nuer do oeste, onde esteve Evans-Pritchard, parecem ser privilegiados nesse ponto, pois estão situados ao longo de muitos rios perenes e alguns não precisam executar um decisivo movimento migratório (“…pode-se dizer que eles [os Nuer do oeste] viajam muito menos do que as tribos Nuer do leste, especialmente os Lou”, p. 74). Outra faceta relevante é que os orientais, embora migrem mais, são mais ricos em cabeças de gado.

O refinamento técnico dos Nuer é, novamente, de encher os olhos. Não fosse o processo de queimada controlada que executam na época da seca, não seria possível para o gado fazer o percurso das aldeias até os acampamentos improvisados para salvá-los da mortificação da vegetação. Por outro lado, nas instâncias úmidas, há que se tomar uma série de cuidados a fim de evitar mazelas como doenças mais facilmente transmissíveis com o abunde de água e insetos (as densas nuvens de mosquitos perigosos são apontadas como uma das barreiras da expansão territorial Nuer, fato contrabalançado pela tendência belicosa da conquista, mormente face aos Dinka). Nessas transumâncias faz-se essencial a divisão por grupos etários, pois os mais jovens geralmente vão alguns dias na frente, preparando as provisões da “residência de verão”, enquanto que os mais velhos podem permanecer mais um tempo cultivando alimentos (os Nuer são, também, horticultores, mas mais por “obrigação episódica” que por desejo: se dependesse deles, apenas criariam gado, mas não podem prescindir do complemento vegetal em sua dieta). Os Nuer raramente se aventuram na caça a animais selvagens (com exceção talvez da girafa, por motivos estéticos) e são pouco afeitos à coleta de frutos silvícolas encontrados em árvores geralmente distantes das aldeias fixas. Se há um ethos nobre entre os Nuer, este se relaciona com a vergonha promovida pela alimentação com animais pequenos (como galinhas e algumas espécies menores de antílopes) e pela necessidade de ir pescar (prática dos menos favorecidos – ainda assim, é usual que quem traga vários peixes de uma viagem deva oferecê-los aos que encontrar, uma peculiaridade que certamente poderia ser associada aos estudos de Mauss sobre a dádiva).

Aliás, quanto à referência à “obrigação episódica”, cita o autor na página 93: “quanto maior o rebanho, menor terá de ser a horta”, uma espécie de lei fundamental da cultura nuer. E complementa: “enquanto seria vergonhoso descuidar-se do gado, não há sentimentos fortes em relação à falta de atenção pelas hortas”. Já sobre a ênfase aparente no “estado constante de miséria”: não sei se se trata de um enfoque inaudito de etnografia, mas o fato é que antes, para mim, não era palpável a (sempre relativa) penúria e a imensa cornucópia de dificuldades e superações respectivamente encaradas e logradas pelos Nuer, ou melhor, pelos nativos, quaisquer que sejam. Será um povo especial em que essa característica é gritante ou todos são assim, inclusive nós? Nossa medicina se crê mais avançada, mas o real é que traz nas costas de seu desenvolvimento problemas (de nossa perspectiva) mais avançados, ou seja, seus melhoramentos são em si um germe auto-destrutivo – a cura para alguns males é a criadora de novos problemas, numa cadeia interminável, criada por ocasião de uma ética ambígua de progresso! Um exemplo é a epidemia do vírus HIV, claramente resultado da vida em grandes aglomerações, fator que só se tornou viável após a socialização dos cuidados médicos. E quantos não são os dilemas respiratórios ou cardíacos derivados das novas rotinas, estas por sua vez resultantes de vitórias do médico sobre o meio ambiente lá atrás? Em resumo, não só Evans enfrentou tantas peripécias e dissabores, como já relatado, mas os próprios “estudados” estavam em luta de sobrevivência recorrente, diante de seu observador (vide mito do Estômago do Homem, à página 96)! Já não soam tão terríveis como na imagem fornecida na introdução.

Eis que, à página 99, desponta uma revelação importante: os Nuer não conhecem o ferro – salvo em esporádicos comércios com ou, mais provável, pilhagens dos árabes –, e tampouco têm tanto contato assim com a pedra, surpreendentemente ausente nessa região. Sua matéria-prima majoritária são os próprios tecidos animais e vegetais. Isso motiva classificações precipitadas como “civilização pré-idade da pedra lascada”, ou melhor, “pré-civilização”, se fôssemos usar os termos mais negligentes. Com efeito, a improvisação material, aos olhos do Ocidente, é dantesca, haja vista a raridade até da madeira. O combustível mais usual de maneira alguma é fóssil: trata-se das próprias dejeções do gado, utilizadas para erguer as fogueiras de inverno que afugentam as pestes bovinas.

A idolatria do gado é vista pelo autor como algo tanto endógeno quanto exógeno; é tanto parte da essência nuer quanto a(o) atividade/modus vivendi mais rentável do ponto de vista climático-geográfico, ou seja, do mundo, do universo nuer, e isso já foi ressaltado anteriormente quando se disse que, tendo em vista o ecossistema, seriam impossíveis melhoramentos técnicos e aperfeiçoamento da produtividade material ancestral deste povo.

A tese do autor se deslinda na página 101: a alta solidariedade interna (sufocante, diria um estrangeiro) se explica pelo fato de “os Nuer não venderem sua força de trabalho” e por haver uma hipertrofia de valorização do gado, o que os torna, praticamente, ocidentais de um tipo reverso: substitua-se o valor que a moeda tem para nós e chega-se próximo do que representa o gado para tal cultura! Mas há sentenças incoerentes de Evans-Pritchard nesta seara: “quanto mais simples for uma cultura material, mais numerosos são os relacionamentos que se expressam através dela”. Antes, se diria o contrário. Está certo que a poderosa interdependência de uns em relação aos outros promove muitas relações inter-tribais, mas o caso é que não há aqui, salvo raríssimas exceções, a figura do especialista. Além do mais, em termos urbanos como os conhecemos, a extensão dessas redes é minúscula, quando não é preciso, quase, arredar o pé da choupana para se conseguir tudo de que se precisa; comparações como o Ocidente, na verdade, gerariam constatações controversas: ou somos muito mais “solidários”, porque muito mais interdependentes (dependo da farmácia, do padeiro, do eletricista, etc.), ou isso quer dizer que não somos nada solidários. Tudo depende do quanto de equivalente universal nós temos, para “falar a língua de todos”, que é o dinheiro. Dentre os Nuer, esta língua parece ser falada tão-somente no kraal, de forma simbólica. Por isso a confusão entre “estreiteza” e “largueza” de cultura material. Não são poucas as vezes que Evans fala em “pobreza da cultura”, de modo imprevidente (e ele mesmo, subentende-se, disso tem consciência), quando está mais do que claro que não existe cultura pobre, pois cultura é o que se faz com o que se tem, e mesmo “o que se tem” não pode ser pobre, se não se conhecem parâmetros como os nossos para comparar-se, e se, mesmo os conhecendo, há franco desinteresse e incompreensão (o que é nossa riqueza? Um Nuer absolutamente não a vê!).

Tempo e espaço

O Nuer convencional se acostumou a duas representações do tempo: o ecológico e o estrutural. Um é tido como aparentemente cíclico e cíclico de fato. O outro, como manifestamente progressivo e sub-repticiamente cíclico (há aqui, não sei se é exagero dizê-lo, cegueira intelectual, se se pensa que o próprio tempo do Ocidente, o absoluto, newtoniano, é progressivo até as últimas conseqüências – quando olhamos mais de perto, vemos que os Nuer não são muito diferentes de nós mesmos…).

Ignora-se o que um relógio possa significar aqui. As diretrizes básicas são as atividades desempenhadas. Ou seja: no final, o gado, sempre ele. Não é o sol e sua posição no firmamento, em si, o que vai determinar a orientação do sujeito, mas o que é que o gado estará por fazer àquela altura (pastando, por exemplo). Não entrarei em detalhes de nomenclatura de estações e meses, para ser sumário. Apenas digo que é um mecanismo informal (eles não possuem escrita) que causaria inveja a qualquer Gregório.

Para o observador ocidental, há uma limitação que se subscreve a tempos remotos: na linguagem, é difícil precisar acontecimentos já de há vários dias ou que acontecerão “exatamente daqui a tantos dias”. No entanto, não é pela ausência da mesma forma ocidental que o conteúdo não é passível de transmissão entre esses curiosos nativos. Parece que, considerando-se o tempo estrutural, não alcançam, por exemplo, algo mais do que 50 ou 70 anos, porque não chegam a computar uma dezena de gerações. A sétima é a última da contabilidade. Mas esse tempo das últimas gerações “mundanas” é considerado apenas a esfera de acontecimentos cotidianos em que as coisas se repetem sem-fim; enquanto que há, para além disso, um tempo imemorial, eqüidistante de todas as gerações mundanas, chamado tempo mítico, onde todas as tradições tomaram lugar, foram começadas pelo ancestral mais remoto daquela linhagem comentada no começo (a descendência unilinear).

Quanto ao espaço, é sabido que pode ser que uma aldeia que esteja mais próxima fisicamente da outra pode estar estruturalmente mais distante dela que outra tribo fisicamente mais remota. Tal distinção respeita filiações culturais e não é de se estranhar. Além disso, rios são considerados fronteiras concisas entre povoações, enquanto mato alto, mesmo que mais espesso do que a latitude de um rio, vem menos em conta. Detalhes técnicos mil não serão considerados aqui.

Ao adentrar as questões de guerra, o espaço adquire importância, porque Nuer não combatem apenas forasteiros, mas antes seu axioma é que “quão mais semelhantes consigo”, mais propensos estarão à rivalidade (cf. 144)! É uma espécie de ética para a vida, a do valor da diferença e da luta (estranhamente entrelaçadas com a homogeneidade, como no mito de surgimento de Nuer e Dinka). Por isso, há muitos conflitos internos, em que pese mediados por certos códigos de honra. Tribos costumam se estranhar, aldeias também possuem contendas entre si, mas quanto menor for o grupo, logicamente mais solidário ele é, porque mais interdependente. Portanto, quanto mais geral for a questão, maior terá de ser a união contra um inimigo comum (aí, então, há uma confederação – frouxa, é verdade – de tribos no enfrentamento dos Dinka, exemplarmente). Mas, ressalte-se, não há nunca uma centralização das atribuições governamentais. O traço guerreiro dos Nuer talvez seja sui generis. Não é razoável explicar todo ele pela conquista do gado. Certo é que os jovens muito anseiam pelo dia em que combaterão pela primeira vez. Eles são amantes da prática, por si mesma. Em contrapartida, há uma frase no capítulo 2 em que um Nuer enumera dois males de seu povo, “a guerra e a fome”, explicando por que não costumam combater na época da seca e das privações, mas mais costumeiramente naquela em que há mais fartura, cerimônias e festas.

Essa imbricação, a que me referi como “lógica” logo acima, pode parecer um contra-senso a priori, mas basta averiguar exemplos no nosso mundo: grupos menores são harmônicos se diante de um inimigo em comum, enquanto que, na ausência deste, tendem à fragmentação e crescimento de rivalidades, eis algo com força de lei. Em filmes hollywoodianos, tal qual Independence Day, a “raça” (é bem esse o termo) humana se une sob a bandeira americana para derrotar alienígenas, uma ameaça fictícia. É bem plausível que isso se tornasse verdade caso acontecesse. Por outro lado, assim que não há mais esse ameaçador elemento externo, vemos uma oposição clara entre Terceiro e Primeiro Mundo (FMI, continente africano à deriva – como é o caso mesmo do Sudão –, misturas de etnias em um mesmo Estado, um empurra a responsabilidade para o outro, etc.). Dentro dos “subdesenvolvidos sul-americanos”, vê-se forte rixa entre brasileiros e argentinos. No assim-considerado “homogêneo Brasil” (quando da perspectiva do cenário internacional), de repente, descortina-se uma espécie de “xenofobia atenuada” entre, digamos, cariocas e paulistas. Mas é fácil verificar que, numa hipótese, se gaúchos repudiarem e se insurgirem contra os paulistas especificamente, os cariocas, seus vizinhos geográfico-históricos, logo virão em seu socorro, e os dois andarão de mãos dados contra um “adversário coincidente”, considerado “menos brasileiro”… …e assim por diante até a célula mínima da casa. “Minha família é melhor do que a sua”, por outro lado “detesto as limitações que me impõem minha família, enquanto vejo na sua mais liberdade de movimentação”. Essa é a história do mundo. Pritchard ao mesmo tempo nos leva para nossas origens, instaura debates metafísicos como poucos, e parece ignorar a grandeza do que discute. Talvez não coubesse em seu livro e ele quisesse deixar essa parte conosco… Quanto a sua missão, os Nuer, ele mesmo se mostra muito modesto, mas suas conclusões são amplas.

Vícios e virtudes da antropologia norte-americana (com ênfase em Boas)

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 22/09/08

 

Franz Boas apresenta uma ênfase no dinamismo cultural e propõe uma etnografia que concede atenção ao indivíduo em sua relação conflitante-mimetizadora com seu meio cultural. Aceita-se, finalmente, que o indivíduo deixe de ser somente efeito (tendências behavioristas) e torne-se também a causa dos fenômenos sociais. Boas começa a se desbaratar do mecanicismo reinante justamente aí, embora não o possa vencer (a procura de uma “metafísica dos costumes”, que o faz execrar os evolucionistas, é o ponto vigoroso e ao mesmo tempo o invólucro da grande debilidade desta escolamais detalhes no final do documento).

Conforme mencionado, a antropologia norte-americana (Lewis Morgan, por exemplo, é estadunidense, mas obviamente discrepante deste movimento; considera-se Boas o fundador, ou um dos fundadores, deste paradigma, cujo adjetivo pátrio não deve ser encarado de forma tão séria e inflexível) é acima de tudo uma ruptura com as concepções evolucionistas e uma crítica do método comparativo da Antropologia. Em seu lugar, Boas delineia um método histórico. O homem não pode comparar fragmentos de uma cultura com fragmentos de outra, mas apenas culturas entre si como um todo, dois sistemas totalizantes absolutamente lógicos e coerentes de uma perspectiva interna – a do nativo. Evitam-se assim erros de conclusão diante de metonímias – características isoladas sem uma etnografia profunda e abrangente por trás não seriam mais do que isso: características isoladas, ainda amorfas, incapazes de caracterizar com precisão um povo ou etnia. É, em suma, o descarte da idéia de “estágios lineares”, como se a espécie humana percorresse uma escada e os que estivessem mais acima fossem as civilizações greco-romano-européias (Morgan), haja vista a falta completa de qualquer possibilidade de verificação da hipótese (pressuposto etnocêntrico). Há dados perdidos que podem ser recuperados e levam tempo; e há dados perdidos para sempre (limites inerentes à Paleontologia, por exemplo): o pesquisador deve se adaptar a esse estado de coisas e tirar conclusões com o que está à disposição, consciente de que contribuirá comparativamente pouco para a ciência antropológica, “aguardando” que seus sucessores possam cobrir lacunas de seu legado pela continuação do estudo histórico dos povos “primitivos” semi-afastados de nossa cultura (sobre esta intensa modéstia do prisma antropológico boasiano, também reservo palavras ao final). “Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou menos engenhosos. O trabalho ainda está todo à nossa frente” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 39).

Aliás, entra em campo aqui a idéia do processo de “aculturação”, quer seja, as trocas culturais inevitáveis entre dois ou mais povos, choques recorrentes de onde nem uma nem outra cultura saem ilesas (não há um “modo de ser” dominante que sobrepuje o outro – o homem branco europeu também sofre modificações profundas após conhecer vivências alternativas, como demonstra a revolução eclesiástica que teve que se promover para acolher os “indígenas” e os negros africanos no seio da “raça humana” conforme postulados da Igreja Católica, que até antes das Grandes Navegações não os reconhecia como seres humanos).

O método histórico (ou neo-comparativo, porque obviamente não é uma metodologia que prescinda da comparação, mas a “aperfeiçoa”) de Boas está num ponto-médio entre as influências geográficas, o causalismo das interações culturais exógenas e endógenas e a anatomia. Ou, antes, em “algum lugar no meio”, só que mais tendente à interação social que à geografia e a qualquer traço fisiológico: o Homo sapiens desenvolve técnicas que permitem a adaptação a diferentes espaços sem que isso leve povoações vizinhas a evoluírem de modo parecido. Há, inclusive, uma firme denúncia de Freud como mero discurso arbitrário, não menos arbitrário que quase toda a psicologia europeia desenvolvida até então.

Boas não só renega o evolucionismo mas também o difusionismo, sublinhando a possibilidade de desenvolvimentos análogos paralelos (nem toda similaridade cultural se explica por uma raiz comum do costume – dada a finitude de aspectos apresentáveis na realidade, natural que eles se repitam de forma espontânea entre variados agrupamentos humanos). Cada povo primitivo tem sua história, o que ainda era negligenciado àquela época. Ou seja: internamente, há desenvolvimentos característicos. As coisas novas não nascem somente do intercâmbio cultural (em que pese Boas ressaltar bastante este evento). Negá-lo seria pensar que o próprio Ocidente como unidade nunca houvesse existido. Uma ilustração do próprio autor se refere à gênese da religião cristã: “O Cristianismo não nasceu na Europa ou na América” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 99), apesar de ser forte hoje justamente nestas regiões. Nota-se a veemência de Boas em esclarecer o quanto a crença no difusionismo puro seria algo “hipertrófico”, que reduz por demais a importância de cada instância cultural e nada explica, porque a origem de dado costume, em cujas costas todas as variantes hoje observadas se debruçariam, jamais poderia ser encontrada. Eis uma espada de dois gumes que será aprofundada na conclusão do artigo.

Nos textos dos antropólogos da vertente norte-americana transpira-se um reforço da cultura, a afirmação da autonomia do campo cultural. “O superorgânico” – de Kroeber – é uma espécie de manifesto dessa corrente, expondo o abismo crítico entre o Homo sapiens e seus parentes remanescentes no mundo. Já que mencionei um autor auxiliar, devo lembrar do freqüente recurso, por parte desses pensadores, a exemplos facilmente compreensíveis a fim de consolidar o conceito de aculturação. Benedict e Kroeber são os que me vêm à mente: crianças “criadas” por lobos que jamais aprendem a falar qualquer dialeto humano; um macaco criado com um bebê humano em seus primeiros anos de vida e que logo é ultrapassado pelas capacidades cognitivas imensamente superiores do segundo; uma criança francesa que cresce indistinta entre chineses, exceto, claro, por sua fenotipia; sociedades de insetos – que são “sociedades” apenas no sentido mais pobre da palavra, visto que apenas o homem seria capaz de gerar processos não-inatos em seu meio; o famosíssimo paralelo kroeberiano do vôo do pássaro e do avião – o animal levou milhões de anos para conquistar os céus, e pagou um alto preço biológico por isso (perder características reptilianas, entre as quais os membros superiores em formato de pata, com vistas a ganhar asas), enquanto o homem pôde lográ-lo pelo seu intelecto, “sem nada perder” (embora tivesse transformado o mundo de forma irreversível ao produzir esta célebre máquina). Outras analogias são utilizadas pelos autores, mas a variedade listada já é satisfatória.

Sobre as limitações do método histórico – Ora, assumir, como evocado no primeiro parágrafo, que tudo é causa-e-efeito, é tautológico. Cada coisa é o que é, justamente por não poder existir dissociada do todo, ou seja, não ser em-si nem para-si, mas ligada ao mundo, esse “devir caótico”. Claro, porque “mundo” é só uma palavra, e a observância desse mundo é modificada de cultura para cultura (e Boas é um ensaio desse perspectivismo que penetra, então, nas ciências humanas). E dizer que não existem “fenômenos” culturais independentes é atribuir sempre à sua origem uma dúvida. Isto é acertado. Mas o que ocorre é que se torna uma dúvida insolúvel: o método histórico não poderá alcançar a metafísica dos costumes de todas as tribos afirmando, soberanamente, quando e em que localidade principiou tal coisa, simplesmente porque as interações entre os povos são muito complexas e não há confiabilidade em registros do passado (que já podem ter se dissipado no presente). Além disso, os “porquês” continuariam indefinidos. Não seria possível apurar a motivação do homem “que descobriu o fogo”, não sendo este homem mesmo (conceituação absurda). É uma Antropologia ambiciosa mas manca, carente de essência. Como tudo está imbricado com aspectos ao seu redor, é nulo pretender-se uma gênese. Afirmar a falta de independência do fenômeno acarreta a impossibilidade de chegar a tal fenômeno na forma pura: “Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem – em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 33). Há que se tomar cuidado com a preponderância da investigação histórica: não é raro o historiador que se depara com a cauda da cobra e quando a agarra percebe se tratar meramente da cabeça! De qualquer modo, se há um “ponto crítico”, suscitado pela escola, que separa indizivelmente a animalidade da humanidade, e seu alvo é a cultura, deveriam se concentrar nos fenômenos – coisa que não fazem, buscando causações remotas quase na natureza. Portanto, o empreendimento ontológico de Boas é seu maior mérito, idéia que vence concepções de progresso ilimitado e irrestrito de um povo etnocêntrico, um sinal de amadurecimento da Antropologia, porém, outrossim, um sintoma de sua necrose, da crise dos valores ocidentais, da impotência em encontrar essa mesma metafísica. O pensamento de Boas se encontra em uma interessante encruzilhada!

Há, adicionalmente, a questão do “simples” e do “complicado” – voltar-se para o Ocidente tem sido praxe somente em paradigmas mais recentes da ciência antropológica: os norte-americanos se recusam, neles impera a modéstia! Tais facetas ficam patentes nas seguintes passagens, diluídas na obra de Boas: “Abstemo-nos de tentar solucionar os problemas fundamentais do desenvolvimento geral da civilização até que estejamos aptos a esclarecer os processos que ocorrem diante de nossos olhos.” (BOAS, Franz. 2004 [1920]. “Os métodos da etnologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 47); “A menos que saibamos como a cultura de cada grupo humano se tornou aquilo que é, não podemos ter a esperança de alcançar qualquer conclusão relativa às condições que controlam a história geral da cultura”, e um pouco mais adiante: “Seria necessário, portanto, desistir e considerar o problema insolúvel?” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 97-98). Percebe-se aí a contradição: a humildade se torna arrogância quando se pensa que considerar os outros “estruturas simples” e a si mesmo “imensamente complexo” é parecido com o que vinham fazendo os evolucionistas… Uma postura parecida, em sua miopia, com o projeto linguístico chomskyano, natimorto pois estereotípico e “procrastinador” (exigente de uma neurociência avançada que jamais chega).

Agora, as contribuições do modelo, para além das que já foram citadas: efetua-se um duro golpe nas concepções eugênicas/racialistas típicas das décadas de 20, 30 e 40 do século XX ao se destrinchar o mito da pureza racial, de frágil sustentação ideológica. Além de Boas, Mead é exímia nesta modalidade (desnudar o “bode expiatório”): sua exposição sobre os “desajustados” demonstra o quanto é errôneo perceber o erro no indivíduo-em-si, posto que tal “erro” só existe quando contrastado com um padrão cultural anterior ao surgimento do ser. O desajustado é uma figura onipresente em todas as culturas e constitui as pessoas-exceção. Para contrapor a visão ocidental de que o louco está à margem da sociedade, vêem-se até povos primitivos em que ser epiléptico é, ao contrário, um sinal de ligação entre o imanente e o transcendente.

O evolucionismo do século XIX e “O ramo de ouro”

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 30/08/08

 

              James Frazer descreve a evolução do pensamento humano de forma bastante peculiar. Pertencente ao fim do século XIX, ideologicamente, e filiado ao evolucionismo (primeiros esforços de sistematização da Antropologia), escreveu uma obra de 13 volumes publicados ao longo de décadas no intuito de decifrar os enigmas de nosso passado, batizados de O ramo de ouro. Como seria impossível ler, no presente curso, esses milhares de páginas, recorri à sintética introdução de Mary Douglas, antropóloga contemporânea, que delineia a própria evolução geral do trabalho mais vigoroso de Frazer, além de contar com trechos de uma versão condensada de O ramo de ouro.

            Desvendar as regras do sacerdócio em Arícia era o declarado objetivo principal dos escritos de Frazer. Mas há algo maior por trás, o que é exposto pela própria Mary Douglas: tratar-se-ia de uma analogia para a compreensão de uma cosmogonia universal, válida para todos os homens. A ambiciosa totalização empregada por Frazer é fonte de aplausos e discórdias: a sistematização do homem é o trabalho mais amplo que pode haver! Empreendê-lo tem seu preço. Uma visão panorâmica de múltiplas realidades e a necessária simplificação lingüística geram distorções. Mary Douglas alerta, no entanto, para o reverso da moeda: a falta de ambição gera resultados por vezes pífios. Se, por um lado, totalizar é perder de vista muitos detalhes e ampliar a margem de erro do trabalho, deixar de fazê-lo (e isso tem sido corriqueiro atualmente) torna a reflexão próxima à nulidade. Obviamente, não é meu objetivo aqui discorrer mais longamente sobre uma questão tão complexa do “fazer Ciência”, então sigamos.

            Frazer foi iniciado no cristianismo pela família, posteriormente se interessando por religiões exóticas. É no terreno religioso que se encontra o cerne de suas conclusões. Em um período no qual o irracionalismo ganha terreno, o autor britânico prima por fazer dele uma categoria racionalmente abordável. Portanto, Frazer pode ser considerado um psicólogo-antropólogo, por mexer com o inconsciente e o tácito de várias narrativas. Utiliza o método comparativo (múltiplas simbologias diferentes mediadas por um “fio de Ariadne”) e, a despeito das críticas mais recentes sobre suas pré-noções (mais adiante as comentarei), foi um evolucionista que entendeu que os povos primitivos não usufruíam de uma “existência incompleta” somente porque de nossa perspectiva ela não faz tanto sentido. Aqui entra o papel da alteridade: “sentindo-se” como o ser humano situado no mundo mágico, que não separa imanência e transcendência, Frazer via a lógica e coerência internas dos cultos, magias simpáticas (poder-se-ia alegar que nosso arraigado hábito de arrumar a cama teria a ver com Pitágoras!), magias públicas (aponta-se até uma curiosa e eventual gênese do funcionário público moderno, entre os “selvagens”!), tabus e imolações de deidades (Jesus Cristo, o deus-homem, se afigura como um resquício de “pré-modernidade” em nosso moderno modo de ser: o elo entre o sagrado e o mortal) sem aderir ao juízo de valor do “estrangeiro” de considerar aquele sistema de crenças absurdo. Em suma, é a lição de que, em uma ilustração “totalizante”, como a adoraria Frazer, a teoria do Big Bang poderia ser a lenda de Diana e Vírbio, não obstante os físicos jamais desconfiarem dessa idéia! Mito e ciência explicam a sua maneira o mundo.

                 Entre as contribuições da escola evolucionista como um todo, temos: possibilitou a construção de árvores genealógicas detalhadas dos povos estudados (notem-se as intrincadas diferenças nas regras de casamento nos múltiplos povos abordados); é a abre-alas das pesquisas em Psicanálise (adoração do totem e imposição do tabu).

            Voltando a Frazer para comentar justamente de suas fraquezas paradigmáticas (concepções evolucionistas), ele é incapaz da auto-crítica em relação ao modelo de desenvolvimento da Inglaterra do século XIX – seu espírito de tempo é o das leis de progresso sociais e da fé no poder explicativo da Ciência (ainda um meta-discurso, com letra maiúscula). O exercício de expor as limitações do autor deve ter a ressalva de estar situado vantajosamente no tempo; Mary Douglas adverte que não é sadio o rótulo de “racista” ou “eugenista” para alguém como James Frazer, envolto por opiniões tão mais extremadas que a dele. De qualquer modo, o inglês estipula como uma falta de discernimento o fato de o selvagem não diferenciar o natural do sobrenatural. Contudo, apenas porque no mundo moderno o homem faz a separação, cria pólos, não quer isso dizer “incapacidade” por parte do selvagem. São apenas dois sistemas de percepção de mundo com características diferentes – isso se pode contrastar, embora não graduar (como adverte Boas – que, aliás, já olha com menos complacência que seus colegas evolucionistas para o termo “selvagem”). Frazer comenta também que os selvagens partiram de falsa premissa para compor seu todo harmonioso – como se o “civilizado” não dispusesse dos mesmos a prioris, e um deles é sua convicção absoluta no Estado e na autoridade, no secular e no sagrado, na objetividade.

                  Voltando ao lado menos míope de James Frazer, estabelece-se uma ligação – e ao mesmo tempo distinção – inexorável entre magia e ciência, entre as mitologias dos povos antigos e o mundo moderno. Afinal, a magia seria uma tentativa inicial, já apoiada pela lógica, de buscar a verdade. Segundo os preceitos da escola evolucionista, nesta jornada à procura do verdadeiro, nós, utilizadores do método científico, estaríamos em um ponto mais avançado que nossos predecessores, dando prosseguimento a suas importantes descobertas primordiais, porém bem mais aparelhados e civilizados, capazes de encarar questões complexas antes impensáveis. No arremete da versão condensada de O ramo de ouro que nos foi concedida, o autor chega a afirmar que “nossas semelhanças com os selvagens ainda são mais numerosas do que as nossas diferenças” (FRAZER, James George. 1982 [1890]. “Nossa dívida para com o selvagem”. O ramo de ouro, São Paulo: Círculo do Livro. p. 98), reconhecendo que a ciência pode não passar de uma solução intermediária nesta caminhada à procura da “hipótese que se supõe funcionar melhor” (idem), ou seja, rumo à verdade, pois um dia já se pensou que o mito e a religião representavam os instrumentos definitivos nessa busca – antes do surgimento da Antropologia – e é salutar imaginar que no futuro o homem se depare com mais e mais respostas provisórias de novos tipos. Mary Douglas encerra sua introdução ao livro de James Frazer da mesma forma. Considero que a controvérsia palpável do meu texto, oscilando entre os méritos e malogros de Frazer, se deve à própria ambigüidade do autor ao longo de sua obra e da dificuldade em unificar sua visão de mundo.

DIVERSIDADE NA ESCOLA DEMOCRÁTICA & O DILEMA DA MOTIVAÇÃO: Violência intramuros e uma ligeira proposta de integração e autonomização do universo jovem

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Psicologia

Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento

Disciplina: Fundamentos de Desenvolvimento e Aprendizagem (124966)

Semestre: 1/2009

Professora: Ana Flávia do Amaral Madureira

Turma: F

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Brasília, junho/2009

Have Cool, Will Travel1

Mamas pack their lunches, kiddies pack their guns

Wishing it will go away, but nothing’s getting done

A shot heard ‘round the world, when a mother’s baby dies

We the people, point our fingers, blame and wonder why

Face it and fight or turn high tail and run

Til it comes back again just like the rising sun

Say they do all they can, it’s just another lie

The answer’s plain to see, nobody wants to try

[REFRÃO]

There’s no recess and no rules in the school of life

If you listen very closely you’ll see what it’s like

Have cool, will travel

Tell myself it ain’t true, they just cannot see

Grown up or sewn up, the medicine’s worse than the disease

I have cool, will travel

Here we go

TEMA 1: Gênero, sexualidade e diversidade na escola

Para descrever a diversidade na escola em regimes democráticos e tratar das questões de gênero e raça, dentre outras, é essencial falar da violência dentro dos muros e das cercas das instituições, afinal esta é uma das conseqüências indesejáveis da massificação do ensino e nela se refletem os desnivelamentos e divergências inter-pessoais próprios a qualquer sociedade. O desafio que nos é posto é o de pensar o outro como a realização de uma cultura plural e aberta a novas idéias e configurações, e não como estrito gerador de conflito e empecilhos, mais um concorrente no mundo do mercado de trabalho. Isso é sobretudo verdade em um país que ainda tem muito o que avançar em termos de políticas afirmativas para as minorias e demais categorias desfavorecidas ao longo de seu extenso território.

1.1 Definição do problema, a mulher na escola e a situação brasileira

A violência escolar é um tema que começou a ser abordado apenas recentemente. Oficialmente, desde meados dos anos 70 violência na escola não pode ser considerada a punição física do professor sobre o aluno, porque esta prática foi virtualmente erradicada após milênios em voga (remontando aos gregos antigos e hebreus). Casos neste sentido são excepcionais e o estudo da violência sistemática no ambiente da escola passou a se concentrar nas relações aluno-aluno e na vertente psicológica do binômio adulto-criança ou adulto-adolescente2. Há ainda o vandalismo, quer seja, a depredação da propriedade pública ou particular (ABRAMOVAY, 2002, p. 42).

A respeito de tipos de violência entre alunos, o que mais nos interessa, há aquela pontual e a que se apresenta de maneira recorrente, repetitiva e padronizada. Um estupro seria um exemplo da primeira, porque em tese será realizado em uma ocasião, sem continuidade do ato no tempo e sem registros de agressões antecedentes. Caso se trate de uma aluna sistematicamente rotulada de algo vexatório ou reprovável, que sofra injúrias e mesmo investidas físicas mais leves que um estupro, porém não-consensuais, tem-se o bullying e a detecção de um problema estrutural de sexismo3. Bullying is defined by Nancy Day (1996: 44-45) as physical or psychological abuse against someone who is not capable of defending him/herself.” (“O bullying é definido por Nancy Day como abuso físico ou psicológico contra alguém que não é capaz de defender a si mesmo.”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 46, grifo nosso). Mais à frente, acerca do bullying em associação com o gênero: “She [a autora Nancy Day] says that the majority of the bullies [autores do bullying] are boys, but that girls can be bullies as well. The girls that are bullies sometimes use indirect methods like gossip, manipulation of friendships, lies and excluding others from the group.” (“Ela diz que maioria dos bullies são meninos, mas que meninas também podem ser bullies. As garotas que são bullies às vezes usam métodos indiretos como fofoca, manipulação de amizades, mentiras e exclusão de outras(os) em relação ao grupo.”) (Ibid.).

Outros autores fazem separações relativas a dano físico ou psicológico ou consideram como violência apenas o crime. Segundo essa linha de raciocínio, para ser caracterizado como vítima de violência (necessariamente física), basta que o estudante tenha sofrido um atentado contra três artigos dos quais é o soberano absoluto: sua vida, sua saúde ou integridade, sua liberdade. O que é difícil de precisar, senão impossível, são os limites da transgressão da liberdade. Charlot (1997 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 44) distingue a violência propriamente dita da incivilidade (a humilhação ou falta de respeito). Haveria ainda a violência simbólica ou institucional contra o indivíduo. O aluno pode se sentir alienado pelos anos em que passou na escola; o próprio professor pode reclamar das condições parcas de convivência estabelecidas pelo seu local de trabalho (salas ociosas e desequipadas, ou justamente o inverso, a superlotação; a indiferença estudantil, etc.). Segundo Charlot, a incivilidade é típica da escola, uma concentradora de relacionamentos. Incidentalmente membros deste corpo podem recair na violência formal, como furtos, vandalismo e espancamentos, mas estes são problemas urbanos mais generalizados.

Debarbieux (1998) (Ibid.) chama essa divisão de obsoleta, pois não se deve considerar violências tais, só porque previstas no código penal, como pertencentes à realidade das ruas e expulsá-las conceitualmente das escolas, onde incidem ao mesmo tempo estimuladas pelas incivilidades e como estimulantes das mesmas. Um exemplo capital é o tráfico de drogas, redes internacionais sobre as quais a escola não tem controle, mas nas quais está enredada, constituindo, aliás, um centro de propagação de narcóticos, ponto de encontro entre traficantes e usuários (lembrando que pela legislação só o primeiro é o criminoso). Guimarães (1995 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 65) assinala a necessidade de alguns diretores de escola em periferias e favelas do Rio de Janeiro coadunarem com o modus operandi dos chefes do tráfico visando à manutenção da estabilidade gerencial intramuros. Significa que a escola perdeu seu status de lugar seguro e de proteção ao cidadão em formação, que é uma de suas razões de ser (ABRAMOVAY, 2002, p. 45).

A dificuldade de coibir essas violências mais tácitas e em particular o bullying reside em muitas de suas ações não poderem ser enquadradas em processos judiciais, seja pela abstração excessiva do prejuízo sofrido ou pela sensação de banalização dessas ocorrências. Essa brecha é reflexo da pobreza conceitual do termo violência: Sposito (1998) e Arendt (1961) (apud ABRAMOVAY, 2002, p. 47) apelam para definições mais amplas de poder exercido eficazmente através da própria linguagem. Isso é alarmante porque ao lado do bullying, ou algumas vezes em interseção com ele, há a formação de gangues e de concepções xenófobas.

Outra deficiência metodológica se relaciona ao fato de que, até o presente, na Psicologia do Desenvolvimento e nas Ciências Sociais, é oferecida pouca discussão quanto às relações dos professores entre si, entre professores e diretores e entre professores e coordenadores como um todo (Ibid., p. 58).

Dá-se, finalmente, em fins da década de 90, um consenso: a tipificação do fenômeno da violência escolar como eminentemente ocidental, embora o termo passe a ser insuficiente quando se considera o Japão, nação modernizada nos moldes americanos com um sistema educacional bastante correlato, a enfrentar as mesmas dificuldades do sistema-irmão (FELDMAN, 1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 62). Dir-se-ia, pois, que se refere a processos ubíquos como globalização, expansão dos meios de comunicação de massa, consumismo, crise da família e dos valores burgueses, individualismo, desemprego, intensificação de problemas psicológicos do cidadão urbano, entre outros.

Isso não é dizer que a violência se configura de maneira homogênea no território mundial. Bergman (1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 59) ressalta a peculiaridade alemã da ansiedade e insegurança jovens promovidas pela reunificação do país após a Queda do Muro de Berlim. Sposito (1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 62) destaca as condições sócio-históricas brasileiras que fazem da escola o local por excelência da manifestação da violência (entre elas a perdurável exclusão social). O autor não negligencia, no entanto, a grandeza do país e a particularidade de cada área ou instituição escolar. Ainda não há uma soma adequada de estudos tão específicos. Sposito (2001 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 63) nota o caráter esparso e descontínuo dessa iniciativa metodológica (partir do particular para depois permitir comparações em grande escala), recrudescido na década de 80 pela resistência das escolas em disponibilizar dados.

Ao contrário do exemplo citado acima dos chefes do tráfico, que demonstra inserção da violência na escola via fator exógeno, uma pesquisa que envolveu o Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (LPT-UnB) detectou preocupação com agressões de alunos a professores, contra quase nenhum caso oposto. Porém, o tipo de violência mais difundido nas escolas primárias e secundárias do Brasil seria o vandalismo e a depredação, sobretudo nas públicas (ABRAMOVAY, 2002, p. 65). Uma das grandes motivações apontadas é a perspectiva jovem de que a escola adota uma atmosfera que constrange as individualidades e sufoca o exercício da criatividade. A linguagem burocrática e oficial da instituição seria a antítese da realidade desses adolescentes (SANTOS, 1999, p. 157 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 68).

É sublinhado o fato de que nas zonas mais “acostumadas” à violência muitas das escolas negam a própria incidência desse mal dentro de seus portões. Ou, melhor dizendo, naturalizam as brigas e incidentes, enxergando-os como imutáveis a longo prazo, decorrência do comportamento normal do jovem. É notável, nesse sentido, o que a escandalização midiática pode promover em termos de debates, pesquisas e recursos para a área: em 1997, em Brasília, quando cinco adolescentes queimaram um índio Pataxó na parada de ônibus, a opinião pública foi tão incisiva que em um ano já se via um estudo conciso sobre violência nesta faixa etária na capital, levado adiante pela UNESCO, intitulado “Juventude, Violência e Cidadania: os jovens de Brasília” (ABRAMOVAY, 2002, p. 70). Isso exemplifica o enorme poder da imprensa e da iniciativa acadêmico-pedagógica, desde que haja interessados. O caso ganhou repercussão por ter ocorrido no Plano Piloto, região nobre do Distrito Federal em que essa modalidade de crime é pouco comum.

No combate à violência escolar, pesquisadores de Brasil e França possuem uma interessante convergência: o papel do professor como formador de opinião (Ibid., p. 71). Daí sua flexibilidade e respaldo para ensinar ética em sala de aula (*). O tema 2 sugerirá uma possibilidade lúdica para o atingimento de tal meta.

(*) [Nota acrescentada em 06-08-2019] O velho dilema platônico (e, doravante, ocidental): a virtude é ensinável?”.

1.2 Potenciais causas da violência na escola a partir de um recorte ficcional

O caso de violência escolar mais notório é o que ficou conhecido como Massacre de Columbine High School, escola secundária do Colorado, Estados Unidos, cujo final do período letivo de 1998-1999 foi maculado por um atentado de dois jovens de posse de várias armas de fogo e bombas caseiras, com saldo de mais de uma dezena de mortos. Trata-se do extremo a que pode chegar a revolta estudantil: a supressão do direito à vida dos colegas. Gus Van Sant se inspirou na tragédia para dirigir um longa-metragem (Elefante) em que outra dupla de adolescentes promove uma carnificina em escola norte-americana fictícia de classe média alta.4

A ação é lenta e espaçada e transcorre em longos corredores em um dia de aula corriqueiro, na véspera de um feriado. A câmera acompanha várias personagens e utiliza planos-seqüência bastante compridos. A narrativa é contada de forma circular, o que faz com que o expectador vá e volte na manhã e na tarde dos acontecimentos. Por vezes, um personagem que interage com outro é mostrado tanto na própria perspectiva quanto na visão do segundo: as cenas são refilmadas de um novo ângulo que modifica as percepções. O ritmo despreocupado da(s) estória(s) é abruptamente abandonado quando Eric e Alex ingressam na escola e iniciam os disparos.

O interessante da obra audiovisual é refletir sobre as possíveis motivações dessa fatalidade inesperada, o que nos faz deparar com um nó cego de causações justapostas. A primeira delas é o acesso às armas. Os jovens as conseguiram na Internet. Porém, conforme se torna explícito em outro diálogo, nos Estados Unidos muitas crianças moram em residências com armas. A regulamentação da posse de armamento é frouxa no país, pois foi com base em espingardas particulares que as antigas Colônias obtiveram sua independência. Outra hipótese é a depressão juvenil típica do mundo moderno: falta de amizades, família desestruturada, sofrimento de bullying e forte desejo de vingança contra seus agressores e desprezo das autoridades da escola. Com exceção dos relacionamentos parentais, ambos parecem padecer desses sintomas. O filme retrata Michelle, outra jovem excluída pelas colegas, principalmente na atividade de educação física. O estado deprimido não pode ser considerado justificativa suficiente, pois faz parte do desenvolvimento do indivíduo. Eric, o personagem mais evidenciada na tela entre os dois assassinos, possui habilidade artística: desenha e toca piano bem. Interessando-se ou não pela música clássica – sua postura diante de Beethoven é ambígua –, executa a Nona Sinfonia com esmero. No seu quarto estão empilhados vários videogames. Alex, quando entra no aposento, usa o computador portátil do comparsa para rodar um simulador de tiro em que agride os transeuntes pelas costas. Os dois assistem a um documentário sobre o nazismo e logo depois, contraditoriamente, experimentam um beijo gay (seu primeiro beijo) durante o banho. A discussão em torno dessas meras cenas tem potencial ilimitado: videogames são estímulos para ou atenuadores da violência? Provavelmente os dois. A sensibilidade de Eric para as artes pode se voltar contra ele (e contra os outros) quando a mesma não é reconhecida por seus pares. Mas Michelle consiste em um exemplo de aluna de baixa auto-estima e vítima de bullying que sabe canalizar seu intelecto em outras atividades. A narrativa brinca com a controvérsia de que bons alunos podem ser perpetradores de violência banal porém assídua aos companheiros de turma e que no dia de amanhã o caçador pode se tornar a caça. Dadas essas informações, o caráter excepcional de Eric e Alex ainda não foi desvendado, nem poderá jamais ser. Hannah Arendt bem se refere à dificuldade dos teóricos de definirem o tempo presente: “this rupture occurred when a certain historic event confused the present, creating a void between the past and the future” (“essa ruptura ocorreu quando um certo evento histórico bagunçou o presente, criando um vazio entre o passado e o futuro”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 15).

TEMA 2: Motivação e autonomia no contexto escolar

“Violence in the school environment impose new challenges to the shaping of knowledge, especially in respect to teaching and the incorporation of ‘human ethics’ and ‘human knowledge’ (Morin, 2000)” (“A violência nos arredores da escola impõe novos desafios à modelagem do conhecimento, especialmente com respeito ao ensinar e à incorporação da ‘éticaa humana’ e de ‘conhecimento humano’”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 19). Tendo em vista o papel central do educador na transmissão de valores éticos e de cidadania pelas futuras gerações, é bem a propósito que contemplamos a sugestão da aplicação do RPG (Role Playing Game) à disciplina de História ou à grade multi-disciplinar correlata da instituição.5

Muitos adultos se preocupam porque adolescentes jogam muitos jogos de computador e não passam muito tempo fazendo a tarefa de casa. Talvez porque os estudantes achem os jogos intelectualmente mais desafiadores que seu dever ou, simplesmente, mais divertidos. Seria possível a criação de jogos que se enquadrassem no propósito de ensinar História (TUOVINEN, 2003, p. 2)?

Para responder essa pergunta, primeiro devemos esclarecer o que é o RPG: Role Playing Games são a sinergia dos seguintes fatores: jogo, narração de uma estória, aventura imaginária, tática, ações, expectativa e, acima de tudo, diversão. Jogar um RPG é como ler um livro, mas o leitor pode mudar o enredo. Os RPGs se tornaram mais populares com o passar das últimas décadas, porém ainda são território desconhecido para uma infinidade de indivíduos. Maior parte dos jogadores de RPG é de jovens, talvez na faixa etária entre 15 e 25 anos, todavia há grupos de jogadores mais velhos e mais novos também. A idéia por trás de um Role Playing Game é tomar parte da consciência de uma personalidade (fictícia ou não) e guiá-la em uma ambientação respeitando as características psicológicas dela, usufruindo de suas técnicas e habilidades. RPGs tem freqüentemente elasticidade para diferentes tempos históricos, no entanto na maior parte dos jogos elementos de fantasia, como magia e monstros, estão inclusos. Habitualmente o período da ambientação (o pano-de-fundo para a narração dos acontecimentos) é o medieval, mas esse detalhe não é tão importante quanto um elenco e uma trama interessantes para preenchê-lo. RPGs de ficção científica são outra vertente assaz conhecida. RPGs convencionais são jogados em grupos de 3 a 5 pessoas, nos quais sempre uma delas (o Mestre do Jogo) não participa diretamente, pois ele dirigirá a aventura dos outros, arbitrando suas iniciativas de acordo com as regras e criando sucessivos desafios. Role Playing Games requerem altas doses de imaginação e concentração, uma vez que sessões de jogo podem durar várias horas (TUOVINEN, 2003, pp. 2-3).

Role Playing Games utilizados na escola precisam de regras simples, já que o professor não pode se estender muito na sua explicação. O objetivo principal é fazer os alunos incorporarem seus personagens, refletindo acerca das motivações de personalidades históricas. Reconstruindo eventos do passado, os estudantes entendem História melhor do que apenas aprendendo sobre os eventos, as causas e conseqüências no livro, no quadro-negro ou na exposição do professor. O RPG pode ensinar alunos a compreender que a apreensão da História não se resume a datas e pessoas mortas. RPGs podem ser vistos como a simulação da realidade do momento em que os alunos possuem um grau de conhecimento elevado sobre o evento narrado (TUOVINEN, 2003, p. 3).

Não há questionamento quanto à importância da História. A História é parte da humanidade e todo indivíduo precisa pensar sobre seu próprio passado. No entanto, reconhece-se que se apenas a “parte política maçante” for ensinada nas escolas secundárias boa parte dos alunos se alienará em relação à disciplina, conforme Vygotsky (1986, pp. 149-150 apud TUOVINEN, 2003, p. 5):6

A experiência prática mostra ainda que o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tentá-lo não atingirá outro resultado que não uma verbalização vazia, uma repetição de vocábulos semelhante à do papagaio executada pela criança, simulando a verdadeira apreensão dos conceitos correspondentes e disfarçando um vácuo. (tradução nossa)

Role Playing Games também despontam a nuance dramática dos estudantes. O emprego do RPG em classes de História pode ser inclusive entendido como Dramaturgia pedagógica. Encenando eventos pregressos os alunos aprendem a dramatizar, no entanto a participação dos jogadores pode se tornar um problema na lição de RPG. Uma rodada de sucesso exige a participação de todos os componentes da turma para preencher o critério da inclusão de 100% dos elementos em sala de aula. Por conseguinte, o professor precisa desafiar os alunos ao ponto máximo (questionando, estando “contra”) e ao mesmo tempo incentivá-los (apoiá-los, estando “a favor”), uma postura dual. É também crucial abastecer os jogadores das mais claras instruções. As lições de RPG mergulharão no caos se os estudantes não souberem exatamente o que fazer. Eles precisam de uma quantidade suficiente de tempo para planejar suas ações tão adequadas ao contexto histórico apresentado quanto for possível. Se há improvisação demais nas jogadas a aprendizagem histórica tenderá a minguar, mas concomitantemente eles precisam de flexibilidade para pensar e interpretar por eles mesmos (TUOVINEN, 2003, p. 8).

Por fim, um exemplo de ambientação de um RPG curto para ser dado no espaço de uma hora/aula: demanda-se a escolha de uma fase espacial-temporal e a inserção dos estudantes no meio, cada um representando uma pessoa. Um dos tópicos para a lição poderia ser a Conferência de Haia e o fim da Segunda Guerra Mundial. Os participantes levariam as discussões adiante em grupos de três (Hitler, Stalin, Churchill) e elas seriam apresentadas como conferência para o resto da classe ao final. Se os alunos forem compenetrados na atividade eles provavelmente se divertirão mais do que numa lição ordinária e muitos não terão ciência imediata do quanto aprenderam (TUOVINEN, 2003, pp. 8-9)!

CONCLUSÃO

“Não há racismo nas escolas brasileiras”: é preciso tomar cuidado com esse tipo de frase. Não são poucos os autores que acusam a elite branca de racismo velado. Os indicadores estão aí para mostrar o handicap histórico brutal. Apenas o fato de ser aluno de escola pública ou privada quase pode selar o destino da pessoa (ABRAMOVAY, 2002, p. 194). Mais grave do que isso, há uma tendência da banalização de apelidos a minorias ou raças, e é o que se verifica com os nomes de que são chamados negros na escola, sem que agressor ou autoridades se dêem conta do perpetrado (Ibid., p. 196).

O RPG é apenas mais uma ferramenta de reforço da tolerância e do respeito mútuo, em sala de aula, enquanto fora não são tomadas providências: um homem que joga como uma mulher, um rico que atua como pobre, um conservador que deve ser um comunista, alguém que finalmente entende a dureza e a exigência embutidas no cargo de Rei, um branco nos EUA de Martin Luther King, estar na pele de um imigrante ou nativo colonizado… Estas são experiências antropológicas únicas!

Crianças com deficiência, que não falam ou falam de modo rudimentar aquela língua, que têm manias, excentricidades indisfarçáveis, e que por isso são caçoadas pesadamente; ou qualquer característica inerente ao ser que estimule chacota de colegas; ou pelo simples acaso, ou por demonstrar independência, maturidade ou sabedoria que os outros não têm, que sofrem com isso: todos esses casos são encarnações do bullying. Esse é o lado sombrio da democracia,7 que – ao dar, tragicamente, aparência de uniformidade (o “uniforme” escolar o traz já na nomenclatura) às pluralidades, tão numerosas quanto forem os seres humanos em jogo – acirra esse tipo de choque instaurando tiranias de maiorias, ou de minorias, quando estas se aproveitam da leniência dos demais para perpetuar seus preconceitos impunemente. Como vimos, contudo, a questão é tão delicada que as fronteiras entre vítimas e culpados se embaçam até os estertores do paradoxal. Resta a esperança de sempre poder pensar o diferente…

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, Miriam. Violences in Schools: summary / Miriam Abramovay et alii. – Brasília : UNESCO, Ayrton Senna Institute, UNAIDS, World Bank, USAID, Ford Foundation, CONSED, UNDIME, 2002.

ELEFANTE (Elephant). Direção: Gus Van Sant. Produção: Gus Van Sant. Roteiro: Gus Van Sant. Intérpretes: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Kristen Hicks, Matt Malloy e outros. [Manaus: Videolar, sob licença da Warner Bros. Entertainment], 2003. 1 DVD (colorido, 81 min).

TUOVINEN, Tuomo. Role Playing Games as a method of teaching History, 2003. Tese de pós-graduação defendida no Departamento de Educação Docente, University of Tampere, Tampere, Finlândia.

NOTAS

1 Esta é uma canção da banda Megadeth sobre bullying. Segue sua tradução para o Português: Não Esquenta, Vá em Frente (ou Relaxa, Vai Passar): Mamães preparam os almoços, as crianças suas armas / Desejando que isso tenha um fim, mas nada nunca muda / Um disparo que se ouve por aí, enquanto morre o filho querido / Todos nós, com o dedo em riste, acusamos e questionamos a razão / Encare e lute ou ponha o rabo entre as pernas e corra / Até acontecer tudo de novo, conforme os dias vêm e vão / Diga que as autoridades fazem tudo que podem, é só outra mentira / A resposta é óbvia, ninguém quer nem tentar / (Refrão) Não há recreio nem há regras na escola da vida / Se visse de perto você saberia como é / Não esquenta, vá em frente / Eles dizem que não é assim como eu falo, eles não têm idéia / Crescido ou remendado, o remédio é pior que a doença / Eu não esquento, sigo em frente / Aqui vamos nós”.

2 Aqui focamos o ensino secundário, ou seja, a idade da adolescência.

3 De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa online (http://www.priberam.pt/dlpo), sexismo é: “s. m. Termo empregado pelos movimentos de emancipação feministas para designar a atitude dominadora dos homens para com as mulheres.”.

4 Cf. referências bibliográficas.

5 Um dos horários para a implementação da atividade pode ser o fim-de-semana ou o contra-turno, caso haja dificuldades em encaixar enredos (tramas, histórias, uma lição ou sessão do jogo, cf. adiante no tema 2) no espaço de uma aula e de um cronograma institucional apertado. Já vimos como eventos extra-curriculares do porte foram adotados em vários subúrbios violentos com sucesso, com a abertura para utilização das quadras de esporte como forma de recreação e ocupação das crianças que poderiam estar se envolvendo em atividades ilícitas por não terem outra opção (ABRAMOVAY, 2002, p. 26). Restaria, o que é mais complexo, um acordo entre professor e direção e uma definição de horários em que o mentor da disciplina e outros educadores pudessem estar disponíveis em dias de folga. Recomenda-se que esta atividade seja facultativa para os alunos, cabendo-lhes decidir não participar ou participar tão-somente como expectadores. Além disso, obviamente o RPG é apenas uma estratégia complementar a uma série de políticas afirmativas que dependem de outras instâncias. E não se trata apenas do combate à violência nos arredores dos muros da escola: como atividade cívica, é ideal para escolas de classe média e classe alta onde se tem verificado índices preocupantes de bullying e de neo-reacionarismos.

6 “Practical experience also shows that direct teaching of concepts is impossible and fruitless. A teacher who tries to do this usually accomplishes nothing but empty verbalisation, a parrot like repetition of words by the child, simulating a knowledge of the corresponding concepts but actually covering up a vacuum.”

7 “there has been an increase in violence since the 1980s, during the period of the consolidation of democracy” (“houve uma intensificação da violência a partir dos anos 80, justamente no período de consolidação da democracia”) (PERALVA, 2001 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 307).

Tales of Phantasia (SNES)

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FICHA TÉCNICA

Developer: Wolf Team

Publisher: Namco

Estilo: Role Playing Game

Data de Lançamento: 15/12/95 (JP)

NOTA

9

A primeira grande tacada da TriAce

A curiosidade é um aspecto exclusivo do ser humano. Ainda que alguns gatos que morreram me desmintam, podemos dizer que a vontade do homem de descobrir respostas e de fazer algumas coisas, proibidas ou não-recomendáveis, é a grande responsável tanto por levá-lo aonde está (ao domínio da natureza) quanto por danar perenemente seu destino, como em contos tais quais Adão e Eva no Paraíso (“Adão, para que serve isso aí?”) e mitos como a Caixa de Pandora (“Que bonitinha a tampa dessa caixa, deixa eu ver o que tem dentro!”). Supostamente, arcamos com as conseqüências até hoje. Onde tem mulher, você sabe, acontece tragédia! Ser curioso é, então, uma faca de dois gumes. Entre outros exemplos do que acarreta ser enxerido por demais da conta, podemos citar: o namorado chifrudo que inventa de olhar a agenda da namorada, o serelepe que mexe na casa-de-marimbondo e depois sai correndo todo picado, além de perguntas idiotas como “por que o céu é azul?” (apenas aceite!), “por que cães mijam nas árvores?” ou “como diabos um gamer chega a pôr as mãos em jogos dos quais nunca tinha ouvido falar?”.

Sim, estamos aqui para nos aprofundar na última questão. Se Tales of Destiny, a continuação-remake do desconhecido Tales of Phantasia não tivesse sido lançado nos Estados Unidos, para PlayStation, coisa que não aconteceu ao antecessor, muitos dos americanos que viram em ToD um excelente RolePlay não caçariam essa peça rara supernintendista, e não haveria reviews disponíveis da obra, o que seria uma grande pena! Para finalizar: por que raios alguns títulos vêm para o Ocidente e outros não? Essa não é uma pergunta idiota, mas geraria, certamente, respostas imbecis. Não dá para explicar. Às vezes a indústria dos games é meio maluca.

(Nota: o título foi publicado pela Namco Corporation, dona de clássicos como Ridge Racer e Pac-man, mas a equipe desenvolvedora é o Wolf Team, antiga subsidiária da corporação, que bateu asas e voou alguns anos depois, vindo a se rebatizar como TriAce. Já que maioria dos amantes de RPG a conhece como TriAce e não Wolf, nos referiremos aos developers, desde logo, como tal.)

cubed3 - relativismo Relativismo cultural, é isso aí!

ESTÓRIA

A obra é de (fins de) 1995, então não espere por manifestações feministas ou personagens que se suicidam por não lhes ser dada tanta importância na trama (tendências emocore bastante difundidas uma década depois).

Cless Alvein é o herói que será guiado pelo jogador (ou guiará o jogador) por inúmeras dimensões espaciais e até temporais (viagens ao passado e ao futuro). Em seu caminho o protagonista se aliará a guerreiros de diferentes classes: o arqueiro Chester Barlight é seu amigo de infância, mas depois aparecem figuras como o mago Klath P. Lester, a xamã Mint Adnade (por quem acaba se apaixonando) e a bruxa Arche Klein (definitivamente os nomes não são o forte do cartucho, deu para perceber…), que será o par romântico de seu melhor amigo. Algo os faz mais ousados que as tradicionais marionetes parceiras do jogador (NPCs enventualmente controláveis) durante um RPG, e esse algo se relaciona com a forte personalidade definida para cada um. A estória apresenta reviravoltas – quem são os mocinhos, quem são os bandidos? – e sustenta bem a jogatina.

SISTEMA DE JOGO

A notoriedade de Tales advém do sistema de batalha. Ao contrário do clássico menuzinho e seus “confirma” para ataques simples, e uma pitada de magia aqui e ataque especial ali, além dos heals & potions, o gênero abre espaço para um pouco de ação, à la Street Fighter, grosso modo. Mudando o posicionamento dos aliados – e dos rivais, que correm atrás –, as possibilidades se ampliam infinitamente para cada turno. É possível efetuar ataques básicos de mais de um jeito e soltar os famigerados especiais no intercurso. Não chega a ser um Zelda ou Secret of Mana, uma vez que ainda há turnos, mas os combates se dão em tempo real. O lado ruim são as random battles de sempre (você está andando num mapa aparentemente vazio quando “pipocam” inimigos a sua frente). É aquela velha história: fugir evita a chatice de luta após luta, porém, por outro lado, deixa seu elenco fraco a médio e longo prazos.

humor sexual O game é permeado de humor nonsense – as legendas à esquerda se referem ao apetite sexual da bruxinha do grupo: adivinha por que ela prefere andar cercada de rapazes…

O processo de aprendizado das técnicas dos personagens é mais uma das inovações. Apesar das lutas serem importantes, não o são pelo feijão-com-arroz do “ganhar pontos de experiência e subir de nível até receber special attacks de presente”, procedimento puramente autômato, comum por aí. Em Phantasia o acesso a skills pode variar bastante: da leitura de livros encontrados em pontos impensáveis do jogo à vitória sobre um chefe, passando pela oportunidade de combinar duas técnicas e formar uma terceira (é como brincar de ser barman!). Portanto, não é só andar de um lado para o outro nos campos para se tornar o mais forte: a exploração meticulosa de cada labirinto é essencial.

SOM

As composições de Motoi Sakuraba incendeiam e maravilham o jogador (não que não haja faixas mais calminhas). Alguns ousam dizer que Sakuraba rivaliza de igual para igual com o mestre Nobuo Uematsu (Square, Final Fantasy). Os personagens que mais falam nas seqüências da trama possuem voz digitalizada. Não espere por tantas frases como em Star Fox 64, mas pode se orgulhar do seu SNES! Certos efeitos sonoros são incômodos, como o da convocação ”Tractor Beam”.

GRÁFICOS

A TriAce aplica um Mode 7 (rotação de cenários) apurado, seu mapa geral é primoroso, cidades e dungeons ficaram esteticamente impecáveis. Mesmo nas batalhas, com tanta movimentação, há muitos detalhes no visor, e sem o efeito colateral dos slowdowns!

CONCLUSÃO

Tales of Phantasia dá algum trabalho para ser encontrado em formato ROM. Mas vale cada segundo do empreendimento.

Agradecimentos a Belgurdo do GameFAQs

Rafael de Araújo Aguiar

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