Norbert Elias, Michel Foucault, W.F. Hegel, R. Barthes e o que eles disseram que pode explicar a intelectualidade brasileira em formação

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Sociologia Brasileira

Semestre: 1/2010

Professora: Mariza Velozo

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Estudo Dirigido – Módulo Teórico

Data: 23/06/10 (revisado em 13/07/20)

QUESTÕES 1 E 2

Ao desenvolver a 1ª resposta, descobri que já havia pensado no problema da formação da consciência brasileira ao me deparar com a construção da identidade alemã, portanto esta é uma resposta para as duas primeiras perguntas.

Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, narra a evolução da moral e do sentimento de “civilização”, auto-proclamado, de um povo, no caso, nós mesmos, mas obviamente em um recorte de alguns poucos séculos na transição da Idade Média para a Idade Moderna em alguns solos europeus (Inglaterra – secundariamente –, França e Alemanha, esta última ainda em franca formação – e ver-se-á que este ‘franca’ não foi utilizado aqui à toa!). Descreve, através de uma vasta coleção de casos e uma esmerada pesquisa documental: 1) a interiorização de normas de etiqueta pelas elites emergentes que queriam se distinguir da velha aristocracia e da massa plebéia das cidades e dos campos; 2) a ascensão (e talvez gênese, no senso moderno) da vergonha e do vexame como disposição costumeira em um contexto seguro; 3) e a redução da violência e da exposição ao perigo. Não há valoração positiva ou negativa nessas constatações de mudança, pois o autor não cansa de reiterar que as vantagens e desvantagens das metamorfoses culturais ao longo dos séculos se equivalem.

É inevitável que Elias, em que pese sua fortíssima verve literária e sua prosa gostosa e aconchegante, utilize termos específicos para designar idéias mais amplas em um curto espaço, expediente freqüente no livro: sociogênese e psicogênese são duas delas, e estão na boca de muitos sociólogos de hoje. Nada mais são estas que a conceituação do que foi dito acima, quer seja, a observação da origem, do nascimento, do parto ou da genealogia das idéias e práticas, desde o âmbito estatal até a esfera mais privada, sem que se recaia na ilusão da não-recursividade das estruturas dos eventos na História ou na hipérbole dos padrões de recorrência que explanariam todas as singularidades, porque o socialmente palpável e relevante sobre os quais se pode discursar se encontram entre um e outro desses dois extremos.

Elias investe na distinção entre as idéias francesa e alemã de civilização. Apesar de parecer algo trivial, ambas as perspectivas são tão divergentes e a língua alemã é tão peculiar que seu Zivilisation não seria esse termo imediatamente mais próximo, o sinônimo mais adequado, da denotação francesa. O que é fundamental entre o povo tedesco para compreender sua percepção de superioridade e de nobreza em relação a outras etnias é a Kultur. A partir da Kultur se pode falar da intelligentsia alemã, como por exemplo o jovem Marx fez em “A Ideologia Alemã”. Enquanto “civilização”, conforme a entendemos, do verbete latino, parece nos remeter a populações espalhadas por todo o globo, a uma espécie de sentimento genérico de pertencimento a algo abstrato e inefável que no entanto encontra validade em quase todos os cantos onde já tenha pisado o homem branco europeu, o conceito Kultur é sui generis. Evoca um estado menos fluido e mais estacionário, ligado à identidade de um dos países mais novos do mapa europeu (e aí, então, pode-se traçar um paralelo com o Brasil). Essa análise lingüística é um exemplo do método de sociogênese de Elias. Não só o nascimento e o advento em larga escala de algumas expressões interessam ao autor como a interrupção e/ou a retomada (após longo intervalo) de seu uso, pois a amnésia da gênese de alguma coisa pode relatar muito do que está incrustado no imaginário coletivo, e por que essa informação trafega misteriosamente entre as raias do consciente e do inconsciente.

Os estratos médios, na tentativa de assimilação dos costumes cortesãos (e, na verdade, diante de uma inevitável passagem gradual de bastão das mãos dos aristocratas territorialistas para a dos profissionais liberais, os cortesãos também precisavam assimilar os novos ingressantes, ou seja, havia uma troca de influências que tornava a côrte mais plebéia e os cidadãos “mundanos” mais “sangue-azul”), se adestravam ou se recalcavam em vários gestos, falas e posturas. Essa noção psicológica da “mulher de César” (mais importante do que ser é parecer; ou: ainda que se seja, é necessário fazer-se acreditável) sempre foi muito bem entendida pelos franceses, e sua Literatura tão precocemente sofisticada é a prova viva disso. Então, era necessário aprender a jogar o jogo, suavizar-se, desbarbarizar-se, para angariar vantagens sociais. Os franceses foram mestres dos alemães, nesse quesito. Mas estes últimos nunca “aprenderam direito”, se posso me expressar assim, pois o incômodo entre essa vida pública forçosa e a espontaneidade da vida privada do teutônico, mais rude, sempre foi pungente para si. (Sem embargo, apesar da opinião de um povo, necessário que se diga: nem por isso o menos afetado e pomposo é mais sincero – novamente o lembrete de Elias de que perde-se em algo para ganhar em outro algo, ou seja, toda mudança cultural é uma espada de dois gumes. Ora, é útil esquecer que se agia assim e assim e passou-se, convenientemente, a agir desse modo mais atual, de maneira que a amnésia é desejável. Os alemães se esqueceram que sabem mentir; e muitos cortesãos franceses talvez não se dessem conta que todos os seus trejeitos não passavam de uma modalidade de honestidade.) Para se ter idéia de a que ponto chegou essa plasmação, se falava mais o francês do que o alemão nesses estratos mais ambiciosos e progressistas da Alemanha! Por isso o conceito de Kultur exala um certo olor de soberba no ar, a ouvidos “mais delicados”: o pós-hegelianismo que Marx retrata tão caricatamente já pertence a uma fase posterior, em que os jovens, de nacionalismo exacerbado, finalmente se orgulham do seu falar, da sua filosofia praticada com todos os ingredientes da terra natal.

Imagine-se o brasiliano, este filho de colonizadores portugueses que nasceu no Brasil e se habituou a uma vida tropical, mas que, tendo de residir em algum centro importante, como Petrópolis, tenha de macaquear os modos da família real e sua gente mais chegada, a fim de ser bem-visto ou de um dia fazer parte do “time”. Pode ter sido um exemplo grosseiro, mas é óbvia a razão de estudarmos Elias no curso de Sociologia Brasileira!

Importante ressaltar que, se há implicações políticas muito fortes da Kultur, ela só foi consolidada graças a esse treinamento doloroso e insistente da classe burguesa alemã que gostaria de copiar moralmente aqueles que realmente mandavam no continente, ingleses e franceses, sendo seu projeto político e facetas tão conhecidos por nós como a Lebensraum, essa sede de expansionismo físico do império germânico, uma decorrência de metamorfoses culturais profundas que se faziam necessárias. É, inclusive, a mesma proposição de Schwarz para o Brasil e a Rússia de determinadas épocas: longe de poderem modificar seus modos produtivos porém ideologicamente informados dos modos de produção dos países de primeiro ,undo, essas duas Literaturas atingiram um posto privilegiado, como parece notável nas figuras de Machado de Assis e Dostoievsky; de Goethe, Heine, Kant e Hegel, no caso da Europa central e desta obra de Norbert Elias. Em que pese Rouanet refutar Schwarz, ele ecoa esse discurso quando diz que hoje a Europa representa o papel mundial um dia exercido pela Alemanha no contexto europeu, quer seja, nós, os periféricos, é que recebemos suas idéias, um substrato para concretizar uma História nova (a diferença é que para Schwarz a Literatura, a Ideologia, já eram a História sendo feita), em detrimento do Velho Continente, que está fatigado demais para isso. (Vide a escola pós-estruturalista francesa, que exportou inúmeros sistemas de crítica, às vezes autofágicos, nos “contaminando” com fenômenos antes exclusivamente europeus, como o niilismo, mas nada muito além disso. Ou seja, navega-se sem grandes meta-narrativas que proponham uma solução ético-estética.)

QUESTÃO 3

Gosto muito do fim do livro de Foucault “A Ordem do Discurso”, e como o início já foi bastante falado em sala, talvez seja esse, o retroativo, um bom caminho para desenrolar minha resposta (o engraçado é que iremos de novo a Hegel): “toda a nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer há pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano § Mas escapar realmente [itálico meu] de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar” (pp. 72-3). Nessa passagem e pouco mais adiante, Michel Foucault não exagera a respeito de um consenso que vejo na análise da Filosofia ocidental (ou pelo menos na chamada Filosofia continental), esta que está, a meu ver, como pano-de-fundo de toda a Sociologia construída: o sistema de Hegel é uma espécie de ápice da coerência, pois a “Fenomenologia do Espírito” é uma obra que se sucede a várias tentativas racionalizantes de filósofos pregressos e que parece – tem pelo menos uma aura de – definitiva, um marco, sem dúvida, da teoria do conhecimento, da História como disciplina e das estruturas. E exatamente por isso, às vezes nós, seus sucedâneos, temos dificuldade de lidar com as coisas como ficaram postas “do lado de cá”, e tentar a antítese ou a superação destes postulados mostra-se uma tarefa hercúlea, ainda mais tendo em vista que estamos diante do “mestre da dialética”, de quem Marx bebeu para chegar aonde chegou como um cânone de nosso curso; e mesmo sua operacionalização do Espírito de modo a que viesse a ser mundo/concretude/materialismo, mais fluido e hiper-empírico, é, como acaba de relatar Foucault, passível de ser vista ainda como uma continuação natural, ou “embutida já”, no trabalho de Hegel.

Por que tive necessidade de um preâmbulo inusitado que começa pelo desfecho de um livro sobre o discurso? Estamos falando ainda, aqui, como nas questões 1 e 2, da gênese de alguma coisa, do mistério dessa organização das idéias, como sujeitos que aparecem no mundo quando ele “já está completo”; e isso não é contra-senso algum, pois somos o mundo, estamos em perpétuo vir-a-ser, mas do ângulo da “necessidade ou não de um novo ser”, no presente, podemos nos dizer completos, somos esta obra, o mundo é nosso espelho; a consideração de um ser é inclusive meramente didática. Com todo o arcabouço que nos é fornecido quando nascemos, e com o que deixamos após nossa passagem, Foucault se pergunta: afinal, estamos começando um discurso? Reiterando uma fala ancestral? Nem um nem outro?! Sempre Cila ou Caribde e a obrigatoriedade de evitar os extremos… Epistemologicamente, ao mesmo tempo que toda situação é nova e todo discurso inédito, ele é um reflexo, uma recorrência, quem fala não somos nós, mas as coisas nos utilizam como porta-vozes. O que nasce, brota, emerge de algo já dado, não possui uma essência, mas pode-se dizer, para fins pedagógicos, que a essência do objeto que acaba de emergir já estava contida, seu germe situado, nas coisas pregressas, e assim ad infinitum. É por conter em nós agora todo o substrato do “ser-que-ainda-não-está”, desse faltante desconhecido, que podemos dizer: sim, somos completos!

Mas me dedicando mais ao discurso, o que está em questão nesse seminário de boas-vindas à universidade para a qual o autor foi chamado é que o monopólio desse discurso, todos os rituais que precisam ser cumpridos e as coerções que são irreparavelmente levadas a cabo, não se encontra em alguma instância central, não é ou não precisa ser sempre voluntário, mas subjaz em cada apresentação/re-apresentação de um sujeito falante. Em que pese, por exemplo, essa sua palestra ser algo transgressor, uma criação, espontânea até, assim que é emitida ela se torna já parte do poder regulador, uma arena que – é sua natureza fazê-lo – exclui, pela simples omissão, elimina mesmo, o que foi dito antes, e age sobre o que será dito depois, está situada na História, contra a História, rompendo com a História, mas deve isso a ela; a História é um compilado virtualmente inesgotável de discursos como esse que se justapõem.

Então como, pois, um livro que é um discurso como qualquer outro, “A Fenomenologia do Espírito”, supracitado, pode adquirir ares, como deixa transpassar Foucault em seu também discurso, de imbatível, ter a petulância de se imiscuir de repente entre as coisas do mundo e reivindicar um direito à perenidade, acima das outras? Não é essa uma divinização do indivíduo-no-mundo Hegel, ele também tiranizado-monopolizado, tirano-monopolizador de inúmeros outros discursos dentro de uma Alemanha insípida ou exuberantemente acadêmica (a depender do ponto de vista) dos séculos XVIII e XIX, esta por sua vez dentro de um sistema-mundo de complexidade indizível? A ponto de se dizer que a crítica ao seu Idealismo é apenas uma extensão proto-pensada ou latente do Seu Idealismo, assim, com letras grandes? É esse episódio, esse evento, que muito assusta teóricos do século XX, ainda. E posso utilizá-lo como ícone para o poder do discurso, e acreditar, com Foucault, que ele não é imbatível, ou recairíamos na asserção “depois de Homero (ou da Bíblia, da sabedoria de Salomão, etc.) nenhum livro precisava ser escrito”, “toda música é repetição e exploração da genialidade contida nos Beatles (ou Bach, ou Beethoven)”; ou viveríamos como o eu-lírico de Jorge Luis Borges (cf. Santiago), sempre à sombra do Dom Quixote, reprodutor mas nulo… Frases e neuroses do nosso cotidiano que, por mais que sejam tomadas como verdadeiras, não descaracterizam o que está-aí: foram escritos livros depois de Homero e há uma imensidão de outras músicas; portanto, ainda que procedesse o argumento da auto-suficiência, da completude do ser a dado ponto, o devir não “perdoa” e segue infatigável… Outra coisa não se denota da proposta de Foucault no meio de seu “A Ordem do Discurso”, ao exigir um “materialismo do incorpóreo” dentro de uma “filosofia do acontecimento”, um claro revide ao título imponente Fenomenologia do Espírito.

Ora, e cabe aqui, ainda, acrescentar: “a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?” (itálico do autor). Tal aforismo advém de Roland Barthes, quem nunca li diretamente, portanto não posso dizer o livro, mas o retirei de “Filosofando”, em apêndice de um dos capítulos, página 323, livro didático de Maria Aranha e Maria Martins que eu e muitos da minha geração usaram por vários anos na escola. Lembrei-me instantaneamente dessa passagem que já havia destacado anos antes ao falar de Hegel neste momento. Porque não feriria o autor se chamasse sua filosofia de a expressão da redundância, bem como a filosofia de Nietzsche. E esta frase é perfeita para continuar a idéia da auto-suficiência… Elas, as redundâncias, bastam a elas próprias, mas o mundo, que pode ser também uma grande redundância, é sentido historicamente, diacronicamente, então a redundância está sempre em deslocamento. Mas a própria idéia de uma redundância em deslocamento não será entendida igual hoje e amanhã, num século ou no outro, por isso a riqueza de interpretações é – com o perdão do trocadilho – fenomenal! Pouco importa, neste caso, se se assumir Nietzsche como posfácio banal de Hegel ou o inverso, e Marx ali como um elo perdido, ou nenhum dos dois, porque cada posicionamento, inclusive, traz muito de um ranço de época. Importante é saber que as operações lógicas, depois de “mais um fim”, sempre se reiniciam… E ainda que se lance mão do recurso “a lógica que paira sobre todas as lógicas”, vê-se-a de dentro, portanto o Um jamais será Um, embora sempre se possa usar o expediente da palavra e do conceito, que uniformizam, homogeneízam.

Talvez tenha faltado apenas um pouco de consideração – embora pense que já foi cumprida, me desculpe se tácita ou encoberta pela questão alemã – sobre o desinteresse e sua importância, em Foucault e outros: uma cátedra universitária jamais estará ali pelo discurso em si; o discurso-pelo-discurso é uma coisa que não existe; a Alemanha hegeliana, tida como a apoteose da Teoria, era bastante prática – o que seria toda a volição de explicar o Todo, superar o atraso teutônico e afirmar-se como cultura soberana sem o poder por trás de, em, sendo cada palavra? Portanto a intelligentsia pura não existe, embora se chame a maioria de “péssimos políticos”, quando intentam consciente e formalmente essa missão.

QUESTÃO 4

Devido à absoluta impossibilidade de separar as coisas, por achar que uma estava inexoravelmente ligada à outra, optei por juntar os itens “a” a “d” no que segue:

Sobre a questão colonial, em direta relação com essa indefinição do “lugar das idéias” e da posição a se tomar, de onde aparecem os discursos assumidos pelos intelectuais e para quem eles têm ressonância, adianta-se a questão das três principais matrizes étnicas do povo brasileiro (bem caracterizadas no último livro de Darcy Ribeiro): brancos, índios e negros – uns espoliados, dizimados, catequizados; outros escravizados; aqueles inevitavelmente transformados, rearranjados, reinventados em uma nova terra. Claro que as tensões raciais devido ao histórico de opressão e miséria da raça negra vão complicar ainda mais esse quadro de indefinição, com uma cornucópia de autores de uma mesma geração sem chegar a uníssono algum, chegando-se ao cúmulo de alguns liberais defenderem a propriedade de humanos (isto é, humanos de acordo com a teoria liberal estrangeira; sub-homens para nós, nesta abrasileiração esdrúxula) e de um império diretamente descendente do português ter de efetuar a transição do Brasil-Colônia ao Brasil-soberano, afora muitas outras polêmicas.

Na aula de hoje, quarta-feira, 23 de junho, a professora Mariza nos relatou, por exemplo, que os dois primeiros responsáveis por compilar uma história do Brasil no século XIX eram autores estrangeiros. Um dos autores desta unidade introdutória, cujo nome irei logo resgatar um pouco mais abaixo, chama o período imperial de “auge da liberdade de imprensa”, fase que jamais se repetirá: já que livros eram artigos raríssimos, quem tivesse meios que os escrevesse, pois ninguém o censuraria! O paraíso? Talvez, mas o motivo era desalentador para aqueles com alguma ambição intelectual e desejo de colher os louros da fama: não seriam combatidos, não seriam citados nem defendidos, simplesmente pelo fato de que não eram lidos, a não ser por seus exíguos pares!

Não serão poucos os que defenderão uma sociologia principiada do zero no Brasil. Quando muito, autores clássicos deveriam ser lidos apenas para serem filtrados no que interessasse aos trópicos e à estrutura da sociedade tupiniquim. Florestan Fernandes desejava com afinco uma sociologia nacional, e nos anos 60 vemos Roberto Cardoso de Oliveira formular o conceito de “fricção interétnica” para tentar tipificar como sui generis as relações raciais no país, impossíveis de ser explicadas por modelos importados de fora. Porém, e demonstra Rouanet muito bem, como citei na segunda questão, recai-se assim, ao se fechar ao exterior, num paradoxo, que é pensar-se à maneira européia para não-ser-europeu, até porque inventariar as componentes de uma nova nação, idealizar um Estado, é uma atitude completamente ligada às Luzes e à consciência nacional dos séculos XVIII e XIX da Europa! Um problema correlato se verifica na Índia, outro país de terceiro mundo que aparece para nós na mídia como tentando se modernizar e capitalizar e “formular sua identidade”, mas que possui uma organização interna que bate de frente com nosso modelo. Sequer pode-se chamar a Índia de país, olhando-se de dentro; as castas não coadunam com o humanismo deste início de milênio. Ainda assim, a única forma de nativos terem voz no palco do Ocidente é ocidentalizando-se um pouco, chegando à formalidade do grau de mestres e doutores nas sociologia e antropologia ocidentais. Sendo assim, o que esses têm para contar acerca de brâmanes e chandalas, e o que a intelligentsia brasileira primitiva tem para dissecar, é carregado de mal-entendidos e unilateralismos (PEIRANO).

Através de uma análise histórica da noção de Estado-nação, Anderson mostra a pedra no sapato dos movimentos marxistas e das Internacionais, que sempre buscavam uma superação do problema das fronteiras e etnias em prol de um só e mesmo ideal, encerrar a exploração do trabalhador. Quando guerras entre aliados políticos – em tese – são travadas por motivos territoriais ou raciais, algo não anda na ordem das coisas, principalmente para os comunistas que desejavam o desaparecimento ulterior do Estado e das diferenças de classe. A União Soviética possuía tal pressuposto no título e na gênese de sua promulgação; por isso, logo entrou em choque com a anciã China, país de tradições milenares que queria ter o seu socialismo. Sei que ainda não chegamos ao Brasil, mas esse prólogo serve para mostrar a ubiqüidade, hoje, no mapa-múndi, dos Estados-nações, de origens muitas vezes totêmicas, religiosas, ou provenientes de uma política comunitária extremamente arcaica (no sentido temporal, exclusivamente). E nós teríamos de ser forçosamente um deles a partir da emancipação de Portugal. Talvez seja este o tema mais explorado em todas as séries da escola básica até estarmos habilitados a chegarmos aqui. A inculcação dos processos que levaram o Brasil a ser o Brasil; é o marco zero, antes do qual não é muito preocupante, a uma criança, não saber muitos detalhes. Sua referência inicial para os estudos é Pedro Álvares Cabral. Aí começa a história de sua família, de fato. Felizmente não precisamos retroceder tanto na análise.

O que era antes um entreposto comercial para o branco e um cativeiro além-mar para o negro africano vai se incorporando, fundindo, com o devir das gerações. A terra passa a ser mais as pessoas. Espocam valores e costumes inevitavelmente diferentes, por questões de clima ou qualquer outra. Os índios, que não são “os índios”, são uma multitude de povos, de nações, se vêem em novas demarcações, rodeados de novas leis de propriedade, uma metamorfose tão abaladora quanto descer em um outro planeta com outras relações humanas, provavelmente. Há ainda o revés provocado no homem branco pelo contato com negros e esses estranhos que aqui já reinavam, isto é, prosavam, porque eles não tinham reis! A música, ritmos africanos, a crença antropofágica indígena, a alimentação nutritiva com base na macaxeira, os casamentos interraciais, a própria Igreja católica edificada nesta terra, talvez mais mansa para uns, mais inquisidora para outros, mas sempre em diálogo com as determinações da metrópole. E todos os órgãos burocráticos que se intensificaram num curto espaço de tempo quando da vinda da família real. Todas as ondas migratórias européias, as novas relações de trabalho, a sucessão dos ciclos econômicos e commodities para exportação, expansão do setor terciário, belicismo para com os vizinhos, concursos para criar bandeira e hino nacionais, sementes do orgulho a ser ejetado para contemplação dos países ricos… Poderia elencar outros parágrafos sem que o material se tornasse mais escasso!

Uma só característica seria o suficiente para especulações intermináveis: o calendário cristão. Contar o tempo a partir de 1500 e comemorar com mega-festas os primeiros 500 anos; sai-se do mito para entrar em um protocolo, em uma parafernália de normatizações compiladas num livro chamado código de leis, semelhante a outros, inspirado, isso é inegável, nas declarações humanistas francesas. As questões mais polêmicas se referem à zona híbrida em que o brasileiro se sente constrangido pelo que vem de fora e, de outra parte, pela expectativa de nossas autoridades quanto à nossa imagem lá fora, se nos acatam, se recebem nosso conteúdo, se o Brasil adquire relevo e reforça sua identidade. Seja Luís Costa Lima chiando porque o brasileiro usa terno e não deveria usar ou, já, Gilberto Freyre relatando a parca dieta dos mais ricos mesmo no período colonial, que se contentavam com frutos em putrefação porque tinham poucas noções culinárias neste mundo transplantado… Os autores desta unidade estão cheios dessas percepções.

Chama atenção a condição de marginalizado do intelectual brasileiro (do intelectual, para Mannheim). “Trapezistas sem redes de proteção” (p. 17), é assim que Peirano define esses primeiros corajosos da inteligência de um país por (se) fazer. Com “a raiva impotente” (p. 4) quase começa Lima. Desde sempre tivemos nossos gauches (no sentido drummondiano, portanto sem itálico), nossos excluídos dos debates de época (o que não significa que não tenham sido valorizados mais tarde), como Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ainda antes da imprensa chegar. Por muito tempo, nossos homens responsáveis por nos compreender foram mais deglutidores de pastiches e simulacros do que propriamente sensatos; talvez não por falta de juízo mas de condições materiais. Os jargões de Direito eram habituais para gerar boa impressão e dificultar a retórica (do oponente não-versado, é claro); a teatralidade e o gestual também mereciam atenção, quase maior que a do conteúdo; o corporativismo sempre foi impiedoso, nauseante, até – que o digam os advogados, jornalistas, sambistas, poetas, sempre defendendo seus próprios colegas sem olhar as razões e defendendo os truísmos da prática pura ou do talento inato para enxotar quem surgisse ameaçadoramente portando características exógenas –; e quantos mais numerosos fossem aqueles estrangeiros de que se apropriasse no discurso (omitindo seus nomes!), mais complicado seria retirá-lo de voga, se é que existia realmente alguma voga de discursos, ou estes eram apenas ecos do que se sucedia longe. A nostalgia e a conclamação hiperbólica da pátria são apontadas, com boa margem de segurança, como características presentes nessas primeiras gerações.

Conforme ensaiado acima, trago aqui o nome de Luís Costa Lima, quem disse que aqui era muito difícil haver público no princípio mas que isso implicava uma impressionante liberdade autoral. No entanto, não é sua voz a das aspas: “nem os governantes nem o povo as liam, e os poetas catequisavam-se (sic) entre si” (José Veríssimo apud Lima, p. 7). A verdade é que ainda hoje há resquícios dessa intelectualidade que não gosta de vestir a camisa da intelectualidade, se acha outras coisas, investe em áreas paralelas; não são poucos os casos de jornalistas nativos que se crêem sociólogos, cientistas políticos que se aventuram a showman e professores que acabam indo parar no parlamento – aliás, a lista de ministros que nenhuma intimidade tinham com a política até serem nomeados é embasbacante. Muito disso tem a ver com a “cordialidade oficializada” (Lima) ou “teoria do favor”, proposta por Schwarz para justificar anomalias que nem diagnósticos de ordem econômica pareciam poder contemplar. Em detrimento da luta dos estratos liberais, como se viu em outros países, por mudanças nas formas de encarar os fatos, aqui esses, desde a escravatura, sustentavam sua liberdade e autonomia nas costas dos senhores de engenho e da casa-grande, mas de um modo tal que também desengessavam estes senhores em muitas atribuições para as quais não estavam qualificados nem dispunham de tempo hábil. Sem que se pudesse dizer, no final das contas, quem era o parasita e quem era o hospedeiro, pois a harmonia do sistema era mantida, com as centenas de milhares de cabeças africanas em permanente reposição pelos navios do tráfico internacional. O legítimo país do “Acordão”. Num país como esse as instituições sempre, na prática, destoam de suas intenções originais, como é o caso da USP e também da UnB, para infelicidade de Darcy Ribeiro, com todo o plano de sua autonomia sendo sacrificado ao tecnicismo e às políticas governamentais mal-feitas que destratam a educação. Há surtos de efervescência cultural – como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros que encabeçam o Modernismo da década de 20 ou a Tropicália nos anos 60 –, seguidos por hiatos de um consentimento tácito dos intelectuais no que tange à performance negligente das autoridades. Ora, todos sabem que em terra onde a intelectualidade for marasmo, reedições do mesmo, sem debates francos, as idéias não podem mesmo vingar, por falta de quem as aperfeiçoe, contraste-as, enfim, dinamize o cenário.

Teorias Sociológicas Contemporâneas – “Reader’s Digest”

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Sociologia

Disciplina: Teorias Sociológicas Contemporâneas 1 (135461)

Semestre: 2/2009 [Atualização em 19/12/2019 para publicação em Os Segredos da Mosca]

Professor: Edson Farias

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Avaliação Final

[Comentário atual: Este trabalho é da época do meu curso de Licenciatura; eu estava me formando para dar aulas na escola; notar-se-á um grande enfoque na ‘arte de ser professor’, que eu efetivamente desenvolveria na prática dali a 2 anos, embora por um curto período de tempo, havendo eu decidido, em crise comigo mesmo, reformular meus projetos de vida desde então.]

Questão 01:

Talcott Parsons está contido num contexto norte-americano do fazer-sociológico em que os teóricos e mais abstracionistas sofriam grave repúdio, pois em voga estavam os postulados empíricos e a publicação de tratados com “fatos”, números, dentre outros dados e hermetismos, de um teor “menos especulativo”. Porém essa facilidade com que tais autores se despiam de discussões epistemológicas e da difícil formulação de um sistema teórico e exibiam certo pragmatismo metodológico é denunciada por Parsons como sendo absolutamente ilusória, já que a pesquisa empírica será sempre calcada em pressupostos, em teoria. Não é omiti-la que resolve a questão da verdade e da crítica ao subjetivismo dos sistemáticos. Eximir-se era uma saída um tanto pior. A nota de rodapé 9 na introdução do clássico A Estrutura da Ação Social demonstra o combate encetado por Parsons em meio à tradição americana hegemônica durante as primeiras décadas do século XX: “O mais perigoso e traiçoeiro de todos os teorizantes é aquele que proclama que deixa aos fatos e às cifras que falem por si próprios” (p. 44). Para dar conta dessa grande missão denunciativa, Parsons erige um modelo de síntese que reivindica a superação de dicotomias falhas das ciências sociais, baseado na contribuição de autores pregressos tais quais Durkheim, Pareto, Marshall e Weber (note-se a ausência de Marx do círculo de principais autores na sociologia americana, embora Parsons dedique algumas páginas a contrapor a solução marxiana do problema do Estado frente à de Thomas Hobbes), porém diferindo-se deles em algum grau. O fulcro problemático é: o que deve ser priorizado, a estrutura ou a ação? O livre-arbítrio ou a necessidade? Qual deles ganha a “primazia”, como gosta de dizer Parsons? Obviamente, a questão da racionalidade e do inconsciente, afora outras questões subsidiárias, aí se inscrevem. Parsons também se debaterá detidamente acerca do problema hobbesiano da ordem, o que justificaria a coesão social, de acordo consigo.

Como é de se deduzir pelo título da sua primeira grande obra, Parsons propõe um modelo que busca evitar coisificações como a imobilidade do pensamento estrutural (a unilateralidade causal dos mecanicistas) – o que praticamente anula o peso das escolhas individuais – mas que, em contrapartida, também não caia na cilada dos liberais econômicos e seu axioma auto-contraditório da liberdade irrestrita de escolha (eles promovem uma guerra suicida contra o Estado; necessitam dele mas não podem admiti-lo), que descamba para um anarquismo analítico e uma entropia social, haja vista os diferentes interesses dos atores envolvidos. Ambos os extremos são insuficientes. A ação obedece aos limites de uma tradição e a tradição é criada/recriada pelo conjunto das ações. Essa reciprocidade conceitual está presente em virtualmente qualquer sociólogo ainda hoje estudado, por mais que a ênfase recaia aparentemente mais em um lado do que no outro (a ponto de chamarem Weber de um “teórico da ação social”, ou acusarem Durkheim de superdimensionar a ascendência das instituições sobre os indivíduos na primeira fase de sua sociologia). Nesse quadro, o que torna Parsons peculiar?

A situação é definida pelo autor como o leque de circunstâncias e meios contingentes disponíveis para a ação do ator, que não tem controle sobre os elementos da cena, mas que pode usá-los a seu modo (como meios, visando a um fim específico), em combinações, desde que na margem do possível e do viável para o momento. Como o ator define suas escolhas? Através da “orientação normativa”, um conhecimento prévio, cumulativo, que permite o desenrolar concreto da ação. Isso por si só não garante que a ação será concretizada (que terá seu fim inicialmente proposto atingido), porque o ator pode não ter feito a eleição da norma mais apropriada, dir-se-ia que não está “devidamente encaixado no contexto” (agiu de forma racional, todavia há várias racionalidades e, para determinada circunstância, uma outra era a que funcionava melhor). Parsons excluirá de sua análise o que se passa na cabeça do indivíduo durante a ação, importando apenas o externo, o tangível socialmente. Inclusive ele se refere a um novo tipo de analista social mais acurado que denomina de “psicólogos da personalidade”, estudiosos da psicologia que começam a superar a distinção sujeito/sociedade, aproximando a relação entre indivíduos e coletividades – como um todo – e objeto. Em suma, que exigem a prioridade da relação, não da coisa. O problema da motivação para a ação não é contemplado o suficiente na teoria parsoniana. Em Parsons, isso não transforma os indivíduos em autômatos, uma vez que é apenas uma questão de método: não é necessário estudar as intenções, mas os efeitos. A ação individual existe. A vontade consciente é que é ilusão (cardeal no ser humano, devendo permanecer assim). Ou seja, interessa-lhe o particular descrito objetivamente.

Erving Goffman opta pelo relato de uma multiplicidade de casos comezinhos com enfoque nos desajustados (ou nos aspectos embaraçosos de qualquer vida humana). A agradável leitura desses casos faz com que o autor se torne ele mesmo vítima de um certo “preconceito sociológico”, conforme Giddens, posto que se despe um pouco da excessiva gravidade dos tratados acadêmicos, nutrindo predileção pelo ensaio estético. Talvez por isso seja mais difícil enxergar um sistema goffmaniano, embora possamos juntar as peças, reconhecer influências e compará-lo a Parsons.

É importante perceber o quanto este autor se aproxima do indivíduo e seus dramas psicológicos, inevitavelmente atrelados ao contexto social no qual se inscrevem (quando um sociólogo é “psicólogo demais”, isso também é motivo de desprezo academicista, pois ele recai na pecha de “subjetivista”). O conceito de “fachada” é essencial: longe de atuar de modo unilateral ou constante, simétrico com todos aqueles com quem interage, o indivíduo lança mão, consciente ou inconscientemente, de estratégias diversificadas de modo que represente vários papéis no mesmo dia. “Fachada” porque esse não é o “verdadeiro-eu”, porém a essência não se encontra em lugar ou tempo algum, sendo a condição humana um devir de papéis tão autênticos quanto fantasiosos, de acordo com o prisma assumido. Ora, o ator não pode se despir de todo e qualquer papel social, então ele “se agarra” ao que vivencia no presente como seu verdadeiro-eu; que em seguida é suplantado por um novo papel baseado em sua próxima necessidade imediata. Não subjaz nada : a “mentira social” (para os outros e para si, que “não existem”, pois ambos são constituídos pelas relações entre papéis, não mantendo qualquer definição fixa ou rígida) é a regra do ser. A etnometodologia, paradigma em que está situado Goffman, reconhece nessa transitoriedade o empírico do ser social, se apoiando decisivamente na própria linguagem e nos estudos que se desenvolveram bastante a partir de Saussure para afirmar a “efemeridade dos enunciados” (nem por isso menos enunciativos). Claro que é a recorrência do fenômeno, não-idêntico, em todos os aspectos, a qualquer outro, porém nitidamente estruturado da mesma maneira na realidade (palavra imensamente desgastada pelo seu uso antagônico nas mais diferentes escolas), ciclotímica em seus traços genéricos, que permite ao observador sociológico descrever tais singularidades como regularidades científicas: a Vorstellung, a Warheit, bem como a Sprache, a encenação/apresentação, a verdade, a fala, não são menos “reais” porque assim que o período, a sentença ou a situação são “cortados” (a vida é sempre uma soma de episódios, de interrupções, pois o que está consciente não se converte em inconsciente conscientemente – tem-se como exemplo a consciência do eu de que respira ou sente uma dor em determinado órgão, “desligada” ou “interrompida” sem aviso prévio ou de forma que se possa calculá-la, exatamente como quando um sujeito se põe a dormir) e seguidos por outros passam a um “plano de fundo”, sendo necessária sua re-evocação para sua re-validação. A linguagem são convenções – contudo, se estas nunca fossem levadas a sério (como um jogo, que é ficção menos para quem está concentrado na personagem que joga), não poderia haver sequer a noção de convenção que aqui nos auxilia. O faz-de-conta não poderia existir se não fosse, ao ser exibido (de alguém, para alguém, em algum momento e em dado território), real; dialeticamente, o real não poderia subsistir não fosse com essas montagens e sobreposições de “como ses”

Podemos “pescar” os exemplos mais valiosos suscitados por Goffman. O usuário incipiente da maconha “se trai” enquanto não percebe, por experiência e perspectivismo, que a “diferença interna” que sente ao fazer uso da substância malvista socialmente é bem mais dilatada que aquela que pode ser aferida por observadores externos, em abstinência da droga, ao dialogarem com e estudarem as reações de alguém que está sob efeito dela (e que não o admitiu anteriormente na cena; ou seja, num contexto em que o observador ignora se a pessoa realmente utilizou o entorpecente). Tal situação fenomenologicamente paradoxal e ao mesmo tempo objetivamente lógica ilustra a superação do que os positivistas chamariam de “solipsismo metodológico” em Goffman, que, como Parsons, não se situou num extremo nem noutro da análise. Na situação da sala de aula, temos uma boa lista de “sabedoria acumulada de professores e alunos” e algumas armadilhas em que os dois papéis possivelmente incorrem. Uma delas é a preferência dos professores por alunos intermediários, ou seja, nem iniciantes nem muito veteranos, partindo da convicção de que terão mais controle sobre seu papel de superioridade em classe. Outro é o código de ética compartilhado de que colegas de profissão não devem assistir uns às aulas dos outros. Há ainda o comportamento de “durão”, do profissional que deve começar se impondo e só em seguida “relaxar” ou “afrouxar” na exposição do conteúdo, porque o comportamento contrário incitaria a desordem por parte dos alunos; e, por fim, Goffman pega de empréstimo a decodificação sartreana do aluno que quer ser a mulher de César, ou seja, aparentar de todas as maneiras que está prestando atenção – ao cabo, ele terá todo seu sistema nervoso sugado pelo eu do Outro, ou seja, o próprio professor, não lhe restando muito “estoque” para interpretar de acordo com a própria bagagem o que é que ele está falando. Este último e célebre caso é aliás um tópico de abertura do dilema da reflexividade e prática (ou se pensa ou se age), que será bastante deslindado na questão 2. Goffman chama toda essa preocupação minuciosa com o jeito de se portar frente à “platéia” uma “regulação” ou “manutenção rigorosa” da fachada. Não que não conseguir manter a fachada implique na ausência de fachada: automaticamente se recai em outra fachada. Um professor que “não age como um professor” agirá como alguma outra coisa (faz papel de vítima, caluniado, incompreendido, furioso, de que não percebe o que se passa e mantém o mesmo discurso, de “fujão”, se decide se ausentar, ou então, após um solavanco ou ato falho, depois de perder o fio da meada, ele volta à tona, retoma o controle do papel original, ou ao chegar em casa reelabora novas estratégias, e ainda que não consiga jamais o controle da turma ele desempenha uma variedade de fachadas no transcurso do seu expediente). Outrossim, Goffman não isenta os categorizados como loucos dessa assunção de fachadas (Parsons diria que este indivíduo reside em um erro permanente da norma, pois cada ato-unidade seu não consegue estabelecer um entendimento do chamado “consensual”).

Anselm Strauss é outro colecionador de anedotas interessantes da mesma estirpe etnometodológica. Assim como Goffman, dedica um bom naco de seu trabalho às reações fisiológicas, musculares, por exemplo, durante as mais variadas performances de um ator (imagine-se o número de caras e bocas e trejeitos pelos quais o interlocutor “se denuncia” numa simples interação e a extensão que as interpretações sobre eles podem tomar, como fica bem claro neste trecho, que aliás é de Goffman mas serve também para aquele cientista social que inaugura o parágrafo: “Quanto mais o indivíduo se interessa pela realidade inacessível à percepção, tanto mais tem de concentrar a atenção nas aparências”). É claro que as semelhanças serão diversas e haverá um ou outro ponto de vista divergente, sobre os quais logo entraremos em detalhes, antecipando-lhes que a identidade pessoal/social do sujeito se liga, neste autor, mais a seu conceito de máscara que ao de fachada referido anteriormente; este, como é óbvio, não deixará de lembrar o primeiro modelo e carregará, no entanto, a marca de um novo pensador.

Ao invés de enfatizar o grupo de estigmatizados e “informados” (indivíduos que se tornavam fronteiriços por conta do contato habitual com estigmas de terceiros), a obra de Strauss a que tivemos acesso, Espelhos e Máscaras: A Busca da Identidade, tem como epicentro a constituição da própria personalidade mais genérica, embora não se negue nenhum postulado-mestre acerca do vir-a-ser do Homem e suas virtualmente ilimitadas fachadas, como que em busca de uma cobertura predominante ou sintética (compósita) das outras. Um exemplo é na elaboração de como alguém se torna bobo ou herói. Um indivíduo parece carregar essa característica consigo muito mais marcadamente do que em relação às micro-estratégias das quais Goffman faz um inventário invejável (e Strauss é-lhe similar até nesse tipo de exemplo, como na página 79 de Espelhos e Máscaras, em que descreve a elaboração de fantasias por parte do professor estreante que ainda não conhece com segurança as reações dos alunos e ensaia sozinho em casa as posições, as falas, os efeitos ao público…).

Os espelhos do título se referem à construção da personalidade e ao processo clássico de socialização do indivíduo, em que ele incorpora e exporta julgamentos dos e aos outros com base em projeções de seus corpos nele mesmo e vice-versa. Somos capazes de nos reconhecermos ali, em terceira pessoa, assim como nos reconhecemos ao mirarmo-nos em um vidro perfeitamente polido (e somos essas pessoas, na medida em que há uma consideração objetiva aí, a condição da “substituibilidade”, conforme diria um Bourdieu: se “tivéssemos nascido” no lugar dessa pessoa seríamos ela própria; nossa personalidade, nossa história, se define pelas situações vivenciadas no passado, não há nada “descolável” e essencial do nosso eu, algo realmente “particular” na acepção mais profunda, que não tenha uma explicação social; o comportamento mais bizarro pode ser demonstrado por essa teia inevitável de relações). Além disso, destaca-se a auto-avaliação moral que um indivíduo faz de si e como é complexa mas de ocorrência obrigatória a elaboração de uma continuidade existencial no meio de eternos momentos entrecortados. Strauss, ainda, se contrapõe a Parsons na questão da motivação, uma vez que, em que pese a dificuldade de aferirmos as nossas intenções por conta da lenta e dificultosa decifração do inconsciente, este não é um problema que deveria ser ignorado por uma teoria social. A contínua e multifacetada exegese, por sinal, impede que tiremos motivos concludentes de uma determinada situação.

Questão 02:

Pierre Bourdieu tenta empreender uma resposta, senão definitiva, bastante concisa para os problemas estrutura-ação, diacronia-sincronia e todas as suas implicações que já tanto discutimos e que desde os primeiros sociólogos estão no centro da arena, ao lado da questão da “cumulatividade em Ciências Sociais”. Desde Parsons já o víamos, e o inconsciente, a memória, continua desempenhando papel decisivo nas propostas de síntese dos autores mais recentes. Iniciemos com a Sociologia da Sociologia de Bourdieu:

Se se pensa por que ainda hoje se diz que a Sociologia é tão nova e precoce, e que por isso não se deposita nela confiança de mesmo grau que em uma “ciência dura”, e tomando por base o enorme receio disseminado de que “é quase impraticável uma modalidade de conhecimento da própria sociedade e do homem”, vê-se que, contrariamente ao que Parsons relata na introdução de um de seus livros, Comte, Spencer e outros precursores ainda não estão de fora das discussões mais relevantes nesta virada de século, ainda “não foram superados”, pois no fundo essa era para eles a preocupação-base. Pierre Bourdieu contra-ataca esse tipo de suspeita sobre o “fazer ciências humanas”: o próprio abismo entre a Matemática e a Sociologia perde legitimidade, se olharmos de perto. As Ciências capazes da Verdade e aquelas incapazes (ou, melhorando o termo, “confusas demais”, porque metalingüísticas e auto-referentes demais, e que permitem muitos caminhos, o que tantas vezes faz com que alguns cientistas exatos se dêem conta de que seus colegas das Humanidades sejam também cientistas em detrimento de “meros literatos”!) ganham contornos de uma coisa só. Se a própria observação etnográfica consiste em utilizar métodos sinuosos (incapazes de estabelecer uma totalidade definitiva, “confusos”, porque contingentes e insuficientes) e percebe os “seguros de si” (porque os ágrafos não possuem uma disciplina antropológica, em tese!) como outro grupo onde fervilham problemas existenciais, ou a Ciência toda só tem a perder ou, inversamente, há uma consolidação do método lógico e um nivelamento de todos os seus segmentos, dos que estudam a previsível “natureza” e dos que estudam a imprevisível “cultura”. É muito estranho que tão poucos autores tenham pensado em tratar a cultura como algo mais natural e a natureza como reino de onde provém o cultural, ou seja, que escassos pensadores tenham desmistificado a oposição dogmática entre natureza e cultura, dois universos tão correlatos, talvez um só universo, claro, que é profundamente cindido pela convenção da Linguagem, que opta – necessariamente – por dicotomias quase insuperáveis. Não se mostra um filme quando a intenção é mostrar como ele foi feito. O filme é o hiper-real e o enganador. O que está tácito e subjacente, encoberto por manipulação digital e outros recursos, é o que deveria interessar, assim como o que de fato os cientistas fazem com pedaços mortos de animais e toneladas de instrumentos caríssimos deve ser diferente do que consta nos artigos finais de seus trabalhos. O próprio antropólogo, seduzido fosse, demonstraria inaptidão para o trabalho. É sempre mais difícil, compreende-se, tratar da própria lógica em que se está inserido, utilizando da Ciência para desnudar a Ciência – e, portanto, a si mesmo. E pensar que o percurso ideal é, apesar de científico, baseado no olhar leigo sobre o entorno, com um nível de cuidado para o qual o leigo não está preparado! Bourdieu, enquanto fala dos cabilas, convida o sociólogo a se situar no campo e reconhecer que interfere em seu objeto de estudo, praticando uma Sociologia da Sociologia, ou seja, o julgamento, embutido no trabalho, do autor de sua própria Sociologia, já que ninguém melhor que ele para saber das próprias subjetividades e perspectivas preferenciais que construíram o trabalho. Isso faz parte também de um projeto de uma Sociologia do Poder. Toda essa noção de “humildade profissional” é necessária como preâmbulo do que se vai dizer acerca da reflexividade prática.

Imagina-se, apesar disso não ser dito no livro Esboço de uma Teoria da Prática nesses termos, que uma “teoria da teoria”, vulgo idealismo, seria aquilo de que Marx tanto fugiu ao propor o materialismo histórico e a evolução paulatina das idéias, ao contrário dos pós-hegelianos e seus sistemas “fáceis” que auto-interpretavam o universo a sua maneira. E é com um aforismo de Karl Marx que Bourdieu abre seu livro. Qual a contraposição igualmente estéril? Uma prática da prática, embora eu também não encontre esse termo ipsis litteris, a vida oca de uma sucessão de imagens sem uma retroalimentação. Quando Bourdieu tece sua “teoria da prática” e fala de uma “experiência primeira da prática”, ele retoma essa discussão da “teoria-prática e seu andar juntos”, e não à toa produz sua sociologia com “neologismos arcaicos”, isto é, expressões do latim já consagradas pelo passado mas que carregam agora significações inéditas (como o próprio Marx iria querer para sua praxis).

O impasse teórico advém também da sensação de que, por mais situações que se possa viver, “tudo é o mesmo”. O auge do estruturalismo deve ter causado essa forte impressão de “congelamento da realidade”. E no entanto, ao mesmo tempo que a academia chegava ao beco sem-saída metodológico, como é possível que o mundo vivesse sua maior promessa de “é possível fazer diferente, porque todos temos escolhas e somos o que escolhemos” (o utilitarismo econômico do pós-guerra talvez como ápice disso)? Em prol da vida “paralisada” no tempo do pós-grandes narrativas, a proposta hegemônica da ciência era sem dúvida “encerrar com a Episteme”, fechar cada vez mais os caminhos, isso porque enxergava-se nisso o único modus operandi. O Ocidente queria apenas o pragmatismo do “como”, não mais os “porquês” que tanto vieram se arrastando (a “amnésia da gênese” de Anthony Giddens). Esta é a vitória tecnicista contra o ideal mais antigo da ágora dos sábios. Parece que ou se age ou se pensa, e já se havia pensado demais… Mas então não se começou a agir demais, com o mesmo tipo de decorrência nefasta?

Os dois processos se desencadeiam simultaneamente – talvez isso seja tão mais discernível no espaço paradoxal sufocante e promissor da Alemanha do século XIX cujas armadilhas Marx desbaratou na Ideologia Alemã. Uma atrofia da variedade individual concomitante a uma hipertrofia do Estado – o desenvolvimento tecnológico tem disso: uma vez realizado o que antes era projetável e contingente, torna-se “o necessário”, o único que podia suceder-se de acordo com as forças produtivas, é um destino manifesto prosseguir na unidirecionalidade, o projeto já demarcado. Porém, em contradição com a supressão das alternativas de desenvolvimento, o conceito de “livre-arbítrio” ganha cada vez mais respaldo dentro dessas sociedades. A Alemanha só podia agir de um modo, adotar uma estratégia, para suplantar a superioridade industrial da Inglaterra. Ao mesmo tempo que o alemão teorizava o futuro e fantasiava sua íntegra realização tal e qual (refletia demais), a “cópia do modelo de sucesso” que implementou em relação a seus vizinhos França e Reino Unido era exatamente essa noção bourdieusiana de uma nociva prática pura. Para resumir tudo: quando se incorre num tipo de erro se comete automaticamente o outro, neste binômio fazer-pensar, bem como hipertrofia e atrofia muscular são igualmente problemáticos num homem.

Outros exemplos de ênfase excessiva em uma coisa só: a quantomania, ou growthmania no âmbito estatal, que só reconhece o poder da verdade nos números. O engodo do “empirismo estatístico”, achincalhado por Bourdieu, Elias e Giddens. E há, por exemplo, uma semiótica absolutamente niilista e iconoclasta que descasca todas as pretensões e enunciados, anula todos os valores e é incapaz da reconstrução em novos moldes, pois a lógica sobre que é montada não o permite (talvez um Guy Debord no seu desnorteante Sociedade do Espetáculo). Os dois casos são tanto “nenhuma razão” quanto “limites do emprego da razão”. A diacronia é fundamental aqui: como com um doente que esquece que suas angústias são produto de um estado desestabilizador temporário, o tempo dará uma chacoalhada nos pontos de vista.

Na página 148, Bourdieu expõe as insuficiências etnometodológicas (um “programa tapa-buraco” para responder ao “objetivismo”). O fazer-ciência necessita de uma resposta/um solo mais imediata(o). Mas um solo relacional, evidentemente (o que faz alguns confundirem praxis e fenomenologia num primeiro momento – não obstante, os fenomenólogos seriam, segundo Bourdieu, ainda subjetivistas, pois falharam na síntese). Como não poderia deixar de ser, o autor francês não deixa por menos em relação aos pós-estruturalistas, apontados como inferiores ao próprio Lévi-Strauss (p. 154).

Quanto ao habitus, quando ele relaciona os conceitos de padrão e disposição à biografia de um indivíduo, a fim de explicitá-lo melhor, seria aquilo que se torna visivelmente recorrente ainda que se vá tomar a vida como um rio cujas – moléculas das (em seu arranjo) – águas não se repetem; ao mesmo tempo, a perene produção do novo a partir do velho, da reprodução, a reinterpretação de significados por parte do sujeito, que os faz se readaptarem após solavancos e obstaculizações (pedras ou declives nesse rio), que independem dele, é certo, porque “assim funciona o homem”, mas que são efetivamente de autoria dele, de modo que o adulto “tenha a própria história”, que seja “cúmplice” dela não em menor grau que a criança e o complexo de Édipo e a formação primordial do caráter (como em Piaget ou no freudismo ortodoxo, conforme denuncia Giddens), em que pese ser esta biografia repleta de sentidos (alguns mais fixos e duradouros), doutra perspectiva, nada mais que um amontoado de acasos.

Giddens possui uma sadia e notável falta de escrúpulos quanto à crítica a colegas e a um discurso despido de arrogância, quase que informal, a respeito da situação da sociologia na sociedade pós-industrial. Sem meias-palavras, por exemplo, repudia aqueles que, em geral, ainda não entenderem as várias facetas de Weber, e assinala “meu Weber”, que seria a antítese do “Weber habermasiano”. Bourdieu faz questão de lembrar, idem, o quanto Marx e Weber foram postos como rivais intelectuais sem muita consideração pelo real conteúdo de suas obras. Voltando a Giddens, ele confirma o veredicto de que “a tecnologia não venceu o homem” em um de seus ensaios de Em Defesa da Sociologia, como muitos estiveram inclinados a pensar. Não é a técnica que está na dianteira das transformações, mas o gênio humano, por mais que correntemente este se veja como técnica aplicada (a questão do estreitamento dos horizontes, acima). Empreende uma análise mais psicológica que a de Bourdieu, no trato, por exemplo, da compulsão moderna. Sua principal contribuição está totalmente de acordo com uma teoria da prática, no entanto: a sociogênese, equivalente talvez da arqueologia do saber foucaultiana – enfatizar a história das estruturas ao invés de só a estrutura da História, ao que talvez o termo “sociologia” vinha remetendo excessivamente. Critica, a dado momento, a superestrutura e ideologia marxistas, ou talvez seu emprego por parte dos sucessores, que tenderam a polarizar suas conclusões sobre uma variável apenas, a fim de explicar todos os liames sociais.

Nesse aspecto psicológico, Norbert Elias é bem próximo de Giddens. Seu livro O Processo Cilizador (ou Civilizatório) passou décadas em branco entre os acadêmicos até ser levado em conta. Trata de forma singular do problema do inconsciente. Sua proposta é transcender as dicotomias clássicas e estilizantes. Há um enfoque da obra supracitada na explicação da dualidade bárbaro/selvagem-civilização (recalcamento e planejamento a longo prazo – o que não necessariamente corresponde a vantagem, tão-só dum ângulo moral, sendo em realidade uma espada de dois gumes –, mudança gradual e cientificamente justificável do ethos dos grupos humanos). Manifesta, numa linha ou noutra, a mesma preocupação com as exceções que vimos na unidade I entre os etnometodólogos.

Se não me engano, é em outro texto que este autor alemão irá evocar Cila e Caribde, os monstros marítimos homéricos como forma de alusão à física/metafísica, ao discurso/metadiscurso neste tempo de incertezas (nunca houve um tempo de certezas absolutas, e é certo que ainda temos um solo razoável de convicções). Em geral, seu teor é afim ao de Bourdieu no que tange a isso, inclusive quando aponta a recursividade dos problemas das ciências naturais de outrora nas ciências sociais de hoje, como se fosse uma história espelhada (“as ciências sociais encontram a mesma dificuldade que afligiu as ciências naturais”, p. 23 de Introdução à Sociologia).

Ensaio sobre a Dádiva, Marcel Mauss

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 07/11/08

 

INTRODUÇÃO – Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir os presentes

  1. Epígrafe – O antropólogo irá tratar aqui de um fenômeno batizado de “dádiva”, a ser pormenorizado mais à frente. Por enquanto, basta a consideração de que em toda dádiva está embutida uma contradádiva, e nisto se poderia resumir por enquanto a espécie de contrato social que vigora em várias sociedades “primitivas” (outro intuito de Mauss é demonstrar o quanto este termo está equivocado, pois o sistema da dádiva é algo plenamente maduro do ponto de vista ocidental e, até seu tempo, isso era difícil de reconhecer).

  1. Programa – Mauss introduz os dilemas ou perguntas principais de sua tese: qual força misteriosa impele o receptor da dádiva à contradádiva? O que existe de direito real (arcaico) incrustado no direito pessoal, nome pelo qual nos acostumamos a chamar nossas garantias e deveres constitucionais (nos termos maussianos, “conclusões morais sobre (…) a crise de nosso direito”, p. 189)? Analisando sociedades míticas, em que não existe a noção de indivíduo dissociado de um todo, pretende-se chegar a estas respostas.

  1. Método seguido – Há uma semelhança incrível entre o método comparativo de Mauss e o método histórico ensejado por Franz Boas, que será, aliás, enormemente citado em notas de rodapé. Objetiva-se o “acesso à consciência das próprias sociedades” (p. 189) e, para tanto, há a consideração do sistema cultural em sua completude, sem comparações fragmentárias entre instituições de um e de outro povo, o que “tiraria a coloração” delas, pela perda do contexto.

  1. Prestação, dádiva e potlatchO número de sociedades ao redor do mundo descritas detalhadamente por Mauss – para comparação posterior – é razoável e será possível encontrar desde “sistemas parciais da dádiva” até “dádivas totais” (“prestações totais” ou potlatch, como Mauss emprega, que quer dizer nutrir ou consumir), esta última variante encontrada nas tribos do noroeste americano. Algumas destas culturas apresentam pistas de parentesco (uma adotou o sistema após contatos com outra que já o adotava e depois o suplementou a sua maneira), mas este fato não é uma necessidade absoluta (há casos de desenvolvimento autônomo das prestações e contraprestações).

  1. AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE RETRIBUÍ-LAS (POLINÉSIA)

  1. Prestação total, bens uterinos contra bens masculinos (Samoa) – O próprio casamento se afigura como relação de prestação e de contraprestação: oloa é como são chamados os bens masculinos (móveis) e tonga os bens femininos (imóveis). A criança é tida como um bem uterino: ela é literalmente um bem que será fonte de contradádivas pelo resto de sua existência (parentes que o presentearão – regalarão, em conseqüência, o núcleo da família do menino ou menina – com oloas, bens móveis). Mas tal sistema samoano não é ainda um potlatch (prestação total), uma vez que fica faltando um pré-requisito essencial: a ocorrência da guerra caso a reciprocidade não tome lugar.

  1. O espírito da coisa dada (Maori) – O tema ganha em abrangência quando migramos, em pensamento, para outra sociedade, a dos maoris. Sucede-se a transição do conceito anterior “tonga” para “taonga”. Cada taonga tem o seu hau (aqui, tonga ganhou em amplitude) ou mana, quer seja, espírito, alma, atributo sem o qual “não se está vivo”, “não se está”. Pois bem: quem infringe a regra da dádiva e da contradádiva tem seu hau destruído, a maior vendeta imaginável (vendeta = vingança – quando alguém comete um crime, supostamente será alvo de vendeta daqueles em comunhão com as vítimas). Eis a caracterização da violação às regras de troca como crime, “punido” e sentenciado de forma diversa do nosso sistema de justiça. Portanto, a coisa “tem poder sobre o ladrão”. Se a coisa tem poder, ela não é inerte (a propriedade “resmunga”, “grita”, cf. p. 254 et circa). A interpretação das coisas terem hau é que sejam espíritos, antepassados, objetos que foram de antigos maoris e que ainda encerram suas atribuições, e jamais deixarão de fazê-lo, posto que circulam indefinidamente. Há um vínculo inseparável entre coisas e homens aqui: na própria linguagem nativa, seria impossível determinar o que é o quê.

  1. Outros temas (a obrigação de dar, a obrigação de receber) – Não consiste o potlatch apenas em retribuir, mas, por inferência lógica, em sempre oferecer e receber (afinal, a retribuição só existe com estes dois verbos a ela vinculados), e jamais recusar convites (exceções são enumeradas, mas creio que não seja preciso chegar a esse nível de precisão).

  1. Observação – o presente dado aos homens e o presente dado aos deuses – Estendendo as conclusões sobre o hau, tem-se que os deuses são os “verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo” (p. 206).

  1. Outra observação, a esmola – Alcunha-se aqui a teoria da esmola, uma eventual origem do nosso “Doces ou travessuras?” do Dia das Bruxas: “dádivas às crianças e aos pobres agradam aos mortos” (p. 208), em última instância aos deuses. Sendo assim, é demandado “dar” para não entrar em desgraça. Mauss precisa o momento em que os termos hebraicos da Bíblia passaram a significar esmola ao invés de outra coisa menos clara, o nascimento da doutrina cristã como adequada para aqueles que viviam em penúria material.

  1. EXTENSÃO DESSE SISTEMA – LIBERALIDADE, HONRA, MOEDA

  1. Regras da generosidade. Andaman (obs.) – Os antropólogos desta escola racionalista francesa não priorizam a história (apesar de levarem em alta consideração as metamorfoses do Direito nas diversas sociedades) – fogem do difusionismo puro e também do “independentismo puro e simples das descobertas de um povo” (neste aspecto lembram muito Boas, ao se situarem em uma escala intermediária, de moderação na explicação das “invenções culturais”).

  1. Princípios, razões e intensidade das trocas de dádivas (Melanésia) – Por diversas vezes, ficamos sabendo que o “comércio circular ou de retorno”, de taongas ou bens, o potlach ou kula (em Malinowski), costuma ser realizado intra-chefia, ou seja, entre os chefes de fratrias e tribos. Eles – e o povo que mediam – estão sujeitos a sanções como o banimento do indivíduo (“O esquecimento tem conseqüências funestas”, p. 246). Correspondente a essa noção e não menos importante, temos as classes sociais destas sociedades. Eu pensava, de acordo com noções antropológicas anteriores à leitura deste livro, que as sociedades australianas “primitivas” careciam de divisão social em estamentos, porque fica transparente em Mauss (e Malinowski, no kula) a presença de um ethos nobre, à maneira hindu, no tocante às relações de trocas entre os indivíduos. Os presentes da troca são supérfluos no que se refere à subsistência, mas nisto reside sua importância e sua nobreza. Para não deixar margem para dúvidas, está é uma questão que, exteriormente, varia: tais presentes podem muito bem constituir filhos e comida, bens claramente de subsistência, tomados sem um contexto definido; no entanto é requerido observar a função desse tipo de honraria. É escusado dizer que aqui se trata de dádivas sem as quais, em tese, ainda é viável uma vida – só que não é suficiente tê-las só para si ou não tê-las, é necessário haver essas relações de troca entre os nativos, como se sem isso, com efeito, viessem a morrer. Prova cabal disso é o costume ancestral do esquimó de presentear o visitante – e não o nativo, o que é uma peculiaridade – com sua própria esposa, ao menos na primeira noite em que o estrangeiro é recebido em suas dependências: sem isso sua existência se tornaria vexatória, indigna. Há um distanciamento soberano entre a dádiva e o econômico/cotidiano: não pode haver barganha, pois isso denegriria o processo. Há inclusive a idéia do juro, mais moral que material (qualitativo ao invés de quantitativo, exato, matemático): em um mês se viaja sem mantimentos e se é acolhido; pois no próximo a intenção é receber aqueles anfitriões de outrora com ainda mais luxúria e opulência. Talvez por isso haja um impulso de “dar” pela primeira vez: dar sem ter recebido indica honra e significa um grande presente ou banquete vindouro.

Na nota número 29 entra em jogo o complexificador do sistema: a moeda. Mauss lista algumas etapas de consolidação do sistema financeiro até o presente. Antes de a moeda ser um equivalente universal de todos os bens e que não é um bem por si (o que ocorre em nossa sociedade – uma nota de 10 reais não pode “ser vendida” por 2, ou então por 25 reais, pela sua beleza ou para qualquer tipo de consumo final, se seu valor ainda está em curso e não estamos falando de colecionadores), ela era também qualidade, estava atrelada à magia, ao hau. Ou seja: apesar de envolver algo de impessoal, a moeda arcaica não o é de todo (aliás, disso está distante). Tanto é assim que Malinowski e Simiand contestam a classificação de Mauss, que atribui ao cobre, conchas, gado e a tantos outros talismãs das sociedades estudadas o título de moedas. Sua defesa é que, apesar de não haver uma arregimentação fixa do valor de troca, este existe e pode ser expresso em números, e isso basta. Tampouco há um centro burocrático emissor da moeda ou que a estipula por lei; mas para as considerações em mente do antropólogo francês a lei escrita é banal: basta que seus efeitos se verifiquem, e parece realmente ser uma instituição de uso universal nas fratrias e clãs. A relação do indivíduo local com a moeda é curiosíssima: “Os proprietários os manipulam [os pedaços de cobre] e os observam durante horas. Um simples contato transmite suas virtudes. Colocam-se os vaygu’a sobre a testa, o peito do moribundo, eles são esfregados em seu ventre, balouçados diante de seu nariz. São o supremo conforto dele” (p. 219). O contraste com nossa situação chega à comicidade: apesar do alto apreço pelo dinheiro e de eventuais demonstrações de “fruição do poder”, como o milionário que “se banha de notas e moedas” ou que “joga o dinheiro para o alto”, contentíssimo (o personagem ficcional Tio Patinhas, que mora num cofre, seria o absoluto disso), tanto o dinheiro de plástico quanto o dinheiro de metal estão mais associados à sujeira; lavamos a mão depois que entramos em contato com cédulas e moedas – elas “passam pelas mãos de todo mundo”, não servem para nada que não seja “comprar aquilo de que se necessita”, seu uso é “pontual e metódico”.

E para atestar a “tese da moeda”, Mauss lança mão de analogias com um corpo de nomenclaturas com o qual estamos acostumados, ainda que não torne essas ilustrações explícitas. É o caso, por exemplo, da menção ao basi, que funciona nitidamente como “entrada” numa “compra a prazo”, uma espécie de “fiado”; e dos “bancos” (nota de rodapé 37). Uma associação do sistema de dádivas com o mundo ocidental é, então, viável: o dinheiro ou capital (forma acabada do dinheiro) é onde nossa potência e sua elevação reside. Onde se concentra o ímpeto cultural de criar. Seu cunho inflacionário, os juros sobre juros e as casas financeiras garantem que amanhã ele será mais que hoje. Assim como o “primitivo” retribui amanhã mais do que lhe foi oferecido hoje. O que é nossa poupança senão um enorme potlatch?

É preciso apenas deixar claro que a dádiva não compreende toda e qualquer transação (o potlatch é entendido como essa totalização, mas mesmo ele carrega cadeias secundárias). Há, acessoriamente, no cotidiano das famílias, trocas meramente comerciais ou o chamado escambo, onde os dois pensam estar fazendo um “negócio lucrativo”, trocando algo de um quantum menor por algo de um quantum maior. A essência do escambo é divergente do princípio do potlatch: o impulso do primeiro se direciona ao ganho material, enquanto o segundo, de significação mais profunda e mítica socialmente, é motivado pela moral e pela honra, onde o mais importante é dar. As ilhas Trobriand, onde esteve Malinowski, e suas considerações sobre a enorme variedade de comércios existentes servem de base ao meu comentário.

b.2) outras sociedades melanésias – Chegamos aqui a uma demonstração viva (comprovada pela língua) da “confusão” existente entre “pessoa” e “coisa”, indissolúvel nestes povos: “As operações ‘antitéticas são expressas pela mesma palavra’” (p. 231), referência à ignorância do nativo quanto a “estar emprestando” e “tomar emprestado”: para ele, são uma coisa só. Tal peculiaridade ainda reside parcialmente em dialetos correntes, no Ocidente e na China (notas de rodapé 116 a 118).

  1. Noroeste americano

c.1) a honra e o crédito – Na página 236 nos deparamos de novo com aquilo que se poderia chamar de bancos, entre os índios americanos. (Nota de rodapé 131: se todos fossem sacar ao mesmo tempo aquilo a que tem direito por “crédito”, haveria uma “quebradeira geral”! Vê-se que apesar de serem sociedades ágrafas, elas possuem tantos elementos especulativos quanto a nossa, e sequer se poderia dizer que nelas estes são “informais”, porque há um sem-número de ritos que envolvem os atos de empréstimos, concessões e pagamentos.) Aliás, a preponderância do potlatch no noroeste americano é tão patente que uma das tribos se chama Kwakiutl, “rico” no dialeto local. Pode-se concluir, por conseguinte, que o tema da destruição e da guerra (“dar é destruir”, p. 239; ato bélico que é, aliás, equiparado a “jogar um jogo”) está presente com força nessa região. O banquete cumpre uma importante função social, outrossim. Normalmente, os nativos passam uma estação inteira “dizimando” sua moeda, toda a riqueza, o excedente do restante do ano, em tremendas festas. E Mauss defende que “complexidade jurídica” e “complexidade do fato social” não estão necessariamente em compasso: aqui as normas são mais simples que nas ilhas do Pacífico e no entanto o potlatch é ainda mais ostensivo (ou melhor: se há um potlatch, ou algo que mais se aproxime de um potlatch puro, eis o exemplar). Sobressai, também, a conclusão de que a própria dádiva talvez seja o fenômeno econômico mais fundamental, e quer dizer muito sua classificação como evento complexo: significa que as instituições humanas atuais não vieram linearmente de relações simples que iam se complexificando com o passar do tempo. O autor até acha que o escambo, bem como a compra e venda contemporâneas usuais, é que derivaram desse estado de coisas de prestações e contraprestações, afinal pedir uma mercadoria no balcão de uma loja e dar uma certa quantia monetária por ela é uma espécie de síntese do fenômeno fundamental da dádiva, duas etapas de um fato social camufladas de uma só!

c.2) as três obrigações: dar, receber, retribuir – Reiterando, o axioma máximo descoberto por Mauss em sua pesquisa etnográfica (a despeito de não-presencial) é: “melhor dar do que receber”. Mas “receber” não é visto como vexame. O vergonhoso seria apenas receber. Recebe-se com austeridade e polidez e desde esse ponto a ética demanda a retribuição gloriosa e mais rica do primeiro presente.

c.3) a força das coisas – Mauss se escora em inumeráveis mitos das diversas sociedades para ilustrar a importância da dádiva e da contradádiva. Apresentam um enorme poder explicativo alegórico, mas não é necessário falar em nomes neste resumo – suas idéias se encontram diluídas nos outros tópicos.

c.4) a “moeda de renome” – A partir da página 260 podemos averiguar a extrema relevância do cobre entre os kwakiutl. Já ficou claro há muito tempo, mas finalmente o autor comenta o assunto nestes termos: a dádiva é um fato social total (abrange toda a existência – ou no mínimo muitos, quase todos os, elementos, em uma singular troca – dos povos tratados, do ethos exigido aos nomes com que chamam as coisas, da política à religião, passando pelos preceitos econômicos, pela moda, pela família e pela vida sexual, entre inumeráveis outras minúcias).

  1. SOBREVIVÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS NOS DIREITOS ANTIGOS E NAS ECONOMIAS ANTIGAS

  1. Direito pessoal e direito real (direito romano muito antigo) – Um sistema jurídico parcialmente mágico e no entanto reconhecedor da propriedade privada (alienação dos bens). A questão é que no nexum romano o escravo ainda é um bem móvel, o que deturpa (em relação à nossa sociedade) a relação sujeito-objeto. Somente na época de Justiniano haverá uma reformulação que torne a “coisa” mais afeiçoada ao que se pode chamar de “inerte”. Os antigos romanos são muito similares aos kwakiutl no tocante a bens inamomíveis de uma família, porque eles são a família (é só lembrar da relação dos melanésios e dos índios norte-americanos com a moeda – e transferir automaticamente essa relação afetiva para objetos ancestrais do clã).

a.1) escólio – À página 272 verifica-se a explicação da nomenclatura reus, de suma importância quando se vai considerar a relação diferenciada que povos mágicos mantém com os objetos – sua relação sujeito-objeto que se afigura, inicialmente, estranha a nós. Os contratos e a punição do furto nos remetem às tribos já estudadas por Mauss: réu – aqui – é o acusado e o acusador! Outras figuras jurídicas comuns a vários tempos e sociedades: o leilão, onde compete-se para dar mais.

a.2) outros direitos indo-europeus – Aos gregos tardios e aos semitas atribui-se o fato da primeira divisão conhecida entre direito real e direito pessoal (modernidade). Mas Mauss é breve por não tê-los estudado a fundo.

  1. Direito hindu clássico (teoria das dádivas) – O Código de Manu é uma extensa lei que trata em grande parte da moral da dádiva. As associações não param por aí: “O Mahabharata é a história de um gigantesco potlatch” (p. 279, grifo do autor). Há variações de hau verificáveis, adaptadas, por exemplo, à doutrina da reencarnação: “O alimento dado é (…) ainda o mesmo alimento na série de seus renascimentos”, cf. p. 281. Além disso, “a terra canta”, assim como “a casa fala” nos kwakiutl. Há, para se ver, a figura do poeta jurista, evidenciada em uma das notas. O Ocidente é o típico lugar da abertura incomensurável do fosso entre o jurista (técnico) e o poeta (irracional). E é com este poeta do direito que Mauss encerra o capítulo: “Aqui há somente uma roda (girando de um lado só)”, é o que o primeiro diz.

  1. Direito germânico (a caução e a dádiva) – A noção que merece ser citada é a de caução, presente (com leves diferenciações) no Império Romano Arcaico: trata-se da garantia contratual que pesará sobre o infrator, e que diz respeito, naturalmente, à contraparte. Eis o velho vínculo (citado nas linhas acima) entre sujeito e objeto, uma espécie de hau.

  1. Direito céltico – Vizinho do folclore alemão (sabe-se que o direito se funda nos mitos – tanto assim que autores como Max Weber irão denunciar que, apesar da coexistência entre burocracia e direito, trava-se perpetuamente uma luta neste campo: aquela entre os especialistas, que são sempre reformadores da sociedade, apólogos do progresso, e os juízes clássicos, “sacerdotes”, os porta-vozes da vontade divina, que são os representantes dos mandamentos mais arcaicos e tentam “conservar” a sociedade, evitar sua secularização técnica).

  1. Direito chinês – O Direito Chinês também está permeado da noção de “perigo” ou “risco” de se “aceitar um presente”. Terras para onde se migra, uma comida que se aceita, podem encerrar maldições, feitiços de espíritos remotos – os mortos estão nas coisas, são as coisas, as coisas são gente. Este é um país de tradição camponesa em que a terra é considerada parte da família e dificilmente é abandonada. Mesmo na China Comunista não houve a alienação total das terras pelo Estado, como se há de pensar. Um sistema milenar dadivoso não rui facilmente: nas comunas rurais a gerência continuou sendo autárquica e um dos mandamentos de Mao lembra a questão do dom: “Aprender a andar com as próprias pernas”, que ensina a recusar favores o quanto for possível (evitando assim o mau agouro de espíritos ruins). Grande parte das informações deste tópico “e” foi complementada pela etnografia de Henrique de Sousa Filho, Henfil na China.

CONCLUSÃO

  1. Conclusões de moral – Marcel Mauss nos oferece, então, em seu balanço final, ricas páginas. Alerta para o perigo do Homo oeconomicus engendrado pelo projeto moderno, que passa a enxergar tudo como relações venais. Mas na verdade a mágica sempre subjaz em nossos atos, não é possível escapar dela! Os exemplos da aplicação da dádiva em nossa sociedade são vastos. Por mais que se o omite, as coisas ainda têm alma e superstições cotidianas não nos poderiam fazê-lo olvidar. O que dizer de dar três toques na madeira depois de dizer algo de ruim? E o que uma escada haveria de ter a ver com nossa sorte? Há uma luta constante, nos porões da arena social, entre os valores tradicionais/humanistas e a inumanidade (objetividade) de nossos códigos. Receio estar sendo parcial ao criticar este mundo? Não o receio, porque estou apenas dando eco à atitude de Mauss. As passagens do francês são, aliás, soberbamente atuais. Ele dá saltos e comenta da lei francesa de proteção aos artistas, do sistema de previdência social, dos movimentos assistenciais (de ONGs, por que não? Ele anteviu bastantes coisas…) e proletários – enfim, de tudo que tem uma acepção “anti-mercado” hoje, um quê de comunitarismo. “A sociedade quer reencontrar a célula social”, é seu recado exibido à página 297. O perigo, assinalará mais adiante, é quando o pequeno grupo se considera o porta-voz de toda a sociedade.

  1. Conclusões de sociologia econômica e de economia política – Nas páginas 304 e 305 encontramos um belo resumo de todo o percurso delineado até aqui. À 306, a mensagem de que quão mais alto é o teor mágico de uma sociedade, mais a característica da beleza estará atrelada à da força – o mais belo é o mais forte (invertendo a frase, a compreensão do leitor moderno pode melhorar), o que mais tem para dar. Ainda na mesma página: se “[a palavra] interesse é recente”, conforme o texto, é indubitável que chamar os nativos de “desinteressados” (ou justamente “interessados”!) para caracterizar o potlatch é desprovido de sentido – a linguagem cria essas ambivalências. Está claro que para os nativos da etnografia maussiana não existe nem uma coisa nem outra. Afinal, no mundo mágico a roda gira para um só lado…

  1. Conclusões de sociologia geral e de moral – Enxergo a Sociologia e Antropologia de Mauss como bastante atuais, e um grande serviço epistemológico para as ciências. Apesar de citar Durkheim em seus escritos, de ser co-autor de livros com seu tio e de ser constantemente emparelhado com o mesmo, sinto que o sobrinho superou em muito o mestre, porque seus questionamentos não envelheceram, pelo contrário, como os postulados objetivistas de Durkheim. A escola francesa é um interessante esforço de guinada antropológica, pois ensaia a tão necessária crítica ao Ocidente, o que vejo de forma mais acentuada em autores contemporâneos como Bruno Latour. São capítulos fundamentais, portanto, da história da disciplina no século XX. Imprescindível leitura para a compreensão da “circularidade da cultura”.

Os Nuer

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 22/11/08 – editado em 25/09/19

Evans-Pritchard escreveu um livro sobre sua estadia entre o povo Nuer, nilotas semi-nômades localizados no sul do Sudão, região pantanosa que enfrenta estiagem sazonal, homens de índole boiadeira e guerreira e que são sintetizados na introdução do autor como “apolíticos”, no senso de que toda sua organização, em aparência, obedece tão-somente a preceitos religiosos e de que falta a lei formal. Sua estrutura familial (as linhagens nuer) é agnática, quer seja, baseia-se na tradição, na consideração de que todos das gerações mais novas descendem de outros de gerações mais velhas até uma origem remota de um ente Nuer, consistindo sua árvore genealógica, portanto, num triângulo perfeito (mais detalhes sobre esta constituição no TEMPO E ESPAÇO).

Ver-se-á que inexiste qualquer hierarquia social entre os Nuer, no entanto é verdade que existe uma divisão entre conjuntos etários que auxilia na determinação da ocupação ou das atividades desempenhadas pelo indivíduo. Sabe-se que a iniciação do jovem à idade adulta é bastante notável. Diz o autor que se preocupa neste volume apenas com a “coisa pública”, deixando de lado ou em segundo plano a vida doméstica dos Nuer. Não obstante, se não há governo institucionalizado, não haveria de haver uma confusão entre uma suposta existência privada e a que se pretende retratar? Com isso, Evans quer ao menos dizer que não prestará muita atenção a relações que se pode chamar “de dominação”, uma vez que, no contexto em que irá trabalhar, não considera o fosso entre os dois sexos da tribo, segundo ele mais palpável apenas na consideração da intimidade da família (choupana, estábulo e afazeres diários), não sendo representativo no quadro genérico ou em comparação com outras culturas regionais.

Antes de dar início a sua descrição dos Nuer, Evans-Pritchard enumera uma inacreditável série de percalços e intempéries que teve de enfrentar a fim de concretizar seu projeto, o que nos faz pensar que cada descoberta em campo consistiu em um ato heróico! Em princípio, o etnógrafo era vítima da mais copiosa indiferença. Os Nuer são considerados de natureza hostil e há inclusive uma listagem de estudiosos que foram mortos durante observações de seus costumes! Pesava muito o fato de Evans não dispor de um intérprete – e como os Nuer tendem ao isolamento e não se especializaram no árabe ou no inglês (línguas dos colonizadores do Sudão em diferentes épocas), a comunicação nos primeiros dias era impraticável. Além do mais, o empreendimento do antropólogo foi, não escassas vezes, interrompido, e ele tinha de voltar para uma maior coleta de dados apenas após vários meses terem-se passado. Tais contratempos foram promovidos tanto por instabilidades nas relações entre Nuer e governo quanto pela saúde precária de Evans. Ao todo, teria passado um ano em campo. Alguns trechos, há que se admitir, beiram a comicidade: “Os Nuer recusavam-se a carregar meus suprimentos e equipamento, e, como tinha apenas duas mulas, uma delas manca, era impossível mudar de lugar” (p. 17). Talvez, ao cabo, o autor devesse agradecer o fato de ter sido alvo de insensibilidade, e não de ataque! Pouco mais adiante: “Os Nuer são peritos em sabotar uma investigação”. O próprio “hóspede indesejado” brinca com o fato, alegando ter apresentado “os sintomas mais evidentes de ‘nuerose’” no transcurso da investigação. É uma verdadeira lição de casa que deve ser absorvida pelos aspirantes à etnografia, cuja realização não inclui apenas flores e sorrisos.

Apesar de todos os reveses e dá técnica nuer de entravar a conversação, Evans foi se familiarizando com a linguagem e tornou-se inclusive bastante integrado à aldeia (e não poderia ser de outro modo, já que este é um procedimento nuer por excelência: ao estrangeiro, nada se dedica; porém, semanas depois, a integração já é quase completa). Procederei ao balanço de suas conclusões do mesmo modo que o autor: por uma divisão em subtítulos que correspondem aos três primeiros capítulos do livro.

Interesse pelo gado

A característica mais evidente dos Nuer. Toda relação social deste povo objetiva obter cabeças de gado, conquistar pastos ou garantir as condições de sobrevivência do rebanho, e todo o mais periférico acaba se mostrando reflexo dessa “obsessão”. Até mesmo o hábito da guerra se inscreve nessa totalidade, bem como, o leitor já deve ter especulado, qualquer possibilidade de casamento e enumeração de posses do(a) indivíduo/família. Como exemplos acessórios, a multa provocada pelo assassinato se resume a bois para os parentes do morto e os nomes de batismo são explicados inteiramente pelo culto bovino. A necessidade máxima, que é manter as reses seguras, faz com que haja uma forte interdependência e solidariedade entre as várias células residenciais, clãs, segmentos de tribos e mesmo tribos, em situações excepcionais. Uma delas é a guerra, outra pode ser a seca que afeta os Nuer durante boa parte do ano.

Atualmente (e isto na época deste tratado, dos anos 30), os Nuer são retratados em fase decadente, uma vez que sua principal riqueza (as cabeças de gado) minguou, tanto por epidemias animais quanto pela ação do governo em que estão circunscritos. Esta é apontada como a razão principal da personalidade desprendida deste povo. Tais observações pritchardianas demonstram o quanto o autor se interessa pela História e suas metamorfoses na constituição da cultura nuer.

Há muita homogeneidade na “distribuição de renda”, se assim podemos chamar, nuer. Os mais ricos, por ocasião de verem filhos se casando, precisam se desfazer de suas reses, enquanto que os mais pobres raramente deixam de ter algumas cabeças de gado e, ainda que não usufruíssem de nenhuma, contam com a colaboração de vizinhos no tocante à obtenção de leite, queijo, sorgo, peixes e a própria carne de gado (consumida em circunstâncias pontuais), as principais fontes alimentícias da cultura. No próximo subtítulo haverá bastantes detalhes sobre questões relativas à pesada limitação material nuer (o que inclui pouco espaço terreno para abrigar sadiamente o rebanho, portanto seria impossível uma disparidade enorme entre as possessões das famílias – ver-se-á que inexiste, por exemplo, possessão individual literal, pois o que é de um é de quase todos os consangüíneos, direta ou indiretamente), o que não impede – e até fortifica – o sentimento de orgulho dos indivíduos e a realização regular de festas.

A pormenorização técnica do autor no que respeita à ordenha e ao erguimento de acampamentos, para não se ir muito longe, é espantosa, mas, para os fins em vista aqui, seria desnecessário condensar essa parte. Devo apenas chamar a atenção para o que influencia sobremaneira no relacionamento nuer com o mundo. E sua medicina e conhecimento do rebanho são tão elevados que o autor aponta como sendo impossível, dentro desse ecossistema, haver uma eficácia maior na produção de leite e filhotes, enfim, na perpetuação da espécie e, por tabela, do próprio modo de vida nuer. Isso tudo em que pese os Nuer situarem-se, de acordo com o texto, em uma idade paleontológica indefinida, talvez “orgânica” (seriam representantes “clássicos” do “estado selvagem”, diriam os evolucionistas, já que se comportam em maior harmonia com a natureza e andam nus) posto que não seria nem mesmo a da pedra lascada (mais detalhes sobre a “era pré-mineral” dos Nuer adiante). O que prova que artefatos tecnológicos em si têm muito pouco a dizer sobre a real sabedoria de um povo.

No trecho final do capítulo, muitas demonstrações da forte comunhão (mesmo simbiose) entre os animais prediletos dos Nuer e os habitantes da região. Higiene íntima, adornamento e conhecimento mnemônico das gerações passadas do espécime são absolutamente normais, e dir-se-ia que não tê-los ou não praticá-los com seu “par” seria imoral. A riqueza das nomenclaturas é a maior prova da complexidade das relações sociais aqui. Há a figura do poeta/músico, que compõe para suas crias, fora a legião de mitos relacionada ao amor ao gado (alguns inclusive denotando submissão dos humanos a uma remota maldição da vaca, que condenou os humanos a morrerem em prol desta, mas que quando o último humano perecesse também pereceria o último exemplar do animal quadrúpede – é o mito do Homem, do Búfalo e da Vaca, p. 58).

Ecologia

Cada minúcia é de valor no delineamento estrutural do modo de existência nuer. A única maneira dos Nuer e seu gado subsistirem é compondo-se como semi-nômades de acordo com as estações – dir-se-ia que há as aldeias (sede, matriz) e os acampamentos, filiais emergenciais. Quando a seca está em sua fase mais aguda, os Nuer se dirigem aos postos mais baixos de suas terras quase-planas, onde há açudes permanentes. Por outro lado, quando as chuvas mais abundam há a ocupação de entrepostos dos mais elevados, onde restem pastos em condições (se não de todo secos – porque, afinal, chove –, ao menos não-encharcados). As aldeias das tribos do leste parecem se situar em uma espécie de meio-termo entre essas duas instâncias extremas (nas beiradas de rios temporários e que no entanto não drenarão antes da forte escassez de chuvas de três ou quatro meses). Já os Nuer do oeste, onde esteve Evans-Pritchard, parecem ser privilegiados nesse ponto, pois estão situados ao longo de muitos rios perenes e alguns não precisam executar um decisivo movimento migratório (“…pode-se dizer que eles [os Nuer do oeste] viajam muito menos do que as tribos Nuer do leste, especialmente os Lou”, p. 74). Outra faceta relevante é que os orientais, embora migrem mais, são mais ricos em cabeças de gado.

O refinamento técnico dos Nuer é, novamente, de encher os olhos. Não fosse o processo de queimada controlada que executam na época da seca, não seria possível para o gado fazer o percurso das aldeias até os acampamentos improvisados para salvá-los da mortificação da vegetação. Por outro lado, nas instâncias úmidas, há que se tomar uma série de cuidados a fim de evitar mazelas como doenças mais facilmente transmissíveis com o abunde de água e insetos (as densas nuvens de mosquitos perigosos são apontadas como uma das barreiras da expansão territorial Nuer, fato contrabalançado pela tendência belicosa da conquista, mormente face aos Dinka). Nessas transumâncias faz-se essencial a divisão por grupos etários, pois os mais jovens geralmente vão alguns dias na frente, preparando as provisões da “residência de verão”, enquanto que os mais velhos podem permanecer mais um tempo cultivando alimentos (os Nuer são, também, horticultores, mas mais por “obrigação episódica” que por desejo: se dependesse deles, apenas criariam gado, mas não podem prescindir do complemento vegetal em sua dieta). Os Nuer raramente se aventuram na caça a animais selvagens (com exceção talvez da girafa, por motivos estéticos) e são pouco afeitos à coleta de frutos silvícolas encontrados em árvores geralmente distantes das aldeias fixas. Se há um ethos nobre entre os Nuer, este se relaciona com a vergonha promovida pela alimentação com animais pequenos (como galinhas e algumas espécies menores de antílopes) e pela necessidade de ir pescar (prática dos menos favorecidos – ainda assim, é usual que quem traga vários peixes de uma viagem deva oferecê-los aos que encontrar, uma peculiaridade que certamente poderia ser associada aos estudos de Mauss sobre a dádiva).

Aliás, quanto à referência à “obrigação episódica”, cita o autor na página 93: “quanto maior o rebanho, menor terá de ser a horta”, uma espécie de lei fundamental da cultura nuer. E complementa: “enquanto seria vergonhoso descuidar-se do gado, não há sentimentos fortes em relação à falta de atenção pelas hortas”. Já sobre a ênfase aparente no “estado constante de miséria”: não sei se se trata de um enfoque inaudito de etnografia, mas o fato é que antes, para mim, não era palpável a (sempre relativa) penúria e a imensa cornucópia de dificuldades e superações respectivamente encaradas e logradas pelos Nuer, ou melhor, pelos nativos, quaisquer que sejam. Será um povo especial em que essa característica é gritante ou todos são assim, inclusive nós? Nossa medicina se crê mais avançada, mas o real é que traz nas costas de seu desenvolvimento problemas (de nossa perspectiva) mais avançados, ou seja, seus melhoramentos são em si um germe auto-destrutivo – a cura para alguns males é a criadora de novos problemas, numa cadeia interminável, criada por ocasião de uma ética ambígua de progresso! Um exemplo é a epidemia do vírus HIV, claramente resultado da vida em grandes aglomerações, fator que só se tornou viável após a socialização dos cuidados médicos. E quantos não são os dilemas respiratórios ou cardíacos derivados das novas rotinas, estas por sua vez resultantes de vitórias do médico sobre o meio ambiente lá atrás? Em resumo, não só Evans enfrentou tantas peripécias e dissabores, como já relatado, mas os próprios “estudados” estavam em luta de sobrevivência recorrente, diante de seu observador (vide mito do Estômago do Homem, à página 96)! Já não soam tão terríveis como na imagem fornecida na introdução.

Eis que, à página 99, desponta uma revelação importante: os Nuer não conhecem o ferro – salvo em esporádicos comércios com ou, mais provável, pilhagens dos árabes –, e tampouco têm tanto contato assim com a pedra, surpreendentemente ausente nessa região. Sua matéria-prima majoritária são os próprios tecidos animais e vegetais. Isso motiva classificações precipitadas como “civilização pré-idade da pedra lascada”, ou melhor, “pré-civilização”, se fôssemos usar os termos mais negligentes. Com efeito, a improvisação material, aos olhos do Ocidente, é dantesca, haja vista a raridade até da madeira. O combustível mais usual de maneira alguma é fóssil: trata-se das próprias dejeções do gado, utilizadas para erguer as fogueiras de inverno que afugentam as pestes bovinas.

A idolatria do gado é vista pelo autor como algo tanto endógeno quanto exógeno; é tanto parte da essência nuer quanto a(o) atividade/modus vivendi mais rentável do ponto de vista climático-geográfico, ou seja, do mundo, do universo nuer, e isso já foi ressaltado anteriormente quando se disse que, tendo em vista o ecossistema, seriam impossíveis melhoramentos técnicos e aperfeiçoamento da produtividade material ancestral deste povo.

A tese do autor se deslinda na página 101: a alta solidariedade interna (sufocante, diria um estrangeiro) se explica pelo fato de “os Nuer não venderem sua força de trabalho” e por haver uma hipertrofia de valorização do gado, o que os torna, praticamente, ocidentais de um tipo reverso: substitua-se o valor que a moeda tem para nós e chega-se próximo do que representa o gado para tal cultura! Mas há sentenças incoerentes de Evans-Pritchard nesta seara: “quanto mais simples for uma cultura material, mais numerosos são os relacionamentos que se expressam através dela”. Antes, se diria o contrário. Está certo que a poderosa interdependência de uns em relação aos outros promove muitas relações inter-tribais, mas o caso é que não há aqui, salvo raríssimas exceções, a figura do especialista. Além do mais, em termos urbanos como os conhecemos, a extensão dessas redes é minúscula, quando não é preciso, quase, arredar o pé da choupana para se conseguir tudo de que se precisa; comparações como o Ocidente, na verdade, gerariam constatações controversas: ou somos muito mais “solidários”, porque muito mais interdependentes (dependo da farmácia, do padeiro, do eletricista, etc.), ou isso quer dizer que não somos nada solidários. Tudo depende do quanto de equivalente universal nós temos, para “falar a língua de todos”, que é o dinheiro. Dentre os Nuer, esta língua parece ser falada tão-somente no kraal, de forma simbólica. Por isso a confusão entre “estreiteza” e “largueza” de cultura material. Não são poucas as vezes que Evans fala em “pobreza da cultura”, de modo imprevidente (e ele mesmo, subentende-se, disso tem consciência), quando está mais do que claro que não existe cultura pobre, pois cultura é o que se faz com o que se tem, e mesmo “o que se tem” não pode ser pobre, se não se conhecem parâmetros como os nossos para comparar-se, e se, mesmo os conhecendo, há franco desinteresse e incompreensão (o que é nossa riqueza? Um Nuer absolutamente não a vê!).

Tempo e espaço

O Nuer convencional se acostumou a duas representações do tempo: o ecológico e o estrutural. Um é tido como aparentemente cíclico e cíclico de fato. O outro, como manifestamente progressivo e sub-repticiamente cíclico (há aqui, não sei se é exagero dizê-lo, cegueira intelectual, se se pensa que o próprio tempo do Ocidente, o absoluto, newtoniano, é progressivo até as últimas conseqüências – quando olhamos mais de perto, vemos que os Nuer não são muito diferentes de nós mesmos…).

Ignora-se o que um relógio possa significar aqui. As diretrizes básicas são as atividades desempenhadas. Ou seja: no final, o gado, sempre ele. Não é o sol e sua posição no firmamento, em si, o que vai determinar a orientação do sujeito, mas o que é que o gado estará por fazer àquela altura (pastando, por exemplo). Não entrarei em detalhes de nomenclatura de estações e meses, para ser sumário. Apenas digo que é um mecanismo informal (eles não possuem escrita) que causaria inveja a qualquer Gregório.

Para o observador ocidental, há uma limitação que se subscreve a tempos remotos: na linguagem, é difícil precisar acontecimentos já de há vários dias ou que acontecerão “exatamente daqui a tantos dias”. No entanto, não é pela ausência da mesma forma ocidental que o conteúdo não é passível de transmissão entre esses curiosos nativos. Parece que, considerando-se o tempo estrutural, não alcançam, por exemplo, algo mais do que 50 ou 70 anos, porque não chegam a computar uma dezena de gerações. A sétima é a última da contabilidade. Mas esse tempo das últimas gerações “mundanas” é considerado apenas a esfera de acontecimentos cotidianos em que as coisas se repetem sem-fim; enquanto que há, para além disso, um tempo imemorial, eqüidistante de todas as gerações mundanas, chamado tempo mítico, onde todas as tradições tomaram lugar, foram começadas pelo ancestral mais remoto daquela linhagem comentada no começo (a descendência unilinear).

Quanto ao espaço, é sabido que pode ser que uma aldeia que esteja mais próxima fisicamente da outra pode estar estruturalmente mais distante dela que outra tribo fisicamente mais remota. Tal distinção respeita filiações culturais e não é de se estranhar. Além disso, rios são considerados fronteiras concisas entre povoações, enquanto mato alto, mesmo que mais espesso do que a latitude de um rio, vem menos em conta. Detalhes técnicos mil não serão considerados aqui.

Ao adentrar as questões de guerra, o espaço adquire importância, porque Nuer não combatem apenas forasteiros, mas antes seu axioma é que “quão mais semelhantes consigo”, mais propensos estarão à rivalidade (cf. 144)! É uma espécie de ética para a vida, a do valor da diferença e da luta (estranhamente entrelaçadas com a homogeneidade, como no mito de surgimento de Nuer e Dinka). Por isso, há muitos conflitos internos, em que pese mediados por certos códigos de honra. Tribos costumam se estranhar, aldeias também possuem contendas entre si, mas quanto menor for o grupo, logicamente mais solidário ele é, porque mais interdependente. Portanto, quanto mais geral for a questão, maior terá de ser a união contra um inimigo comum (aí, então, há uma confederação – frouxa, é verdade – de tribos no enfrentamento dos Dinka, exemplarmente). Mas, ressalte-se, não há nunca uma centralização das atribuições governamentais. O traço guerreiro dos Nuer talvez seja sui generis. Não é razoável explicar todo ele pela conquista do gado. Certo é que os jovens muito anseiam pelo dia em que combaterão pela primeira vez. Eles são amantes da prática, por si mesma. Em contrapartida, há uma frase no capítulo 2 em que um Nuer enumera dois males de seu povo, “a guerra e a fome”, explicando por que não costumam combater na época da seca e das privações, mas mais costumeiramente naquela em que há mais fartura, cerimônias e festas.

Essa imbricação, a que me referi como “lógica” logo acima, pode parecer um contra-senso a priori, mas basta averiguar exemplos no nosso mundo: grupos menores são harmônicos se diante de um inimigo em comum, enquanto que, na ausência deste, tendem à fragmentação e crescimento de rivalidades, eis algo com força de lei. Em filmes hollywoodianos, tal qual Independence Day, a “raça” (é bem esse o termo) humana se une sob a bandeira americana para derrotar alienígenas, uma ameaça fictícia. É bem plausível que isso se tornasse verdade caso acontecesse. Por outro lado, assim que não há mais esse ameaçador elemento externo, vemos uma oposição clara entre Terceiro e Primeiro Mundo (FMI, continente africano à deriva – como é o caso mesmo do Sudão –, misturas de etnias em um mesmo Estado, um empurra a responsabilidade para o outro, etc.). Dentro dos “subdesenvolvidos sul-americanos”, vê-se forte rixa entre brasileiros e argentinos. No assim-considerado “homogêneo Brasil” (quando da perspectiva do cenário internacional), de repente, descortina-se uma espécie de “xenofobia atenuada” entre, digamos, cariocas e paulistas. Mas é fácil verificar que, numa hipótese, se gaúchos repudiarem e se insurgirem contra os paulistas especificamente, os cariocas, seus vizinhos geográfico-históricos, logo virão em seu socorro, e os dois andarão de mãos dados contra um “adversário coincidente”, considerado “menos brasileiro”… …e assim por diante até a célula mínima da casa. “Minha família é melhor do que a sua”, por outro lado “detesto as limitações que me impõem minha família, enquanto vejo na sua mais liberdade de movimentação”. Essa é a história do mundo. Pritchard ao mesmo tempo nos leva para nossas origens, instaura debates metafísicos como poucos, e parece ignorar a grandeza do que discute. Talvez não coubesse em seu livro e ele quisesse deixar essa parte conosco… Quanto a sua missão, os Nuer, ele mesmo se mostra muito modesto, mas suas conclusões são amplas.

Vícios e virtudes da antropologia norte-americana (com ênfase em Boas)

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 22/09/08

 

Franz Boas apresenta uma ênfase no dinamismo cultural e propõe uma etnografia que concede atenção ao indivíduo em sua relação conflitante-mimetizadora com seu meio cultural. Aceita-se, finalmente, que o indivíduo deixe de ser somente efeito (tendências behavioristas) e torne-se também a causa dos fenômenos sociais. Boas começa a se desbaratar do mecanicismo reinante justamente aí, embora não o possa vencer (a procura de uma “metafísica dos costumes”, que o faz execrar os evolucionistas, é o ponto vigoroso e ao mesmo tempo o invólucro da grande debilidade desta escolamais detalhes no final do documento).

Conforme mencionado, a antropologia norte-americana (Lewis Morgan, por exemplo, é estadunidense, mas obviamente discrepante deste movimento; considera-se Boas o fundador, ou um dos fundadores, deste paradigma, cujo adjetivo pátrio não deve ser encarado de forma tão séria e inflexível) é acima de tudo uma ruptura com as concepções evolucionistas e uma crítica do método comparativo da Antropologia. Em seu lugar, Boas delineia um método histórico. O homem não pode comparar fragmentos de uma cultura com fragmentos de outra, mas apenas culturas entre si como um todo, dois sistemas totalizantes absolutamente lógicos e coerentes de uma perspectiva interna – a do nativo. Evitam-se assim erros de conclusão diante de metonímias – características isoladas sem uma etnografia profunda e abrangente por trás não seriam mais do que isso: características isoladas, ainda amorfas, incapazes de caracterizar com precisão um povo ou etnia. É, em suma, o descarte da idéia de “estágios lineares”, como se a espécie humana percorresse uma escada e os que estivessem mais acima fossem as civilizações greco-romano-européias (Morgan), haja vista a falta completa de qualquer possibilidade de verificação da hipótese (pressuposto etnocêntrico). Há dados perdidos que podem ser recuperados e levam tempo; e há dados perdidos para sempre (limites inerentes à Paleontologia, por exemplo): o pesquisador deve se adaptar a esse estado de coisas e tirar conclusões com o que está à disposição, consciente de que contribuirá comparativamente pouco para a ciência antropológica, “aguardando” que seus sucessores possam cobrir lacunas de seu legado pela continuação do estudo histórico dos povos “primitivos” semi-afastados de nossa cultura (sobre esta intensa modéstia do prisma antropológico boasiano, também reservo palavras ao final). “Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou menos engenhosos. O trabalho ainda está todo à nossa frente” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 39).

Aliás, entra em campo aqui a idéia do processo de “aculturação”, quer seja, as trocas culturais inevitáveis entre dois ou mais povos, choques recorrentes de onde nem uma nem outra cultura saem ilesas (não há um “modo de ser” dominante que sobrepuje o outro – o homem branco europeu também sofre modificações profundas após conhecer vivências alternativas, como demonstra a revolução eclesiástica que teve que se promover para acolher os “indígenas” e os negros africanos no seio da “raça humana” conforme postulados da Igreja Católica, que até antes das Grandes Navegações não os reconhecia como seres humanos).

O método histórico (ou neo-comparativo, porque obviamente não é uma metodologia que prescinda da comparação, mas a “aperfeiçoa”) de Boas está num ponto-médio entre as influências geográficas, o causalismo das interações culturais exógenas e endógenas e a anatomia. Ou, antes, em “algum lugar no meio”, só que mais tendente à interação social que à geografia e a qualquer traço fisiológico: o Homo sapiens desenvolve técnicas que permitem a adaptação a diferentes espaços sem que isso leve povoações vizinhas a evoluírem de modo parecido. Há, inclusive, uma firme denúncia de Freud como mero discurso arbitrário, não menos arbitrário que quase toda a psicologia europeia desenvolvida até então.

Boas não só renega o evolucionismo mas também o difusionismo, sublinhando a possibilidade de desenvolvimentos análogos paralelos (nem toda similaridade cultural se explica por uma raiz comum do costume – dada a finitude de aspectos apresentáveis na realidade, natural que eles se repitam de forma espontânea entre variados agrupamentos humanos). Cada povo primitivo tem sua história, o que ainda era negligenciado àquela época. Ou seja: internamente, há desenvolvimentos característicos. As coisas novas não nascem somente do intercâmbio cultural (em que pese Boas ressaltar bastante este evento). Negá-lo seria pensar que o próprio Ocidente como unidade nunca houvesse existido. Uma ilustração do próprio autor se refere à gênese da religião cristã: “O Cristianismo não nasceu na Europa ou na América” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 99), apesar de ser forte hoje justamente nestas regiões. Nota-se a veemência de Boas em esclarecer o quanto a crença no difusionismo puro seria algo “hipertrófico”, que reduz por demais a importância de cada instância cultural e nada explica, porque a origem de dado costume, em cujas costas todas as variantes hoje observadas se debruçariam, jamais poderia ser encontrada. Eis uma espada de dois gumes que será aprofundada na conclusão do artigo.

Nos textos dos antropólogos da vertente norte-americana transpira-se um reforço da cultura, a afirmação da autonomia do campo cultural. “O superorgânico” – de Kroeber – é uma espécie de manifesto dessa corrente, expondo o abismo crítico entre o Homo sapiens e seus parentes remanescentes no mundo. Já que mencionei um autor auxiliar, devo lembrar do freqüente recurso, por parte desses pensadores, a exemplos facilmente compreensíveis a fim de consolidar o conceito de aculturação. Benedict e Kroeber são os que me vêm à mente: crianças “criadas” por lobos que jamais aprendem a falar qualquer dialeto humano; um macaco criado com um bebê humano em seus primeiros anos de vida e que logo é ultrapassado pelas capacidades cognitivas imensamente superiores do segundo; uma criança francesa que cresce indistinta entre chineses, exceto, claro, por sua fenotipia; sociedades de insetos – que são “sociedades” apenas no sentido mais pobre da palavra, visto que apenas o homem seria capaz de gerar processos não-inatos em seu meio; o famosíssimo paralelo kroeberiano do vôo do pássaro e do avião – o animal levou milhões de anos para conquistar os céus, e pagou um alto preço biológico por isso (perder características reptilianas, entre as quais os membros superiores em formato de pata, com vistas a ganhar asas), enquanto o homem pôde lográ-lo pelo seu intelecto, “sem nada perder” (embora tivesse transformado o mundo de forma irreversível ao produzir esta célebre máquina). Outras analogias são utilizadas pelos autores, mas a variedade listada já é satisfatória.

Sobre as limitações do método histórico – Ora, assumir, como evocado no primeiro parágrafo, que tudo é causa-e-efeito, é tautológico. Cada coisa é o que é, justamente por não poder existir dissociada do todo, ou seja, não ser em-si nem para-si, mas ligada ao mundo, esse “devir caótico”. Claro, porque “mundo” é só uma palavra, e a observância desse mundo é modificada de cultura para cultura (e Boas é um ensaio desse perspectivismo que penetra, então, nas ciências humanas). E dizer que não existem “fenômenos” culturais independentes é atribuir sempre à sua origem uma dúvida. Isto é acertado. Mas o que ocorre é que se torna uma dúvida insolúvel: o método histórico não poderá alcançar a metafísica dos costumes de todas as tribos afirmando, soberanamente, quando e em que localidade principiou tal coisa, simplesmente porque as interações entre os povos são muito complexas e não há confiabilidade em registros do passado (que já podem ter se dissipado no presente). Além disso, os “porquês” continuariam indefinidos. Não seria possível apurar a motivação do homem “que descobriu o fogo”, não sendo este homem mesmo (conceituação absurda). É uma Antropologia ambiciosa mas manca, carente de essência. Como tudo está imbricado com aspectos ao seu redor, é nulo pretender-se uma gênese. Afirmar a falta de independência do fenômeno acarreta a impossibilidade de chegar a tal fenômeno na forma pura: “Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem – em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 33). Há que se tomar cuidado com a preponderância da investigação histórica: não é raro o historiador que se depara com a cauda da cobra e quando a agarra percebe se tratar meramente da cabeça! De qualquer modo, se há um “ponto crítico”, suscitado pela escola, que separa indizivelmente a animalidade da humanidade, e seu alvo é a cultura, deveriam se concentrar nos fenômenos – coisa que não fazem, buscando causações remotas quase na natureza. Portanto, o empreendimento ontológico de Boas é seu maior mérito, idéia que vence concepções de progresso ilimitado e irrestrito de um povo etnocêntrico, um sinal de amadurecimento da Antropologia, porém, outrossim, um sintoma de sua necrose, da crise dos valores ocidentais, da impotência em encontrar essa mesma metafísica. O pensamento de Boas se encontra em uma interessante encruzilhada!

Há, adicionalmente, a questão do “simples” e do “complicado” – voltar-se para o Ocidente tem sido praxe somente em paradigmas mais recentes da ciência antropológica: os norte-americanos se recusam, neles impera a modéstia! Tais facetas ficam patentes nas seguintes passagens, diluídas na obra de Boas: “Abstemo-nos de tentar solucionar os problemas fundamentais do desenvolvimento geral da civilização até que estejamos aptos a esclarecer os processos que ocorrem diante de nossos olhos.” (BOAS, Franz. 2004 [1920]. “Os métodos da etnologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 47); “A menos que saibamos como a cultura de cada grupo humano se tornou aquilo que é, não podemos ter a esperança de alcançar qualquer conclusão relativa às condições que controlam a história geral da cultura”, e um pouco mais adiante: “Seria necessário, portanto, desistir e considerar o problema insolúvel?” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 97-98). Percebe-se aí a contradição: a humildade se torna arrogância quando se pensa que considerar os outros “estruturas simples” e a si mesmo “imensamente complexo” é parecido com o que vinham fazendo os evolucionistas… Uma postura parecida, em sua miopia, com o projeto linguístico chomskyano, natimorto pois estereotípico e “procrastinador” (exigente de uma neurociência avançada que jamais chega).

Agora, as contribuições do modelo, para além das que já foram citadas: efetua-se um duro golpe nas concepções eugênicas/racialistas típicas das décadas de 20, 30 e 40 do século XX ao se destrinchar o mito da pureza racial, de frágil sustentação ideológica. Além de Boas, Mead é exímia nesta modalidade (desnudar o “bode expiatório”): sua exposição sobre os “desajustados” demonstra o quanto é errôneo perceber o erro no indivíduo-em-si, posto que tal “erro” só existe quando contrastado com um padrão cultural anterior ao surgimento do ser. O desajustado é uma figura onipresente em todas as culturas e constitui as pessoas-exceção. Para contrapor a visão ocidental de que o louco está à margem da sociedade, vêem-se até povos primitivos em que ser epiléptico é, ao contrário, um sinal de ligação entre o imanente e o transcendente.

O evolucionismo do século XIX e “O ramo de ouro”

UnB – Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia (DAN)

Disciplina: Teoria Antropológica 1 – 135194

Semestre: 2/2008

Professor: José Pimenta

Turma: A

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Data: 30/08/08

 

              James Frazer descreve a evolução do pensamento humano de forma bastante peculiar. Pertencente ao fim do século XIX, ideologicamente, e filiado ao evolucionismo (primeiros esforços de sistematização da Antropologia), escreveu uma obra de 13 volumes publicados ao longo de décadas no intuito de decifrar os enigmas de nosso passado, batizados de O ramo de ouro. Como seria impossível ler, no presente curso, esses milhares de páginas, recorri à sintética introdução de Mary Douglas, antropóloga contemporânea, que delineia a própria evolução geral do trabalho mais vigoroso de Frazer, além de contar com trechos de uma versão condensada de O ramo de ouro.

            Desvendar as regras do sacerdócio em Arícia era o declarado objetivo principal dos escritos de Frazer. Mas há algo maior por trás, o que é exposto pela própria Mary Douglas: tratar-se-ia de uma analogia para a compreensão de uma cosmogonia universal, válida para todos os homens. A ambiciosa totalização empregada por Frazer é fonte de aplausos e discórdias: a sistematização do homem é o trabalho mais amplo que pode haver! Empreendê-lo tem seu preço. Uma visão panorâmica de múltiplas realidades e a necessária simplificação lingüística geram distorções. Mary Douglas alerta, no entanto, para o reverso da moeda: a falta de ambição gera resultados por vezes pífios. Se, por um lado, totalizar é perder de vista muitos detalhes e ampliar a margem de erro do trabalho, deixar de fazê-lo (e isso tem sido corriqueiro atualmente) torna a reflexão próxima à nulidade. Obviamente, não é meu objetivo aqui discorrer mais longamente sobre uma questão tão complexa do “fazer Ciência”, então sigamos.

            Frazer foi iniciado no cristianismo pela família, posteriormente se interessando por religiões exóticas. É no terreno religioso que se encontra o cerne de suas conclusões. Em um período no qual o irracionalismo ganha terreno, o autor britânico prima por fazer dele uma categoria racionalmente abordável. Portanto, Frazer pode ser considerado um psicólogo-antropólogo, por mexer com o inconsciente e o tácito de várias narrativas. Utiliza o método comparativo (múltiplas simbologias diferentes mediadas por um “fio de Ariadne”) e, a despeito das críticas mais recentes sobre suas pré-noções (mais adiante as comentarei), foi um evolucionista que entendeu que os povos primitivos não usufruíam de uma “existência incompleta” somente porque de nossa perspectiva ela não faz tanto sentido. Aqui entra o papel da alteridade: “sentindo-se” como o ser humano situado no mundo mágico, que não separa imanência e transcendência, Frazer via a lógica e coerência internas dos cultos, magias simpáticas (poder-se-ia alegar que nosso arraigado hábito de arrumar a cama teria a ver com Pitágoras!), magias públicas (aponta-se até uma curiosa e eventual gênese do funcionário público moderno, entre os “selvagens”!), tabus e imolações de deidades (Jesus Cristo, o deus-homem, se afigura como um resquício de “pré-modernidade” em nosso moderno modo de ser: o elo entre o sagrado e o mortal) sem aderir ao juízo de valor do “estrangeiro” de considerar aquele sistema de crenças absurdo. Em suma, é a lição de que, em uma ilustração “totalizante”, como a adoraria Frazer, a teoria do Big Bang poderia ser a lenda de Diana e Vírbio, não obstante os físicos jamais desconfiarem dessa idéia! Mito e ciência explicam a sua maneira o mundo.

                 Entre as contribuições da escola evolucionista como um todo, temos: possibilitou a construção de árvores genealógicas detalhadas dos povos estudados (notem-se as intrincadas diferenças nas regras de casamento nos múltiplos povos abordados); é a abre-alas das pesquisas em Psicanálise (adoração do totem e imposição do tabu).

            Voltando a Frazer para comentar justamente de suas fraquezas paradigmáticas (concepções evolucionistas), ele é incapaz da auto-crítica em relação ao modelo de desenvolvimento da Inglaterra do século XIX – seu espírito de tempo é o das leis de progresso sociais e da fé no poder explicativo da Ciência (ainda um meta-discurso, com letra maiúscula). O exercício de expor as limitações do autor deve ter a ressalva de estar situado vantajosamente no tempo; Mary Douglas adverte que não é sadio o rótulo de “racista” ou “eugenista” para alguém como James Frazer, envolto por opiniões tão mais extremadas que a dele. De qualquer modo, o inglês estipula como uma falta de discernimento o fato de o selvagem não diferenciar o natural do sobrenatural. Contudo, apenas porque no mundo moderno o homem faz a separação, cria pólos, não quer isso dizer “incapacidade” por parte do selvagem. São apenas dois sistemas de percepção de mundo com características diferentes – isso se pode contrastar, embora não graduar (como adverte Boas – que, aliás, já olha com menos complacência que seus colegas evolucionistas para o termo “selvagem”). Frazer comenta também que os selvagens partiram de falsa premissa para compor seu todo harmonioso – como se o “civilizado” não dispusesse dos mesmos a prioris, e um deles é sua convicção absoluta no Estado e na autoridade, no secular e no sagrado, na objetividade.

                  Voltando ao lado menos míope de James Frazer, estabelece-se uma ligação – e ao mesmo tempo distinção – inexorável entre magia e ciência, entre as mitologias dos povos antigos e o mundo moderno. Afinal, a magia seria uma tentativa inicial, já apoiada pela lógica, de buscar a verdade. Segundo os preceitos da escola evolucionista, nesta jornada à procura do verdadeiro, nós, utilizadores do método científico, estaríamos em um ponto mais avançado que nossos predecessores, dando prosseguimento a suas importantes descobertas primordiais, porém bem mais aparelhados e civilizados, capazes de encarar questões complexas antes impensáveis. No arremete da versão condensada de O ramo de ouro que nos foi concedida, o autor chega a afirmar que “nossas semelhanças com os selvagens ainda são mais numerosas do que as nossas diferenças” (FRAZER, James George. 1982 [1890]. “Nossa dívida para com o selvagem”. O ramo de ouro, São Paulo: Círculo do Livro. p. 98), reconhecendo que a ciência pode não passar de uma solução intermediária nesta caminhada à procura da “hipótese que se supõe funcionar melhor” (idem), ou seja, rumo à verdade, pois um dia já se pensou que o mito e a religião representavam os instrumentos definitivos nessa busca – antes do surgimento da Antropologia – e é salutar imaginar que no futuro o homem se depare com mais e mais respostas provisórias de novos tipos. Mary Douglas encerra sua introdução ao livro de James Frazer da mesma forma. Considero que a controvérsia palpável do meu texto, oscilando entre os méritos e malogros de Frazer, se deve à própria ambigüidade do autor ao longo de sua obra e da dificuldade em unificar sua visão de mundo.

Do Esporte do Espetáculo ou da Realização do Super-Homem de Nietzsche no Esporte

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB

Departamento de Sociologia – SOL

Sociologia do Esporte – 134830

1º semestre de 2008

Professor: Aldo Antônio de Azevedo

Aluno: Rafael de Araújo Aguiar

Matrícula: 08/38811

Brasília, 1º de junho de 2008 [relido e comentado marginalmente em 23 de abril de 2019]

ÍNDICE(*)

Introdução 4

Preâmbulo I – O parto 4

Preâmbulo II – Síntese do desenvolvimento 5

Desenvolvimento 8

Morin – explanações gerais 8

Cultura de massa 8

Nietzsche contextualizado no Esporte e o Esporte dentro da cultura de massa 12

Ética do lazer 12

Do cont(r)ato e do Olimpo 15

O problema do vandalismo juvenil 18

Considerações Finais 19

Referência bibliográfica 22

(*) Peça a versão PDF pelos comentários.

INTRODUÇÃO

Preâmbulo I – O parto

A intenção original era abordar um dos dois temas: 1) o Esporte como reflexo das conclusões mais abrangentes de Guy Debord acerca da totalidade do modo de produção capitalista avançado, tais quais expostas em A Sociedade do Espetáculo, livro do fim da década de 60 e cuja análise permanece atual; 2) a aplicação da filosofia nietzscheana (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão da segunda metade do século XIX) ao homem que pratica o desporto, tendo em vista as numerosas congruências entre os dois modelos (o do Super-Homem de Nietzsche e o do homem ético-desportivo)¹. Não obstante, decidiu-se, afinal, dada a inaudita – para mim, em julgamentos preliminares – proximidade entre os dois temas, abarcar a ambos. A forma delineada foi, julgo, satisfatória. Ambas as temáticas foram fortemente sustentadas pela obra Cultura de massas no século XX: Volume 1 (O Espírito do Tempo – Neurose), de Edgar Morin, que à época não cunhava o termo “sociedade do espetáculo” nem mencionou explicitamente o termo “super-homem”, embora tenha chegado perto, ao suscitar uma “sociedade do jogo-espetáculo” e deixar Nietzsche em relevo. Seu detido estudo sobre a configuração neo-mítica da “cultura de massa” é o que enxergo como a vizinhança mais clara dos postulados de Guy Debord.

¹ Certa naïveté esperançosa nunca fez mal a ninguém, sobretudo a alguém com 20 anos de idade!

Todo o percurso pelos autores da Sociologia do Esporte ao longo do semestre me foi útil, tendo em vista não somente o uso manifesto de seus respectivos conceitos neste trabalho mas a faceta de me ter ajudado na contínua articulação das idéias ao longo de três meses. É certo que muito agradeço a meus colegas pela informação diluída aqui e que eventualmente não posso referenciar na bibliografia. Utilizei, outrossim, a bagagem das duas películas apresentadas e pude tirar proveito dos textos facultativos da matéria que estavam disponíveis na pasta, como “Futebol e violência” (referências bibliográficas – as que pude organizar!¹ – no final do trabalho). Como solicitado – e até por interesse individual –, não empreguei Charaudeau ou o livro Sobre a Televisão, de Bourdieu, visto que já atingi uma saturação considerável neste ramo ao apresentar o seminário. Consegui isto sem derrubar a qualidade deste ensaio, muito embora ele trate ubiquamente da mídia! Mal imaginei que pudesse, inicialmente, preencher tantas páginas nesta minha reflexão, e que fosse necessitar de um índice e de tantas compartimentações. Mas, ao cabo, o que interessa é a qualidade da dissertação; então, vamos às idéias (ou práticas!) de fato.

¹ Honestidade é sempre bom!

Preâmbulo II – Síntese do desenvolvimento

Ao percorrer a situação da Cultura no século XX pretendo demonstrar simultaneamente como o Esporte pode ser considerado uma mercadoria espetacular – a imagem que seduz o expectador, tornando-se, neste, realidade – e a própria evasão do sistema espetacular, ambivalência de perspectivas que ao invés de implodir o ensaio, acredito, enriquece-o, posto que ambos os caminhos dialogam e se complementam ao longo do Desenvolvimento, ao invés de pura e simplesmente se comportarem como o anti-próton um do outro.

Por fim, creio que o caráter “esperançoso” do ensaio impere sobre o apocalíptico, no sentido em que foi preferida a exaltação das conclusões intelectuais e do legado nietzcheísta do que a denúncia de uma composição social mortificante e praticamente invencível,¹ que é a minha percepção da obra debordiana. Afora isso, mais espaço dediquei ao primeiro autor, que contribuiu de forma decisiva, há mais de 100 anos, para questões que ainda padecem de soluções imponentes na contemporaneidade, e provavelmente sempre padecerão.

¹ Curiosamente, poderíamos inverter o dualismo sem prejudicar em nada a autenticidade de ambos os autores: o “legado nietzscheísta” apreciado como soturno e negativo e o materialismo dialético-histórico persistente e resiliente de Guy Debord como a construção do amanhã e da luz no final do túnel – yin e yang, yang e yin! Sobre Nietzsche, conhecemos de antemão 300 interpretações e pontos de vista divergentes. Sobre Guy Debord, bem menos conhecido, tinha uma impressão depressiva sobre ele em 2007-8, que se dissipou numa segunda leitura, em 2016.

[COMENTÁRIO ADICIONAL FEITO EM 23/04/2019:

De uma perspectiva situada 11 anos no futuro, enxergo este trabalho como muito “súbito”. Infelizmente, apesar de toda sua integridade epistemológica, é inapropriado para quem não teve nenhum contato com os autores do título e demais citados em vermelho, pois chega a conclusões e afirmações sem detalhar o passo a passo ou empreendendo pouco esforço para conceituar as noções que aparecem numa velocidade impressionante, quase vertiginosa. Há uma espécie de pressa desenfreada, desesperada mesmo, típica da sede de conhecimento misturada à ansiedade própria da idade e do meu temperamento, ainda pouco autoconhecido então. Por isso, e só por isso, embora seja uma “leitura gostosa” e divertida para veteranos, eu jamais incentivaria este trabalho como uma forma de introdução ao assunto, com medo de desorientar a pessoa. Comentando mais sobre a cabeça do estudante que redigiu tal trabalho, eu devia sentir uma grande necessidade de despejar um aprendizado adquirido rápido e intensivamente, pelo que posso retraçar dos meus passos; hoje, eu me deteria mais sobre algum aspecto específico (uma das seções, p.ex., ou, tendo o devido tempo, trataria de esmiuçar a análise até sentir que preenchi as lacunas que hoje sou capaz de entrever) no lugar de ousar tanto.]

DESENVOLVIMENTO

Morin – Explanações gerais

O argumento central do autor gira em torno da idéia de “neurose”, que é definida como o fantasma decorrente da anomia social, ou seja, um espectro que a pessoa “aceita” como porta de entrada para um mundo irreal-real, idiossincrático-coletivo (as fronteiras se confundem). Há sempre algo que liga todos os homens (a proibição do incesto em Freud), porém há “espíritos de tempos”, ou a modificação de pormenores ao longo do tempo e do espaço. E o espírito do tempo do Pós-Guerra é o da massa que lida cotidianamente com espectros, com os quais irá se identificar e nos quais irá se projetar. Para Morin, todo espírito de tempo possui uma sustentação mítica. As imagens do mito vão constituir as personalidades possíveis numa delimitação. Há sempre um culto aos deuses, o que quer que “deus” signifique. Logo chegarei ao “salto em Rodes” que detalha como Deus virou fantasma. Incluirei, intercaladas no “jogo das idéias”, ilustrações esportivas.

Cultura de massa (MITO-RAZÃO-FANTASMA)

A Terceira Cultura, mass culture ou c.d.m. (acrônimo em Português) é própria do século XX e dos MCM (meios de comunicação de massa). Sucede a cultura nacional – provavelmente os folclores e crenças na auto-superioridade (etnocentrismo onipresente) – e a cultura religiosa ou humanista, a clássica. São três níveis culturais que a civilização percorreu: 1) O mito, que define a origem do homem e é um esforço primevo de racionalização; 2) A revolução intelectual promovida nas cidades-Estados gregas produziu a busca pelo logos, a primeira racionalização sistemática da realidade. Nasce aí a cultura clássica, com Sócrates, um jeito diferente de ver e explicar o mundo. Os filósofos medievais¹ e modernos dão impulso ao ímpeto racionalizador. A idéia de deus, de princípio gerador do universo e de regulador de suas leis, físicas ou morais, é arrancada do exterior intangível para estar ao alcance do homem, que através da reflexão chegaria às verdades ou à Verdade universal; 3) Por fim, a Segunda Revolução Industrial Inglesa e a compressão do espaço-tempo (antes havia sido sua percepção, que “abria o círculo da História”) expandem a idéia de deus para as massas num formato transparente, de fantasma.²

¹ Em termos.

² Lutero e Platão de mãos dadas!

Aí (na mass culture, este terceiro nível cultural) podemos destrinchar duas etapas: a de expansão da Alta Cultura para as massas, não sem sua devida vulgarização (qualidade x quantidade); a de intensificação dos produtos culturais para manter o consumidor ativo em demandas nos mercados já conquistados (praticamente todo o mundo, até mesmo nos centros subdesenvolvidos e/ou alheios ao liberalismo, em formato clandestino). Nesta última etapa, ocorre o afrouxamento da hierarquização, pois produtor-receptor passam a confundir-se, embora haja grupos ou elites renomados por “regular tendências” de produção e indivíduos esparsos com status de formadores de opinião (não é objetivo deste trabalho enveredar por tantos paradigmas).

O espraiamento cultural é, em si, neutro, nunca é demasiado lembrar. As perspectivas marxistas ou neoconservadoras que se debruçam sobre a Indústria Cultural são tão inevitáveis quanto serão mais apreciáveis caso reflitam criticamente acerca do próprio discurso, carregado de ideologias e apriorismo. O mesmo se delineia no campo do Esporte. (Não foram poucas as aulas em que o teor da discussão foi mais ou menos como segue: “Há um dado, que é a presença do esporte como campo autônomo, como micro-esfera, da vida em sociedade. Qualquer santificação ou satanização estrita da prática esportiva, por outro lado, é uma derivação da subjetividade humana, não correspondendo a uma análise simétrica da realidade”.)

A cultura de massa se desloca, sobrevive mesmo, em um limbo proposital entre tradição e inovação. “Campeonato Brasileiro 2008: maior e melhor do que nunca” é o slogan do Sportv, canal a cabo, nas chamadas para a transmissão dos jogos da temporada esportiva que se abre. Embora a fórmula de disputa tenha sido mantida inalterada (tradição), aceita-se que o ano de 2008 “repetirá” os anteriores num aspecto: não será igual a nenhuma outra edição do torneio. Na Sociologia do Esporte se vê que tal contradição casa muito bem com a própria constituição desportiva, em que impera o livro de regras e simultaneamente a contingência absoluta, de dois times e múltiplos jogadores.

Deste modo, recompõe-se a interminável série dos afrontamentos irrisórios, mobilizando um interesse sublúdico, do desporto de competição às eleições” (Debord, 1997, grifo meu).

Equivale a dizer que o desenrolar das temporadas esportivas é mais um passatempo da indústria cultural (entenda cultura de massa como um quase-sinônimo de indústria cultural – “quase” porque Morin não o admite, não cita Adorno ou Horkheimer em seu livro, além do que estes dois emitiam um claro pessimismo acerca do conceito que Morin na medida do possível evita), quer seja, forma de lazer que movimenta a economia e apazigua o trabalhador.

A divisão industrial do trabalho (…) faz surgir a unidade da criação” (Morin, 1975, p. 24): obras (marcas, vedetes) continuam, “imortalizam-se”, a despeito da morte de autores, desenhistas, roteiristas e da falência de estúdios. Conseqüentemente, o homem por trás da racionalização artística (cujo auge se dá nas levas modernistas) é obliterado por um reavivamento do mito, de uma divinização e anonimato humano da obra de arte contemporânea. Um filme – e o atestam os infindáveis créditos de cada produção – não pode ser feito por um homem só (um filme mercadologicamente relevante é, assim, um filme de massa); no jogo, o craque e o goleador contam com coadjuvantes imprescindíveis. Diante da redução da importância individual, é o espetáculo quem ganha.

O gênio do autor, sub-utilizado em uma obra comercial-burocratizada, o repele da própria mercadoria a que deu vida, pois, preso por um contrato e insatisfeito com as reformulações, tende a minimizar, de fato, sua própria importância para a confecção da peça. Não consigo deixar de lembrar do jogador talentoso, aferrado ao esquema tático do time, que sai de campo vaiado e culpando o técnico (aliás, um nome piamente derivado do labor racional-centralizado) pela(o) sua(eu) má(au) escalação/posicionamento. O próprio técnico é submetido a uma pressão múltipla – mídia, torcida, atletas, diretoria, família – e assim sucessivamente, em todos os setores listados. Não obstante enredados nessa teia, técnico e tenor do time, pela maior possibilidade de tornarem-se vedetes (a depender dos resultados) tendem a ser os mais bem-pagos. É a dialética da inovação e da coerção visando à manutenção.

Nietzsche contextualizado no Esporte e o Esporte dentro da cultura de massa

O Esporte possibilitaria a prática, a transformação da natureza, a realização da própria natureza, que é o homem, com o homem no comando (transcendência), em contraste com o mundo não-esportivo: a teoria, a especulação, o idealismo estrito (invertidos por Nietzsche e Marx em prol da “vida”) – que sem diálogo com a ação é estéril –, o enquadramento na moral e nas instituições, a dominação, a objetificação do sujeito. Só mediante a ação quebra-se o antigo e funda-se o novo. Somente pelo amor ao corpo, pela esportivização, pelo despertar do guerreiro imprevisível, é possível uma transvaloração, o atingimento da Verdade, da autêntica Liberdade individual, não-impregnada de ideologias. Nietzsche, niilista ativo, caminhava, em suas fases de boa saúde, de oito a dez horas diárias. E em Ecce Homo, sua autobiografia, viria a afirmar:

Sentar o menos possível; não acreditar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em livre movimentação – quando também os músculos estiverem participando da festa. Todos os preconceitos vêm das vísceras… A vida sobre as nádegas (…) é que é o verdadeiro pecado contra o espírito santo…”

O único Super-Homem, homem livre do cabresto e dos grilhões, é este homem (o ideal do filósofo alemão, não ele em pessoa). Nietzsche ainda corrobora a visão hodierna da Educação Física do que é “ser saudável”: receita alimentação não-abastada – apenas suficiente – e a não-ingestão de bebidas alcoólicas.

Eis um autor “perigoso” para todos os interesses ligados à manutenção da moral conforme se estabelece no mundo ocidental (e não são poucos estes interesses!) que, paradoxalmente, prestam-se para a ética de combatividade dos esportes, justamente legitimando a moral burguesa, aquela que implementou alguns dos hoje mais disseminados jogos – legitimando também, e por isso mesmo, a cultura de massa, hoje desportivizada por excelência. A cultura de massa, por um lado reino da opressão, pode ser a possibilidade da ética do lazer, este entendido de forma positiva, desconstruindo-se a visão espoliada que se tem do ócio. É no lazer, ainda que burocratizado, que o homem expia.

Voltar-se-á a essas nuances após um adensamento no mundo da cultura mundializada.

Ética do lazer

Há a figura do turismo, o “eu estive, eu consegui, eu testemunhei” (cesarismo atenuado?), que é o complemento da “vida da televisão”, especializado para atender às classes mais abastadas no seio da cultura de massa (quase uma contradição em termos). Ora: o desportista profissional é aquele que viaja por esporte, mata dois coelhos a um golpe. Tanto as cidades quanto as medalhas tornam-se alvos de consumo, embora não possam ser “conquistadas” sempre com o dinheiro (entra aí até o fator da contingência – ganhar uma promoção para ir às Olimpíadas ou à final da Eurocopa); de qualquer modo, a fruição desses locais/objetos (ou o que remeta a eles) corresponde à aquisição de poder. Tem-se aí o Olimpiano, o seguidor, na essência, da ética da felicidade.

Muito se critica a configuração atual da realidade e do gênio humano, em que não há a consideração da morte – não havendo a presença da morte, subtrair-se-ia também a vida. No entanto, há outro prisma de onde enxergar a questão: até bem recentemente (talvez do primeiro homem à queda maciça dos Antigos Regimes), ainda havia um reino sagrado como continuação da vida terrena – o que nos conduzia à teórica imortalidade. A morte, ao invés do significado literal, representava tão-somente uma passagem. Hoje o homem, tendo destruído a “mentira” do Paraíso, pôde sobreviver à perda colocando-se novos deuses no tabuleiro: os fantasmas midiáticos/midiatizados. Quer seja o homem o expectador do espetáculo ou o ator do jogo (Olimpiano propriamente dito), é nisto que ele reencontra a imortalidade, razão última do ser e de seu amor-próprio (consumando o arquétipo do Fausto de Goethe).

A infinitude na temporalidade é justamente o mote dos trabalhos de Nietzsche, cuja idéia do Eterno Retorno (este conceito não precisa ser discutido aqui – essencialmente, é no que recai o Super-Homem, e este já foi descrito)¹ eu equalizo ao Presente Eterno alcançado pela Comunicação no século XX. O autor de Cultura de Massas no Século XX: O Espírito do Tempo – Volume 1: Neurose (1975), Edgar Morin, logra êxito ao mencioná-lo na página 64 ao lado de Max Stirner e de Marx, este último o mais notório pensador que tencionou o fim da exploração do homem no trabalho e emprestou ímpeto a uma classe que, indiretamente (posto que na sucessão de gerações, em novos arranjos), ao fim e ao cabo, pôde reverter a alienação em ética do lazer.²

¹ É isso que eu quis dizer quando observei, no prefácio, num post-scriptum, que eu sou muito súbito neste trabalho – sutileza e compreensão com terceiros não eram meu forte – estes são conceitos amplos, terríveis, pesados, ricos demais para se jogar assim, a esmo! Claro que isso não fere os conceitos em si, mas certamente causará mal-entendidos nos pobres coitados não-iniciados que estiverem formando, graças a meu trabalho, uma primeira concepção destes conceitos mesmos

² Eu não reafirmaria isso. Penso nas expressões do sr. Aldo lendo o trabalho. A quem interessar possa, minha menção foi SS, mas quem liga para menções?!

Do cont(r)ato e do Olimpo

Inscrito no lazer tanto quanto o esportista (Olimpiano), está o cidadão considerado “passivo”, o da televisão. Voltemos à tese moriniana, ligada aos fantasmas: enquanto vê TV o indivíduo sabe que o que vê não é real, mas acredita, “deixa-se seduzir”, imerge de cabeça na sociedade do jogo-espetáculo, com o turbilhão de imagens e o inavanço do tempo. Essa apreciação é para Morin o contato com o fantasma. No entanto é um contato permissivo [estupro consentido, he-he], ou seja, o expectador, ou observador estético, assina um contrato, metaforicamente, em que concorda em ser enganado ou ludibriado pelo fantasma, ao contrário do mito nas sociedades arcaicas ou da religião, quando o fantasma era crível. [Contraditório/silogístico.]

A tela transparente é o setor de trocas entre o real e o imaginário. Como os “deuses” – vedetes, ídolos – desse sistema, os astros televisivos, os personagens idealizados (é salutar pensar, em casos como esse, em um Roger Federer¹), são projeções, defende-se que a cultura de massa ou sociedade do jogo-espetáculo não é mais do que o último e mais potente dos cultos ao ego. Isso Morin deixa transparecer não só no capítulo dedicado à Estética (o sétimo), em diversas passagens, mas também na nota de rodapé final do capítulo anterior, mais explicitamente, ao declarar:

a partir do momento em que nada vem [a] justificar o indivíduo senão sua própria felicidade,

no que enaltece a onipresença do riso nas artes e mídia contemporâneas. Creio ter elucidado a nova idéia de deus, a Terceira idéia de deus.

¹ Onze anos se passaram e o suíço continua jogando no mais alto nível…

Nietzscheanescamente, como Freud e sua teoria do recalque (re)desenham, é necessário, através de juízos de valor individuais, identificar-se com e projetar-se em figuras externas, desde o nascimento. Um processo virtualmente infinito de funcionamento da mente em que se apresentam sonhos, metas, carências, medos, traumas. O ser humano precisa ver dentro de si, em sua hiper-realidade¹, não apenas seu êxito e auto-realização, seu paraíso perfeito. Ele precisa se confrontar, o que é terapêutico, com os chamados “monstros interiores” causados pela censura social. Nenhum acontecimento, nenhuma experiência, são eliminados pelo sujeito. São no máximo trancafiados nas profundezas do inconsciente. Monstros interiores não-resolvidos, não-vistos de algum modo no hiper-real, mais tarde podem desencadear comportamentos esdrúxulos ou distúrbios graves, ou pelo menos manias, comportamentos considerados anormais no ser humano, derivados de repressão continuada (é o que Friedrich Nietzsche chamaria de “rio de sangue” para onde estava escorrendo a Europa, como ele costumava alertar).² O indivíduo em nenhuma sociedade é autorizado a quebrar tabus como o incesto e o parricídio, mas em sua hiper-realidade (sonho, obra ficcional que ele mesmo cria ou que somente prestigia) ele as pode cometer. As coisas mais desaprováveis podem entrar em execução, e não haverá punição, pois a Lei não se estende ao plano do não-social. Nietzsche exigia a livre manifestação desses instintos reprováveis no mundo real, caso contrário o ser humano do futuro, póstumo à queda da Verdade, do Bem, da Beleza, de Deus, só seria autêntico em sonhos. No resto seria um corpo, e somente um corpo. Morto tecnicamente. Pois a televisão, o cinema, o rádio, a literatura e suas projeções (na mesma linha da ética desportiva de haver uma paridade inicial visando à justa competição, devendo, ao cabo, vencer o mais forte.³ Uma ‘reedição’, dentro da sociedade democrática, em que pese ser muito bem-delimitada, da sociedade de castas de que Nietzsche fala com altivez4), em minha interpretação, finalmente atenderam aos anseios de Nietzsche. O debate no qual não entrarei é se a tecnologia concedeu a “todos” o poder de serem super-homens (pela tela da TV) ou se é necessário ser um Olimpiano do sistema (Roger Federer, o “turista perfeito” da descrição mais acima) a fim de lográ-lo. Não é o torcedor do Federer outro Federer?

¹ O ensaio cita conceitos demais dos séculos XIX e XX, sobrecarregando o leitor!

² Citação um pouco descontextualizada! Nada muito grave, mas é o perigo de ser o malabarista de dezenas de conceitos simultaneamente, e num espaço enxuto!

³ Esse enunciado, embora não incorreto, presta-se à malversação, como no caso do Nazifascismo.

4 Não corroboro, hoje, em absoluto. Entendo até que estou sendo mais cruel na re-análise deste trabalho acadêmico do que qualquer outro seria, por ser, justamente, da minha pena; o autor que “muda de idéia” não pode evitar esse autoescárnio. Mas, moderando-se meu tom em sua leitura, chegar-se-á à real percepção que eu quero emprestar a esta crítica: o espírito investigativo deve sem dúvida ser incentivado e eu prezo tê-lo cultivado tanto desde tenra idade, mas advirto meus leitores e possíveis “imitadores” futuros contra hipérboles e exagerações inconscientes – enfim, nunca é pouca a cautela contra entusiasmo demais!

O problema do vandalismo juvenil

A partir destas diretrizes, permito-me inserir uma questão subsidiária, na qual não tive a oportunidade de imiscuir no transcorrer da aula própria: o hooliganismo. Em minha opinião, os agrupamentos adolescentes [ou de adultos “juvenilizados” socialmente], tanto na periferia quanto na grande cidade, se explicam pelas gangs da ficção: diferentemente do mundo não-clandestino e burocratizado, aqui há uma lei apenas informal, a da cumplicidade com os colegas de bando, o que se insere na questão tão debatida em sala da violência nos estádios (fuga da burocracia – o hooligan reivindica o direito de ser alguém, de se auto-construir uma imagem que interrompa, pelo menos para si, a crise de identidade). Considerando autores que tratam da questão da catarse, a começar por Aristóteles, não posso conceber o hooliganismo como uma deficiência da educação de um país. É mais um reflexo do patamar a que chegou a burocratização. É a reprise, nos subdomínios, do dilema do tópico anterior: é bastante a expiação televisiva, ou para completá-la veridicamente faz-se necessária a associação a uma torcida organizada (o Olimpiano “ovelha negra” ou “negativo”, o “anti-atleta”)? E a televisão – não é a geratriz da sanguinolência?, contestarão alguns… É a eterna discussão/indecisão entre “o papel de estímulo às mimetizações dos atos violentos” e “a função de sublimar esses mesmos atos violentos”.¹ Há um pouco de correção em cada um dos dois prismas.

¹ Esse problema de facto insolúvel da “nossa sociologia contemporânea” (sarcasmo) me aprisionou durante a graduação inteira – ele me atormentou e me perseguiu inclusive até a tese de monografia, não me deixando dissertar em temas mais agradáveis…

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O arremate de Morin é no segundo volume da obra, Necrose,¹ diante da qual nos interessam particularmente as observações sobre a crise ecológica, uma conseqüência da intensificação da crise burguês-positivista, as rachaduras do apagar do Iluminismo, que enfim faz a civilização, enquanto conjunto de homens reais, se perguntar: o que é a vida?

¹ Outro livro inteiro de Morin, citado agora apenas na conclusão – não se iludir, outrossim, de que seja o fecho da pesquisa empreendida no Vol. I (Neurose) acerca dos Olimpianos – na verdade o tema é inteiramente outro, e a proposta, bem mais experimental/multidisciplinar, com foco nas revoluções universitárias e sociais do fim dos 60 na França, terra natal do sociólogo. O Volume I se dedicava mais à vanguarda do cinema e dos fenômenos de massa, ou seja, fenômenos verificados primeiro na sociedade norte-americana e em alguns centros da Europa ocidental.

Na tendência mais crítica ao movimento econômico global – que é a parte da cultura de massa que se desgarra do mainstream, ainda que nela (na própria massa) continue atrelada –, batizada de neo-arcaísmo no paradigma moriniano, encontram-se postulados acerca da vida que o homem merece levar nas cidades, cujo processo de expansão é, aliás, tardiamente posto em dúvida, o que se estende à crítica da própria civilização e suas noções de progresso (verificadas como suicídio coletivo diante dos quadros de poluição e insalubridade que parecem levar o homem mais para a “Idade Média” pelos modernistas que para uma redenção derradeira). “[U]ma ubris que tende a poluir as fontes primeiras da vida e a desagregar a própria vida” (grifo do autor) (Morin, 1986; p. 184) é sintomático do niilismo do Ocidente descrito por Nietzsche (1988). Isso porque, completa Edgar Morin, “[tais problemas] implicam uma reestruturação geral do sistema, não apenas urbano, mas também civilizacional”. Portanto, ou o homem se repensa, adquire uma nova ética de valorização do corpo e do meio ambiente, ou submete a própria vida às agruras do planejamento econômico-citadino. Uma difícil provação em tempos atômico-nucleares (a Tanatocracia, segundo Michel Serres). [Mais um conceito! Putz! Calma! Freio nesse ímpeto, caro padawan!]

É a crítica mais tenaz a um modelo de acumulação que é um fim em si mesmo e dissocia a necessidade de lucro e progresso de qualquer outra baseada no mundo material, por paradoxal que pareça. É a luz amarela (já alaranjada) deixada por Nietzsche, quando critica toda a Filosofia precedente, de Platão a Schopenhauer (que primeiro exalta para depois denegrir pesadamente), passando por Descartes, Kant e Hegel, com seus idealismos que não passavam de anti-humanismo disfarçado de humanismo, na boca do alemão (assaz anti-patriótico).¹ Apela para a Gaia-Ciência, a ciência que transvalorize o homem, que o faça enxergar-se novamente como parte constitutiva do sistema auto-organizado e independente pulsante, a Mãe-Natureza. A vida não pode ter um fim fora da vida – se quiser significar vida.

¹ Meu afã de tudo abarcar num simples trabalho de Sociologia do Esporte me assombra (positivamente)! Pode parecer arrogante, mas um jovem de 20 anos, quando é arrogante, talvez esteja sendo apenas autêntico (vamos fazer essa concessão). Além disso, lembro que um dos meus colegas de turma (eram apenas 3 pessoas, contando comigo, o que com certeza fez com que a disciplina saísse do quadro de ofertas no período seguinte) reclamava de “não estar conseguindo acompanhar o curso, já que ainda não tinha lido Marx nem cursado Teorias Sociológicas”. Diante de uma precariedade tão palpável ao meu redor, meu professor não devia deixar de sentir algum orgulho ou motivação ao verificar a versatilidade de um dos alunos… Uns tão pretensiosos e incisivos, outros tão evasivos e com desculpas decoradas desde a primeira aula para um pífio desempenho ao final da matéria

O ser humano está, de fato, no caminho do Super-Homem, voltando a suas origens, reencontrando-se como e enquanto Homem – depois do fracasso iluminista [pesado!] –, para o bem ou para o mal (“Olimpianos” x “Olimpianos negros”). Preterimos a segurança em prol da liberdade (Bauman, 2002) [aaaaaaaahhhhhhhhh]. É um retorno mais complexo, é verdade, resultante da dialética entre o tempo primitivo-mítico e a socratização-burocratização da sociedade. [Poxa, teria terminado melhor apenas com o parágrafo anterior…]

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SÓFOCLES. Édipo-rei; tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.

ASPECTOS DA LEITURA – Leffa

OLD SCHOOL FALLACY: “Essa leitura extração-de-significado está associada à idéia de que o texto tem um significado preciso, exato e completo, que o leitor-minerador pode obter através do esforço e da persistência. Como o texto contém o significado, esse texto precisa ser apreendido pelo leitor na sua íntegra. A leitura deve ser cuidadosa, com consulta ao dicionário sempre que uma palavra desconhecida for encontrada e anotação da palavra para revisões posteriores e enriquecimento do vocabulário. Frases de compreensão difícil devem ser lidas e relidas até que a compreensão fique clara.” “Erros de leitura oral são vistos como provas de deficiência em leitura. A leitura é um processo linear que se desenvolve palavra por palavra.” “Nenhuma palavra é entendida antes de ser vista.” “O leitor-minerador tem no entanto muito a ganhar, porque há uma riqueza incalculável nos livros. Tudo o que de melhor produziu o pensamento humano está registrado na permanência da palavra escrita.” “O valor da leitura só pode ser medido depois que a leitura terminou.” “A leitura é um processo ascendente.”

– Qual seu ascendente?

– Meu signo é leitura com ascendente em Paulo Coelho.

Quem extrai não mais trai.

NEW SCHOOL OF THOUGHT (SAINT AUGUSTUS BENEATH THE REMAINS): “A riqueza da leitura não está necessariamente nas grandes obras clássicas, mas na experiência do leitor ao processar o texto. O significado não está na mensagem do texto mas na série de acontecimentos que o texto desencadeia na mente do leitor.”

Finally I exist

“A adivinhação de palavras desconhecidas pelo contexto é incentivada. Ao encontrar uma frase de compreensão difícil, o leitor não deve parar e reler mas ler adiante; provavelmente acabará entendendo

ENFIA A VÍRGULA NO C…: “Não importa cometer muitos erros; o que interessa é o tipo de erro cometido.”

“O pressuposto de que o mesmo texto pode proporcionar uma leitura diferente em cada leitor e até de que o mesmo leitor não fará leituras idênticas de um mesmo texto, tem também levantado alguns problemas.”

“A leitura, mecanicamente, dá-se por fixações dos olhos em determinados segmentos do texto, que podem ser uma palavra ou um pequeno grupo de palavras. Ao que parece o leitor não processa as letras que compõem um determinado segmento de modo linear, da esquerda para a direita, mas de modo simultâneo. Também parece que as letras não são processadas integralmente, em todos os detalhes, mas apenas nos seus traços distintivos. O leitor não tem na memória um molde para cada letra do alfabeto. Uma leitura feita pelo cotejo de cada letra com esse molde fixo seria extremamente complicada e antieconômica, já que seria necessário não um molde para cada letra do alfabeto, mas para cada tipo possível de letra (MAIÚSCULA, minúscula, negrito, itálico, todos os diferentes t i p o s    u s a d o s    e m    d i f e r e n t e s    m á q u i n a s    t i p o g r á f i c a s e de escrever, sem falar nas diferentes caligrafias de cada pessoa).”

DISLEXIA S/A: “Leitor e texto são como duas engrenagens correndo uma dentro da outra; onde faltar encaixe nas engrenagens leitor e texto se separam e ficam rodando soltos. Quando isso acontece, o leitor fluente, via de regra, recua no texto, retomando-o num ponto anterior e fazendo uma nova tentativa. Se for bem sucedido, há um novo engate e a leitura prossegue.”

“O leitor, em determinados momentos de sua  leitura, volta-se para si mesmo e se concentra não no conteúdo do que está lendo mas nos processos que conscientemente utiliza para chegar ao conteúdo.”

“Estou lendo este capítulo para ter uma idéia geral do que é fenomenologia, mas ainda não consegui ter uma noção clara do assunto”

“O conhecimento declarativo envolve apenas consciência da tarefa a ser executada. O indivíduo sabe o que tem que fazer e é capaz de fazê-lo.”

THE WAY OF THE ROCKS: “O conhecimento processual envolve não apenas a consciência da tarefa a ser executada mas, de certo modo, consciência da própria consciência.” “Quando se fala, portanto, que as atividades cognitivas seriam inconscientes, pressupõe-se inconsciência do processo, não do resultado.”

“A leitura rápida e fácil, concentrada no conteúdo, é uma atividade cognitiva. A descoberta de que houve um problema e de que uma correção no rumo da leitura tinha que ser feita para recuperar o texto é uma atividade metacognitiva.”

“Por experimentar o fenômeno da leitura do lado de dentro e na sua totalidade, o leitor é incapaz de dissecá-lo. Cada componente mínimo do ato de ler está tão perfeitamente encaixado dentro dos componentes maiores e é executado com tanta rapidez que sua existência não é nem percebida pelo leitor.”

“Pelo lado de fora, que é a perspectiva do pesquisador, há toda uma tecnologia disponível, incluindo os mais sofisticados instrumentos de pesquisa, mas sem possibilidade de captar o quadro completo da leitura.” Heisenberg

AS ORIGENS DA CIÊNCIA SOCIOLÓGICA

É salutar ressaltar o fato de que não foi um evento isolado ou apenas dois ou três deles – nominalmente – o que deu origem à Sociologia como hoje se a conhece. É necessário analisar a questão holisticamente, levando-se em conta vários fatores interdependentes.

Claro que a resposta acima pareceria evasiva a princípio, da parte de alguém que receia responsabilizar os fatos errados pelo surgimento da ciência em questão, então antes de me aprofundar em minha análise conjuntural apontarei o importante papel representado pelas Revoluções européias mormente no século XVIII.

A Revolução Francesa de 1789, a Revolução Industrial e a Revolução Técnico-Científica (ambas sem uma data tão precisa quanto a primeira, embora mesmo para a situação política da França seja muito mais relevante considerar as conseqüências da deposição do poder real ao longo de várias décadas ao invés de tomar o ano de 1789 como o “ápice do fato” ou ele em si, posto que o acontecimento não se esgotou em uma noite) contribuíram de modo decisivo para o aparecimento da ciência que se propunha a estudar o homem em suas relações com a sociedade. Tais acontecimentos, repetindo o discurso, não apareceram sozinhos, desprovidos de quaisquer causas; neste ponto, a análise volta a admitir os terríveis obstáculos à enumeração dos eventos responsáveis pelo início da Sociologia. Certamente, menos oco do que citar revoluções é entender o cenário político-econômico-social-cultural-religioso europeu à época: o período chamado Idade Média havia sido suplantado por uma nova ordem, em que surgiram os Estados-nações e na qual o homem ganhou status de protagonista da História do mundo. Não obstante, demorou mais tempo, em relação ao Renascimento, para que a Igreja perdesse seu poder moral diante do cotidiano dos indivíduos. Lentamente (ou rapidamente, dependendo da perspectiva – mas o que se quer afirmar é que não foi um processo que tenha se dado em um salto, em um estalo, de súbito), o método científico começava a se fazer presente, dando lugar a um tipo de homem mais questionador. Galileu Galilei e Copérnico são dois ícones dessa transição, pois colidiram com as visões teocêntricas vigentes. As novas descobertas e o progresso técnico do homem desembocariam, concomitantemente, na Revolução Inglesa ou Industrial, que transformaria fundamentalmente o modo como as pessoas se organizavam. Fatores como a migração campo-cidade, as longas jornadas de trabalho e condições insalubres de sobrevivência são apenas alguns aspectos que, como “carros-chefe”, ilustram a “traumática” alteração nos quadros sociais que se realizou. A aceleração do tempo para o homem moderno (o que acarreta uma visão completamente distinta do ser dotado de consciência em relação ao todo) e o acirramento da percepção das injustiças sociais são sem dúvida dois dos fortes contribuintes para a “convocação” da Sociologia, com fins não somente de explicar a sociedade e os traços que vinham se apagando e que se fazia necessário resgatar ou, ao menos, entender por que seriam extintos (a figura do artesão, por exemplo, deixava de existir como profissão viável; aquele que passava horas ocioso ganhava a pecha de vagabundo, o que não era verdadeiro para o vassalo dos feudos; entre outros detalhes em âmbito individual que se explicam por mutações estruturais), mas com o intuito indisfarçável de interferência sobre a realidade (fosse de modo revolucionário ou conservador).

Nem, por tudo que acabou de ser dito, poder-se-ia pensar que houve um fundador inimputável da disciplina (aliás, entre a formação da Sociologia como investigação e intenção e seu implante nas universidades já se afigura um longo caminho, mas não haverá tempo para debater esta nuance aqui), a não ser para fins didáticos (oficialmente, o agraciado com o título é Auguste Comte). Pois bem: podemos ao menos discutir o Positivismo, que é a primeira escola ou corrente sociológica relevante. Procurava descrever a Sociologia com um método ainda muito arraigado às Ciências Naturais. Insistia na necessidade da ordem para se efetuar o progresso. Independentemente da falta de rigor em alguns pontos da teoria, é necessário enaltecer o método positivista como um dos sedimentos iniciais da Sociologia.

Diz-se da Sociologia que ela ainda não encontrou um norte. A isso respondem os críticos alegando se tratar de um campo do saber “eternamente posicionado na infância”, ou seja, uma ciência que se quer nova, jovem. A infância é tida como um período cheio de questionamentos e que não adota paradigmas pré-fabricados, pelo menos não totalmente. É nesse cenário, de uma indefinição de abrangência que talvez incomode muitos que se aventuram pela Sociologia, que Wolf Lepenies faz questão de ressaltar o tortuoso caminho da ciência sociológica, no texto introdutório do livro As Três Culturas. A Sociologia é vista, na obra, como uma terceira cultura, que toma de empréstimo, ora mais ora menos, havendo uma tendência para o equilíbrio (ciência com a admissão da subjetividade), os preceitos das “ciências duras” ou já estabelecidas há mais séculos (a Astronomia, por exemplo) e da Literatura, como forma de expressão de um ponto de vista.

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