UnB – Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Sociologia
Disciplina: Sociologia Brasileira
Semestre: 1/2010
Professora: Mariza Velozo
Turma: A
Aluno: Rafael de Araújo Aguiar
Matrícula: 08/38811
Estudo Dirigido – Módulo Teórico
Data: 23/06/10 (revisado em 13/07/20)
QUESTÕES 1 E 2
Ao desenvolver a 1ª resposta, descobri que já havia pensado no problema da formação da consciência brasileira ao me deparar com a construção da identidade alemã, portanto esta é uma resposta para as duas primeiras perguntas.
Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, narra a evolução da moral e do sentimento de “civilização”, auto-proclamado, de um povo, no caso, nós mesmos, mas obviamente em um recorte de alguns poucos séculos na transição da Idade Média para a Idade Moderna em alguns solos europeus (Inglaterra – secundariamente –, França e Alemanha, esta última ainda em franca formação – e ver-se-á que este ‘franca’ não foi utilizado aqui à toa!). Descreve, através de uma vasta coleção de casos e uma esmerada pesquisa documental: 1) a interiorização de normas de etiqueta pelas elites emergentes que queriam se distinguir da velha aristocracia e da massa plebéia das cidades e dos campos; 2) a ascensão (e talvez gênese, no senso moderno) da vergonha e do vexame como disposição costumeira em um contexto seguro; 3) e a redução da violência e da exposição ao perigo. Não há valoração positiva ou negativa nessas constatações de mudança, pois o autor não cansa de reiterar que as vantagens e desvantagens das metamorfoses culturais ao longo dos séculos se equivalem.
É inevitável que Elias, em que pese sua fortíssima verve literária e sua prosa gostosa e aconchegante, utilize termos específicos para designar idéias mais amplas em um curto espaço, expediente freqüente no livro: sociogênese e psicogênese são duas delas, e estão na boca de muitos sociólogos de hoje. Nada mais são estas que a conceituação do que foi dito acima, quer seja, a observação da origem, do nascimento, do parto ou da genealogia das idéias e práticas, desde o âmbito estatal até a esfera mais privada, sem que se recaia na ilusão da não-recursividade das estruturas dos eventos na História ou na hipérbole dos padrões de recorrência que explanariam todas as singularidades, porque o socialmente palpável e relevante sobre os quais se pode discursar se encontram entre um e outro desses dois extremos.
Elias investe na distinção entre as idéias francesa e alemã de civilização. Apesar de parecer algo trivial, ambas as perspectivas são tão divergentes e a língua alemã é tão peculiar que seu Zivilisation não seria esse termo imediatamente mais próximo, o sinônimo mais adequado, da denotação francesa. O que é fundamental entre o povo tedesco para compreender sua percepção de superioridade e de nobreza em relação a outras etnias é a Kultur. A partir da Kultur se pode falar da intelligentsia alemã, como por exemplo o jovem Marx fez em “A Ideologia Alemã”. Enquanto “civilização”, conforme a entendemos, do verbete latino, parece nos remeter a populações espalhadas por todo o globo, a uma espécie de sentimento genérico de pertencimento a algo abstrato e inefável que no entanto encontra validade em quase todos os cantos onde já tenha pisado o homem branco europeu, o conceito Kultur é sui generis. Evoca um estado menos fluido e mais estacionário, ligado à identidade de um dos países mais novos do mapa europeu (e aí, então, pode-se traçar um paralelo com o Brasil). Essa análise lingüística é um exemplo do método de sociogênese de Elias. Não só o nascimento e o advento em larga escala de algumas expressões interessam ao autor como a interrupção e/ou a retomada (após longo intervalo) de seu uso, pois a amnésia da gênese de alguma coisa pode relatar muito do que está incrustado no imaginário coletivo, e por que essa informação trafega misteriosamente entre as raias do consciente e do inconsciente.
Os estratos médios, na tentativa de assimilação dos costumes cortesãos (e, na verdade, diante de uma inevitável passagem gradual de bastão das mãos dos aristocratas territorialistas para a dos profissionais liberais, os cortesãos também precisavam assimilar os novos ingressantes, ou seja, havia uma troca de influências que tornava a côrte mais plebéia e os cidadãos “mundanos” mais “sangue-azul”), se adestravam ou se recalcavam em vários gestos, falas e posturas. Essa noção psicológica da “mulher de César” (mais importante do que ser é parecer; ou: ainda que se seja, é necessário fazer-se acreditável) sempre foi muito bem entendida pelos franceses, e sua Literatura tão precocemente sofisticada é a prova viva disso. Então, era necessário aprender a jogar o jogo, suavizar-se, desbarbarizar-se, para angariar vantagens sociais. Os franceses foram mestres dos alemães, nesse quesito. Mas estes últimos nunca “aprenderam direito”, se posso me expressar assim, pois o incômodo entre essa vida pública forçosa e a espontaneidade da vida privada do teutônico, mais rude, sempre foi pungente para si. (Sem embargo, apesar da opinião de um povo, necessário que se diga: nem por isso o menos afetado e pomposo é mais sincero – novamente o lembrete de Elias de que perde-se em algo para ganhar em outro algo, ou seja, toda mudança cultural é uma espada de dois gumes. Ora, é útil esquecer que se agia assim e assim e passou-se, convenientemente, a agir desse modo mais atual, de maneira que a amnésia é desejável. Os alemães se esqueceram que sabem mentir; e muitos cortesãos franceses talvez não se dessem conta que todos os seus trejeitos não passavam de uma modalidade de honestidade.) Para se ter idéia de a que ponto chegou essa plasmação, se falava mais o francês do que o alemão nesses estratos mais ambiciosos e progressistas da Alemanha! Por isso o conceito de Kultur exala um certo olor de soberba no ar, a ouvidos “mais delicados”: o pós-hegelianismo que Marx retrata tão caricatamente já pertence a uma fase posterior, em que os jovens, de nacionalismo exacerbado, finalmente se orgulham do seu falar, da sua filosofia praticada com todos os ingredientes da terra natal.
Imagine-se o brasiliano, este filho de colonizadores portugueses que nasceu no Brasil e se habituou a uma vida tropical, mas que, tendo de residir em algum centro importante, como Petrópolis, tenha de macaquear os modos da família real e sua gente mais chegada, a fim de ser bem-visto ou de um dia fazer parte do “time”. Pode ter sido um exemplo grosseiro, mas é óbvia a razão de estudarmos Elias no curso de Sociologia Brasileira!
Importante ressaltar que, se há implicações políticas muito fortes da Kultur, ela só foi consolidada graças a esse treinamento doloroso e insistente da classe burguesa alemã que gostaria de copiar moralmente aqueles que realmente mandavam no continente, ingleses e franceses, sendo seu projeto político e facetas tão conhecidos por nós como a Lebensraum, essa sede de expansionismo físico do império germânico, uma decorrência de metamorfoses culturais profundas que se faziam necessárias. É, inclusive, a mesma proposição de Schwarz para o Brasil e a Rússia de determinadas épocas: longe de poderem modificar seus modos produtivos porém ideologicamente informados dos modos de produção dos países de primeiro ,undo, essas duas Literaturas atingiram um posto privilegiado, como parece notável nas figuras de Machado de Assis e Dostoievsky; de Goethe, Heine, Kant e Hegel, no caso da Europa central e desta obra de Norbert Elias. Em que pese Rouanet refutar Schwarz, ele ecoa esse discurso quando diz que hoje a Europa representa o papel mundial um dia exercido pela Alemanha no contexto europeu, quer seja, nós, os periféricos, é que recebemos suas idéias, um substrato para concretizar uma História nova (a diferença é que para Schwarz a Literatura, a Ideologia, já eram a História sendo feita), em detrimento do Velho Continente, que está fatigado demais para isso. (Vide a escola pós-estruturalista francesa, que exportou inúmeros sistemas de crítica, às vezes autofágicos, nos “contaminando” com fenômenos antes exclusivamente europeus, como o niilismo, mas nada muito além disso. Ou seja, navega-se sem grandes meta-narrativas que proponham uma solução ético-estética.)
QUESTÃO 3
Gosto muito do fim do livro de Foucault “A Ordem do Discurso”, e como o início já foi bastante falado em sala, talvez seja esse, o retroativo, um bom caminho para desenrolar minha resposta (o engraçado é que iremos de novo a Hegel): “toda a nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer há pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano § Mas escapar realmente [itálico meu] de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar” (pp. 72-3). Nessa passagem e pouco mais adiante, Michel Foucault não exagera a respeito de um consenso que vejo na análise da Filosofia ocidental (ou pelo menos na chamada Filosofia continental), esta que está, a meu ver, como pano-de-fundo de toda a Sociologia construída: o sistema de Hegel é uma espécie de ápice da coerência, pois a “Fenomenologia do Espírito” é uma obra que se sucede a várias tentativas racionalizantes de filósofos pregressos e que parece – tem pelo menos uma aura de – definitiva, um marco, sem dúvida, da teoria do conhecimento, da História como disciplina e das estruturas. E exatamente por isso, às vezes nós, seus sucedâneos, temos dificuldade de lidar com as coisas como ficaram postas “do lado de cá”, e tentar a antítese ou a superação destes postulados mostra-se uma tarefa hercúlea, ainda mais tendo em vista que estamos diante do “mestre da dialética”, de quem Marx bebeu para chegar aonde chegou como um cânone de nosso curso; e mesmo sua operacionalização do Espírito de modo a que viesse a ser mundo/concretude/materialismo, mais fluido e hiper-empírico, é, como acaba de relatar Foucault, passível de ser vista ainda como uma continuação natural, ou “embutida já”, no trabalho de Hegel.
Por que tive necessidade de um preâmbulo inusitado que começa pelo desfecho de um livro sobre o discurso? Estamos falando ainda, aqui, como nas questões 1 e 2, da gênese de alguma coisa, do mistério dessa organização das idéias, como sujeitos que aparecem no mundo quando ele “já está completo”; e isso não é contra-senso algum, pois somos o mundo, estamos em perpétuo vir-a-ser, mas do ângulo da “necessidade ou não de um novo ser”, no presente, podemos nos dizer completos, somos esta obra, o mundo é nosso espelho; a consideração de um ser é inclusive meramente didática. Com todo o arcabouço que nos é fornecido quando nascemos, e com o que deixamos após nossa passagem, Foucault se pergunta: afinal, estamos começando um discurso? Reiterando uma fala ancestral? Nem um nem outro?! Sempre Cila ou Caribde e a obrigatoriedade de evitar os extremos… Epistemologicamente, ao mesmo tempo que toda situação é nova e todo discurso inédito, ele é um reflexo, uma recorrência, quem fala não somos nós, mas as coisas nos utilizam como porta-vozes. O que nasce, brota, emerge de algo já dado, não possui uma essência, mas pode-se dizer, para fins pedagógicos, que a essência do objeto que acaba de emergir já estava contida, seu germe situado, nas coisas pregressas, e assim ad infinitum. É por conter em nós agora todo o substrato do “ser-que-ainda-não-está”, desse faltante desconhecido, que podemos dizer: sim, somos completos!
Mas me dedicando mais ao discurso, o que está em questão nesse seminário de boas-vindas à universidade para a qual o autor foi chamado é que o monopólio desse discurso, todos os rituais que precisam ser cumpridos e as coerções que são irreparavelmente levadas a cabo, não se encontra em alguma instância central, não é ou não precisa ser sempre voluntário, mas subjaz em cada apresentação/re-apresentação de um sujeito falante. Em que pese, por exemplo, essa sua palestra ser algo transgressor, uma criação, espontânea até, assim que é emitida ela se torna já parte do poder regulador, uma arena que – é sua natureza fazê-lo – exclui, pela simples omissão, elimina mesmo, o que foi dito antes, e age sobre o que será dito depois, está situada na História, contra a História, rompendo com a História, mas deve isso a ela; a História é um compilado virtualmente inesgotável de discursos como esse que se justapõem.
Então como, pois, um livro que é um discurso como qualquer outro, “A Fenomenologia do Espírito”, supracitado, pode adquirir ares, como deixa transpassar Foucault em seu também discurso, de imbatível, ter a petulância de se imiscuir de repente entre as coisas do mundo e reivindicar um direito à perenidade, acima das outras? Não é essa uma divinização do indivíduo-no-mundo Hegel, ele também tiranizado-monopolizado, tirano-monopolizador de inúmeros outros discursos dentro de uma Alemanha insípida ou exuberantemente acadêmica (a depender do ponto de vista) dos séculos XVIII e XIX, esta por sua vez dentro de um sistema-mundo de complexidade indizível? A ponto de se dizer que a crítica ao seu Idealismo é apenas uma extensão proto-pensada ou latente do Seu Idealismo, assim, com letras grandes? É esse episódio, esse evento, que muito assusta teóricos do século XX, ainda. E posso utilizá-lo como ícone para o poder do discurso, e acreditar, com Foucault, que ele não é imbatível, ou recairíamos na asserção “depois de Homero (ou da Bíblia, da sabedoria de Salomão, etc.) nenhum livro precisava ser escrito”, “toda música é repetição e exploração da genialidade contida nos Beatles (ou Bach, ou Beethoven)”; ou viveríamos como o eu-lírico de Jorge Luis Borges (cf. Santiago), sempre à sombra do Dom Quixote, reprodutor mas nulo… Frases e neuroses do nosso cotidiano que, por mais que sejam tomadas como verdadeiras, não descaracterizam o que está-aí: foram escritos livros depois de Homero e há uma imensidão de outras músicas; portanto, ainda que procedesse o argumento da auto-suficiência, da completude do ser a dado ponto, o devir não “perdoa” e segue infatigável… Outra coisa não se denota da proposta de Foucault no meio de seu “A Ordem do Discurso”, ao exigir um “materialismo do incorpóreo” dentro de uma “filosofia do acontecimento”, um claro revide ao título imponente Fenomenologia do Espírito.
Ora, e cabe aqui, ainda, acrescentar: “a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?” (itálico do autor). Tal aforismo advém de Roland Barthes, quem nunca li diretamente, portanto não posso dizer o livro, mas o retirei de “Filosofando”, em apêndice de um dos capítulos, página 323, livro didático de Maria Aranha e Maria Martins que eu e muitos da minha geração usaram por vários anos na escola. Lembrei-me instantaneamente dessa passagem que já havia destacado anos antes ao falar de Hegel neste momento. Porque não feriria o autor se chamasse sua filosofia de a expressão da redundância, bem como a filosofia de Nietzsche. E esta frase é perfeita para continuar a idéia da auto-suficiência… Elas, as redundâncias, bastam a elas próprias, mas o mundo, que pode ser também uma grande redundância, é sentido historicamente, diacronicamente, então a redundância está sempre em deslocamento. Mas a própria idéia de uma redundância em deslocamento não será entendida igual hoje e amanhã, num século ou no outro, por isso a riqueza de interpretações é – com o perdão do trocadilho – fenomenal! Pouco importa, neste caso, se se assumir Nietzsche como posfácio banal de Hegel ou o inverso, e Marx ali como um elo perdido, ou nenhum dos dois, porque cada posicionamento, inclusive, traz muito de um ranço de época. Importante é saber que as operações lógicas, depois de “mais um fim”, sempre se reiniciam… E ainda que se lance mão do recurso “a lógica que paira sobre todas as lógicas”, vê-se-a de dentro, portanto o Um jamais será Um, embora sempre se possa usar o expediente da palavra e do conceito, que uniformizam, homogeneízam.
Talvez tenha faltado apenas um pouco de consideração – embora pense que já foi cumprida, me desculpe se tácita ou encoberta pela questão alemã – sobre o desinteresse e sua importância, em Foucault e outros: uma cátedra universitária jamais estará ali pelo discurso em si; o discurso-pelo-discurso é uma coisa que não existe; a Alemanha hegeliana, tida como a apoteose da Teoria, era bastante prática – o que seria toda a volição de explicar o Todo, superar o atraso teutônico e afirmar-se como cultura soberana sem o poder por trás de, em, sendo cada palavra? Portanto a intelligentsia pura não existe, embora se chame a maioria de “péssimos políticos”, quando intentam consciente e formalmente essa missão.
QUESTÃO 4
Devido à absoluta impossibilidade de separar as coisas, por achar que uma estava inexoravelmente ligada à outra, optei por juntar os itens “a” a “d” no que segue:
Sobre a questão colonial, em direta relação com essa indefinição do “lugar das idéias” e da posição a se tomar, de onde aparecem os discursos assumidos pelos intelectuais e para quem eles têm ressonância, adianta-se a questão das três principais matrizes étnicas do povo brasileiro (bem caracterizadas no último livro de Darcy Ribeiro): brancos, índios e negros – uns espoliados, dizimados, catequizados; outros escravizados; aqueles inevitavelmente transformados, rearranjados, reinventados em uma nova terra. Claro que as tensões raciais devido ao histórico de opressão e miséria da raça negra vão complicar ainda mais esse quadro de indefinição, com uma cornucópia de autores de uma mesma geração sem chegar a uníssono algum, chegando-se ao cúmulo de alguns liberais defenderem a propriedade de humanos (isto é, humanos de acordo com a teoria liberal estrangeira; sub-homens para nós, nesta abrasileiração esdrúxula) e de um império diretamente descendente do português ter de efetuar a transição do Brasil-Colônia ao Brasil-soberano, afora muitas outras polêmicas.
Na aula de hoje, quarta-feira, 23 de junho, a professora Mariza nos relatou, por exemplo, que os dois primeiros responsáveis por compilar uma história do Brasil no século XIX eram autores estrangeiros. Um dos autores desta unidade introdutória, cujo nome irei logo resgatar um pouco mais abaixo, chama o período imperial de “auge da liberdade de imprensa”, fase que jamais se repetirá: já que livros eram artigos raríssimos, quem tivesse meios que os escrevesse, pois ninguém o censuraria! O paraíso? Talvez, mas o motivo era desalentador para aqueles com alguma ambição intelectual e desejo de colher os louros da fama: não seriam combatidos, não seriam citados nem defendidos, simplesmente pelo fato de que não eram lidos, a não ser por seus exíguos pares!
Não serão poucos os que defenderão uma sociologia principiada do zero no Brasil. Quando muito, autores clássicos deveriam ser lidos apenas para serem filtrados no que interessasse aos trópicos e à estrutura da sociedade tupiniquim. Florestan Fernandes desejava com afinco uma sociologia nacional, e nos anos 60 vemos Roberto Cardoso de Oliveira formular o conceito de “fricção interétnica” para tentar tipificar como sui generis as relações raciais no país, impossíveis de ser explicadas por modelos importados de fora. Porém, e demonstra Rouanet muito bem, como citei na segunda questão, recai-se assim, ao se fechar ao exterior, num paradoxo, que é pensar-se à maneira européia para não-ser-europeu, até porque inventariar as componentes de uma nova nação, idealizar um Estado, é uma atitude completamente ligada às Luzes e à consciência nacional dos séculos XVIII e XIX da Europa! Um problema correlato se verifica na Índia, outro país de terceiro mundo que aparece para nós na mídia como tentando se modernizar e capitalizar e “formular sua identidade”, mas que possui uma organização interna que bate de frente com nosso modelo. Sequer pode-se chamar a Índia de país, olhando-se de dentro; as castas não coadunam com o humanismo deste início de milênio. Ainda assim, a única forma de nativos terem voz no palco do Ocidente é ocidentalizando-se um pouco, chegando à formalidade do grau de mestres e doutores nas sociologia e antropologia ocidentais. Sendo assim, o que esses têm para contar acerca de brâmanes e chandalas, e o que a intelligentsia brasileira primitiva tem para dissecar, é carregado de mal-entendidos e unilateralismos (PEIRANO).
Através de uma análise histórica da noção de Estado-nação, Anderson mostra a pedra no sapato dos movimentos marxistas e das Internacionais, que sempre buscavam uma superação do problema das fronteiras e etnias em prol de um só e mesmo ideal, encerrar a exploração do trabalhador. Quando guerras entre aliados políticos – em tese – são travadas por motivos territoriais ou raciais, algo não anda na ordem das coisas, principalmente para os comunistas que desejavam o desaparecimento ulterior do Estado e das diferenças de classe. A União Soviética possuía tal pressuposto no título e na gênese de sua promulgação; por isso, logo entrou em choque com a anciã China, país de tradições milenares que queria ter o seu socialismo. Sei que ainda não chegamos ao Brasil, mas esse prólogo serve para mostrar a ubiqüidade, hoje, no mapa-múndi, dos Estados-nações, de origens muitas vezes totêmicas, religiosas, ou provenientes de uma política comunitária extremamente arcaica (no sentido temporal, exclusivamente). E nós teríamos de ser forçosamente um deles a partir da emancipação de Portugal. Talvez seja este o tema mais explorado em todas as séries da escola básica até estarmos habilitados a chegarmos aqui. A inculcação dos processos que levaram o Brasil a ser o Brasil; é o marco zero, antes do qual não é muito preocupante, a uma criança, não saber muitos detalhes. Sua referência inicial para os estudos é Pedro Álvares Cabral. Aí começa a história de sua família, de fato. Felizmente não precisamos retroceder tanto na análise.
O que era antes um entreposto comercial para o branco e um cativeiro além-mar para o negro africano vai se incorporando, fundindo, com o devir das gerações. A terra passa a ser mais as pessoas. Espocam valores e costumes inevitavelmente diferentes, por questões de clima ou qualquer outra. Os índios, que não são “os índios”, são uma multitude de povos, de nações, se vêem em novas demarcações, rodeados de novas leis de propriedade, uma metamorfose tão abaladora quanto descer em um outro planeta com outras relações humanas, provavelmente. Há ainda o revés provocado no homem branco pelo contato com negros e esses estranhos que aqui já reinavam, isto é, prosavam, porque eles não tinham reis! A música, ritmos africanos, a crença antropofágica indígena, a alimentação nutritiva com base na macaxeira, os casamentos interraciais, a própria Igreja católica edificada nesta terra, talvez mais mansa para uns, mais inquisidora para outros, mas sempre em diálogo com as determinações da metrópole. E todos os órgãos burocráticos que se intensificaram num curto espaço de tempo quando da vinda da família real. Todas as ondas migratórias européias, as novas relações de trabalho, a sucessão dos ciclos econômicos e commodities para exportação, expansão do setor terciário, belicismo para com os vizinhos, concursos para criar bandeira e hino nacionais, sementes do orgulho a ser ejetado para contemplação dos países ricos… Poderia elencar outros parágrafos sem que o material se tornasse mais escasso!
Uma só característica seria o suficiente para especulações intermináveis: o calendário cristão. Contar o tempo a partir de 1500 e comemorar com mega-festas os primeiros 500 anos; sai-se do mito para entrar em um protocolo, em uma parafernália de normatizações compiladas num livro chamado código de leis, semelhante a outros, inspirado, isso é inegável, nas declarações humanistas francesas. As questões mais polêmicas se referem à zona híbrida em que o brasileiro se sente constrangido pelo que vem de fora e, de outra parte, pela expectativa de nossas autoridades quanto à nossa imagem lá fora, se nos acatam, se recebem nosso conteúdo, se o Brasil adquire relevo e reforça sua identidade. Seja Luís Costa Lima chiando porque o brasileiro usa terno e não deveria usar ou, já, Gilberto Freyre relatando a parca dieta dos mais ricos mesmo no período colonial, que se contentavam com frutos em putrefação porque tinham poucas noções culinárias neste mundo transplantado… Os autores desta unidade estão cheios dessas percepções.
Chama atenção a condição de marginalizado do intelectual brasileiro (do intelectual, para Mannheim). “Trapezistas sem redes de proteção” (p. 17), é assim que Peirano define esses primeiros corajosos da inteligência de um país por (se) fazer. Com “a raiva impotente” (p. 4) quase começa Lima. Desde sempre tivemos nossos gauches (no sentido drummondiano, portanto sem itálico), nossos excluídos dos debates de época (o que não significa que não tenham sido valorizados mais tarde), como Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ainda antes da imprensa chegar. Por muito tempo, nossos homens responsáveis por nos compreender foram mais deglutidores de pastiches e simulacros do que propriamente sensatos; talvez não por falta de juízo mas de condições materiais. Os jargões de Direito eram habituais para gerar boa impressão e dificultar a retórica (do oponente não-versado, é claro); a teatralidade e o gestual também mereciam atenção, quase maior que a do conteúdo; o corporativismo sempre foi impiedoso, nauseante, até – que o digam os advogados, jornalistas, sambistas, poetas, sempre defendendo seus próprios colegas sem olhar as razões e defendendo os truísmos da prática pura ou do talento inato para enxotar quem surgisse ameaçadoramente portando características exógenas –; e quantos mais numerosos fossem aqueles estrangeiros de que se apropriasse no discurso (omitindo seus nomes!), mais complicado seria retirá-lo de voga, se é que existia realmente alguma voga de discursos, ou estes eram apenas ecos do que se sucedia longe. A nostalgia e a conclamação hiperbólica da pátria são apontadas, com boa margem de segurança, como características presentes nessas primeiras gerações.
Conforme ensaiado acima, trago aqui o nome de Luís Costa Lima, quem disse que aqui era muito difícil haver público no princípio mas que isso implicava uma impressionante liberdade autoral. No entanto, não é sua voz a das aspas: “nem os governantes nem o povo as liam, e os poetas catequisavam-se (sic) entre si” (José Veríssimo apud Lima, p. 7). A verdade é que ainda hoje há resquícios dessa intelectualidade que não gosta de vestir a camisa da intelectualidade, se acha outras coisas, investe em áreas paralelas; não são poucos os casos de jornalistas nativos que se crêem sociólogos, cientistas políticos que se aventuram a showman e professores que acabam indo parar no parlamento – aliás, a lista de ministros que nenhuma intimidade tinham com a política até serem nomeados é embasbacante. Muito disso tem a ver com a “cordialidade oficializada” (Lima) ou “teoria do favor”, proposta por Schwarz para justificar anomalias que nem diagnósticos de ordem econômica pareciam poder contemplar. Em detrimento da luta dos estratos liberais, como se viu em outros países, por mudanças nas formas de encarar os fatos, aqui esses, desde a escravatura, sustentavam sua liberdade e autonomia nas costas dos senhores de engenho e da casa-grande, mas de um modo tal que também desengessavam estes senhores em muitas atribuições para as quais não estavam qualificados nem dispunham de tempo hábil. Sem que se pudesse dizer, no final das contas, quem era o parasita e quem era o hospedeiro, pois a harmonia do sistema era mantida, com as centenas de milhares de cabeças africanas em permanente reposição pelos navios do tráfico internacional. O legítimo país do “Acordão”. Num país como esse as instituições sempre, na prática, destoam de suas intenções originais, como é o caso da USP e também da UnB, para infelicidade de Darcy Ribeiro, com todo o plano de sua autonomia sendo sacrificado ao tecnicismo e às políticas governamentais mal-feitas que destratam a educação. Há surtos de efervescência cultural – como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros que encabeçam o Modernismo da década de 20 ou a Tropicália nos anos 60 –, seguidos por hiatos de um consentimento tácito dos intelectuais no que tange à performance negligente das autoridades. Ora, todos sabem que em terra onde a intelectualidade for marasmo, reedições do mesmo, sem debates francos, as idéias não podem mesmo vingar, por falta de quem as aperfeiçoe, contraste-as, enfim, dinamize o cenário.